Há pouco mais de três semanas atrás o programa Domingo Espetacular, transmitido pela Rede Record, divulgou
reportagem na qual apresenta casos de violações dos direitos das crianças indígenas promovidos por determinadas aldeias indígenas, de modo a difundir, novamente, no cenário nacional a idéia de que os povos indígenas maltratam suas crianças e, pior do que isso, de que respeitar os direitos indígenas - de costumes, crenças e valores específicos - pode, muitas vezes, significar atentar contra os direitos humanos.
A reportagem envolve diversos jogos de interesse, dentre os quais: (a) a mobilização parlamentar e de organizações religiosas de "defesa da vida" pela tramitação no Congresso Nacional do Projeto de Lei Nº. 1.057/2007 que visa, dentre outras coisas, criminalizar ditas "práticas tradicionais nocivas" contra crianças, dentre as quais aborto e infanticídio; (b) fomento do patrocínio internacional das ditas organizações religiosas de "defesa da vida", como a ONG ATINI, para a promoção de adoções internacionais de crianças indígenas e intervenção impositiva, sob o pretexto da "redenção religiosa", nas culturas indígenas; (c) acirramento da violência simbólica e física contra indivíduos e coletivos indígenas, pelo incremento da imagem de "selvageria" e "barbarie", com a pretensão (quem sabe?) de justificar (nova-velha) repressão do Estado brasileiro.
Não gostaria de elencar as justificativas contrárias a esta questão. Posso apenas dizer que isso reforça a condição colonial ainda presente no Brasil de tratar a diversidade cultural pela ótica da desigualdade social, e indico
texto escrito a oito mãos que visa apresentar argumentos jurídicos, antropológicos e políticos contrários a questão.
Aqui, pretendo, simplesmente, divulgar a CARTA DE REPÚDIO escrita e aprovada no Encontro Nacional das Mulheres Indígenas para Promoção e Proteção de seus Direitos, ocorrido na cidade de Cuiabá/MS, entre os dias 17 e 19 de novembro de 2011. Boa leitura e olhos atentos para as novas estratégias coloniais que se disfarçam em pretensões de direitos humanos.
CARTA DE REPÚDIO AO PROGRAMA EXIBIDO PELA TV RECORD NO DOMINGO ESPETACULAR NO DIA 07 DE NOVEMBRO DE 2010.
Nós, mulheres indígenas reunidas no Encontro Nacional de Mulheres Indígenas para a Proteção e Promoção dos seus Direitos na cidade de Cuiabá entre os dias 17 e 19 de novembro de 2010, vimos manifestar nosso repúdio e indignação contra reportagem produzida pela ONG religiosa ATINI exibida no dia 07 de novembro de 2010 em rede nacional e internacional. No Programa do Domingo Espetacular, da emissora RECORD, foram mostradas cenas de simulação de enterro de crianças indígenas em aldeias dos estado de Mato Grosso (Xingu), Mato Grosso do Sul (Kaiowá Guarani) e no sul do Amazonas (Zuruaha), pelos fatos e motivos a seguir aduzidos:
1. A malfadada reportagem coloca os povos indígenas como coletividades que agridem, ameaçam e matam suas crianças sem o mínimo de piedade e sem o senso de humanidade.
2. Na aludida reportagem aparecem indígenas atores adultos e crianças na maior “selvageria” enterrando crianças.
3. A reportagem quer demonstrar que essas ações nocivas aos direitos à vida das crianças indígenas são praticas rotineiras nas comunidades, ou de outra forma, são praticas culturalmente admitidas pelos povos indígenas brasileiros.
4. Que os produtores do “filme” desconhecem e por tanto não respeitam a realidade e costumes dos indígenas brasileiros. São “produtores Hollywoodianos”.
Vale esclarecer em primeiro lugar que a reportagem não preocupou em dizer que no Brasil existem mais de 225 povos ou etnias diferenciadas em seus usos, costumes, línguas, crenças e tradições. Essa reportagem negou aos brasileiros o direito ao conhecimento de que na década de 1970 a população indígena não chegava a duzentas mil pessoas ao ponto de antropólogos dizerem que no século XX os indígenas iriam acabar.
Se de fato os indígenas estivessem matando suas crianças, a população indígena estaria diminuindo, mas a realidade é outra, pois a população naquele momento em decréscimo hoje chega ao patamar de 735 mil pessoas, segundo censo de 2000 do IBGE.
A reportagem que mostra apenas uma versão das informações, não entrevista indígenas nem antropólogos que conhecem a realidade da vida na comunidade, pois senão iriam ver que crianças indígenas não vivem em creches nem na mendicância. Crianças indígenas são tratadas com respeito, dignidade e na mais ampla liberdade.
A reportagem maldosa e preconceituosa feriu intensamente os direitos indígenas nacional e internacionalmente reconhecidos, pois colocar povos indígenas e suas comunidades como homicidas de crianças é o mesmo que dizer que certas religiões praticam seus rituais matando suas crianças ou que a população brasileira em geral abandona suas crianças em creches, nas drogas e na mendicância se sem com elas se importarem. Mais, seria dizer que pais de classes médias altas jogam dos prédios suas crianças matando-as e que é comum famílias brasileiras em geral jogas seus filhos recém nascidos no lixões das grandes cidades, ou que os lideres religiosos são todos pedófilos.
Quais são as verdades dos fatos por trás das notícias caluniosas e difamatórias contras os povos indígenas.
Não seriam razões escusas de jogar a população brasileira contra os povos indígenas para buscar aprovação pelo Congresso Nacional brasileiro de leis nefastas aos povos indígenas? Ao dizer que os indígenas não têm condições de cuidar de seus filhos automaticamente estará retirando dos indígenas a autonomia em criar seus filhos, facilitando assim a intervenção do Estado para retirar crianças do convívio familiar indígena entregando-as a adoção principalmente por famílias estrangeiras. Na reportagem, o padrão de sociedade ideal é o povo americano, pois demonstrou que a criança retirada da comunidade agora vive nos Estados Unidos da América e até já fala inglês. Sociedade justa, moderna bem-feitora. Seria mesmo a “América” o modelo padrão de sociedade justa apresentado na reportagem? Vale esclarecer que a ONG religiosa ATINI e sua produtora de Hollywood têm sua sede nos Estados Unidos.
Muito boa a carta das mulheres indígenas. Pena não termos espaço na mídia televisa para discutir a questão.
ResponderExcluirÉ impressionante como essa vibe etnocêntrica que fundou o nosso país é capaz de se relançar.
O que eu gostei da carta é que ela ajuda escancarar esse etnocentrismo vivo ativo na televisão e na atuação de entidades pretensamentes bem-feitoras.