Na 3ª parte do artigo de Diego Diehl intitulado "O Brasil à beira de um golpe de Estado de novo tipo", são analisados alguns elementos centrais da conjuntura geopolítica internacional, e também da conjuntura brasileira que evidenciam um pouco da "essência" dos interesses de classe que movimentam a atual escalada golpista no nosso país. Essas forças golpistas buscam utilizar o Direito como ferramenta de legitimação do golpe midiático-jurídico-parlamentar, como foi visto na parte 2.
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3. Da aparência à essência do “golpe de Estado de novo tipo”: a conjuntura política que movimenta as instituições jurídico-políticas
Qualquer tentativa de analisar a conjuntura da crise brasileira atual que não tome como ponto de partida o cenário geopolítico internacional se equivoca tremendamente (em sua “dialética social do direito”, Lyra Filho falava na “sociedade internacional” como ponto de partida para qualquer análise sócio-jurídica). O Brasil está longe de ser o “país campeão da corrupção” como a narrativa conservadora procura afirmar, ainda que saibamos que o capitalismo brasileiro (como toda formação social capitalista) é marcado de forma estrutural pela “corrupção” (que nada mais é que a violação das normas jurídicas em prol de benefícios pessoais, quase sempre de caráter econômico). É da geopolítica internacional e de sua conjuntura atual que temos necessariamente que partir para compreender a crise brasileira.
3.1. A conjuntura política internacional: reascenso da China, decadência dos EUA e o início da “guerra fria 2.0”
Com a eleição de Lula em 2003, o Brasil começa um lento movimento de (relativo) afastamento da influência geopolítica dos EUA e busca formatar novas parcerias geopolíticas como player autônomo no cenário mundial. O mundo vive hoje o avassalador retorno da maior potência civilizacional da história da Humanidade: a China, civilização mais poderosa dos últimos 3000 anos e que apenas foi submetida a um período de dependência pelos “ocidentais” nos últimos 200 anos. Ao mesmo tempo, vemos hoje a crise – e quiçá a decadência – cada vez mais profunda (em termos econômicos, políticos, ideológicos, culturais etc) da maior potência bélica da história: os EUA.
Na nova inserção internacional do capitalismo brasileiro a partir de 2003, o Brasil volta-se à China, África e América Latina, e isso se reflete na formação dos BRICS. O papel do Brasil nos BRICS tem sido formatado como fornecedor de commodities (basicamente petróleo do pré-sal, minérios, grãos, celulose, carne etc) sobretudo ao capitalismo de Estado da China, o que se reflete em diversos projetos de infra-estrutura que foram financiados pelo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), em rodadas de concessões e realização de PPPs (parcerias público-privadas) que vão entregando o controle de setores estratégicos da economia brasileira ao capital chinês, substituindo a dependência dos EUA por um novo tipo de dependência (cujas características estão ainda em processo de discussão e não serão analisadas neste texto).
Muitos analistas internacionais (Pepe Escobar por exemplo) já falam em uma “Guerra Fria 2.0”, que será muito mais difícil para o capitalismo ocidental pois agora o “outro lado” é mais estruturado e dinâmico que a antiga União Soviética: a China realizou nos últimos 30 anos as 3 etapas da Revolução Industrial (mecânica, química e informacional) de uma só vez, configurando-se atualmente como a “fábrica do mundo” (crescendo 14% ao ano e reduzindo agora seu crescimento a “apenas” 7%, de forma planejada sob a indução estatal); a Rússia se reunificou em torno de um projeto nacionalista e se vale de todo o poderio bélico da ex-URRS para fazer frente aos EUA como “polícia do mundo” (basta ver os casos da Ucrânia e agora da Síria); o Irã constituiu um nacionalismo islâmico que se mostra como alternativa aos povos árabes diante da política estadunidense de “dividir para dominar”; a Índia afasta-se paulatinamente da influência geopolítica “ocidental” a partir de um projeto também nacionalista que começa a estabelecer parcerias estratégicas com a China; os chamados “governos progressistas” na América Latina se aproximam deste novo bloco geopolítico que emerge no início do séc. XXI.
Nesse cenário, o papel do Brasil e da América Latina em geral é colocado como de grande fornecedor de matérias-primas básicas para as potências hegemônicas que disputam o controle do mundo. Por isso, é de total interesse dos EUA que o Brasil reverta sua orientação geopolítica atual, realinhando-se à velha dependência que marcou desde sempre (1500, ou 1492) a nossa existência enquanto nação colonizada, voltando a ser fornecedora preferencial de commodities às empresas transnacionais do bloco ocidental, dirigido pelos EUA.
No entanto essa mudança de orientação não pode mais se dar por meio de golpes militares como ocorrera no período anterior em toda a América Latina. Os militares saíram de cena e o “golpe de Estado de novo tipo” depende agora de uma outra “corporação” para a sua legitimação: essa corporação é a dos juristas, e o argumento jurídico utilizado é o “combate à corrupção”. Para isso, o Departamento de Estado dos EUA e alguns dos principais think tanks do pensamento jurídico estadunidense (com destaque para a Harvard Law School) realizam cursos, promovem “consultorias” e atuam no sentido de formatar o sistema jurídico brasileiro (normas jurídicas, instituições, formação de agentes etc) para o “combate à corrupção”. São públicas e já conhecidas as informações sobre as parcerias do MPF com as autoridades estadunidenses; que juízes como Sérgio Moro realizaram cursos de formação ofertados por estes centros etc.
Com isso os interesses geopolíticos dos EUA são introduzidos no "campo jurídico" dos países dependentes. A colonialidade do poder e do saber jurídico, no caso do Direito brasileiro, se configuram hoje por meio do seu alinhamento com instituições jurídicas do modelo estadunidense, sobretudo em campos como o Direito Constitucional (praticamente adotando hoje – de forma anti-democrática – o modelo de construção jurisprudencial do Direito por meio do controle de constitucionalidade) e o Direito Penal (que assimilará figuras como o “terrorismo” enquanto tipo penal, instituirá as “delações premiadas”, acordos de leniência de empresas etc). Ademais, o “realismo jurídico” estadunidense ensinará aos juristas brasileiros sobre a necessidade de contato da atuação das instituições jurídicas com a “opinião pública”, para que suas ações de “combate à corrupção” tenham êxito. Isso exige a mobilização (por partes dessas instituições jurídicas e de seus agentes) de redes sociais (fator que se tornou importante desde junho de 2013, como veremos adiante), além de uma atuação em simbiose com a mídia hegemônica, que é o ator central do golpe.
Como foi dito anteriormente, o “golpe de Estado de novo tipo” é um golpe midiático-jurídico-parlamentar. É portanto em primeiríssimo lugar um golpe midiático, pois quem contrói a agenda de legitimação da atuação das instituições jurídico-políticas é a mídia dominante (aquilo que se convencionou chamar de “Partido da Imprensa Golpista” - PiG, alinhado aos interesses geopolíticos dos EUA). Esta mantém uma relação promíscua com órgãos e agentes de Estado, que promovem vazamentos seletivos de informações que vão construindo uma agenda de denúncias que vai minando sistematicamente as bases de apoio do governo, liquidando reputações, legitimando prisões preventivas inconstitucionais, que são utilizadas como elemento de coação psicológica para a realização de “delações premiadas”. Estas, por sua vez, são tomadas como “verdades em si” e argumentos jurídicos suficientes para sustentar acusações que visam dar sustentação legal ao impeachment.
Quem promove portanto internamente, perante a sociedade nacional, o “golpe de Estado de novo tipo” no plano ideológico e de conformação dessa agenda política é a mídia burguesa (em especial a Rede Globo). Os juristas (sobretudo da Polícia Federal, Ministério Público, Poder Judiciário, e agora também a OAB) contribuem com os argumentos jurídicos que pretendem conferir legitimidade jurídica ao “golpe de Estado de novo tipo”. E os parlamentares valem-se da atuação da mídia e dos argumentos construídos pelos juristas para sacramentar um impeachment já decidido de antemão, mas que precisava de fundamentos jurídicos sólidos para não ser considerado como um golpe de Estado.
Nesse cenário, o Direito se torna a arena central de disputa quanto ao caráter golpista ou constitucional do processo de impeachment em curso. De fato, se houvesse argumentos jurídicos suficientes, não poderíamos denominar o processo em curso como um golpe. Porém, como não há crime de responsabilidade configurado, e como as garantias constitucionais não estão sendo respeitadas neste processo, já podemos dizer de antemão que estamos diante de um “golpe de Estado de novo tipo”, cujas condições sociais internas passaram a ser viabilizadas a partir de junho de 2013.
3.2. A conjuntura política nacional: a implosão da “Nova República” desde junho de 2013 até o processo de impeachment de 2016
As mobilizações de junho de 2013 lançaram o Brasil num novo patamar da luta de classes, colocando em crise um conjunto de fatores que estruturavam o grande consenso das elites brasileiras e que estava materializado na “Nova República”, arquitetada pelas classes dominantes como resultado de uma transição “lenta, segura e gradual” em relação à ditadura empresarial-militar. É preciso em primeiro lugar compreender a arquitetura política (e também jurídica) da “Nova República” para entender então o caráter da crise brasileira atual.
O período ditatorial (1964-1985) teve o papel de atualizar o padrão de dependência da economia e da sociedade brasileira ao imperalismo estadunidense, liquidando com a tentativa de desenvolvimento autônomo de um capitalismo nacional baseado na reforma agrária, no aumento da massa salarial (consolidando um mercado de consumo de massa), na contenção das remessas de lucros ao exterior e no impulso à industrialização e à modernização do Estado brasileiro (que estava em pleno processo de estruturação no governo João Goulart, por meio de seu Ministro do Planejamento, o professor Celso Furtado). Em lugar deste projeto (que nada tinha de “comunista”, como se percebe) foi instituída uma “modernização conservadora”, que apostou na indústria de base (sobretudo petrolífera), no impulso do agronegócio, na financeirização da economia e na atração de multinacionais para o Brasil a partir de benefícios fiscais e da baixa remuneração dos trabalhadores brasileiros (o conceito de “superexploração” de Rui Mauro Marini).
No plano ideológico, a legitimação da ditadura se deu por meio da formação de um grande conglomerado privado de comunicações que funcionava na prática como canal de televisão oficial do governo militar: a Rede Globo de Televisão foi estruturada como uma grande rede nacional a partir de benefícios fiscais concedidos pelo governo, empréstimos a juros favoráveis, concessões não onerosas, ocupações irregulares (porém toleradas) de terrenos públicos e uso não remunerado de antenas e transmissores do sistema nacional de telecomunicações. Com isso, a ditadura promovia não apenas a legitimação do regime, mas também a integração nacional a partir da construção de uma narrativa unificada, ditada por Roberto Marinho.
No entanto, na perspectiva das elites dominantes, mais cedo ou mais tarde os militares teriam que sair de cena e uma nova ordem jurídico-constitucional teria que ser estruturada, sob a direção dos partidos da oposição civil burguesa à ditadura. Essa direção foi dada pelo único partido político de oposição reconhecido pelo governo ditatorial: o MDB, que reuniu diversos caudilhos liberais dos Estados brasileiros em torno de uma complexa federação partidária, sob a direção de grupos distintos como o de Ulysses Guimarães, o de Tancredo Neves, o de Orestes Quercia, além de setores que aderiam ao MDB no fim da ditadura, provenientes do partido oficial do regime (a ARENA, de onde migrou José Sarney e seu grupo político).
A “Nova República”, iniciada em 1985 com a eleição indireta de Tancredo Neves e José Sarney para a Presidência e Vice-Presidência da República, tinha os seguintes compromissos fundamentais: convocação de uma assembleia constituinte para a estruturação de um novo sistema constitucional tido como democrático pela sociedade nacional e internacional; garantia da manutenção de compromissos assumidos pela ditadura e de seus interesses por meio da manutenção de Ministros nomeados pela ditadura em postos-chave do Poder Judiciário, dos chamados “Senadores biônicos” e outras fórmulas artificiais estabelecidas pelos militares como condição para “retornar aos quartéis”; manutenção do monopólio das telecomunicações como forma de garantia dos interesses dessas classes dominantes no plano ideológico, sobretudo em virtude dos perigos trazidos pelo reascenso das lutas populares representada pelas greves operárias do ABC paulista, pelo renascimento do movimento camponês e pelo fortalecimento do movimento popular, da teologia da libertação e das comunidades eclesiais de base.
A chamada “Constituição Cidadã” de Ulysses Guimarães é portanto o grande pacto jurídico-político fundamental que estrutura as bases da “Nova República”. Por mais que seja, em toda a história constitucional brasileira, uma das leis fundamentais mais democráticas, legítimas e progressistas que já se teve, a CF/1988 traz consigo todas as contradições do contexto da “Nova República”, que teve e segue tendo hoje como partido dirigente o PMDB. Desde o início da “Nova República”, os 2 únicos momentos em que o PMDB não foi governo no plano federal foram no período Collor (que terminou com o impeachment) e nos 2 primeiros anos do governo Lula (que só não terminou em impeachment na famosa “crise do mensalão” porque, para sobreviver, Lula negociou a entrada do PMDB no governo, trocando cargos e verbas públicas em Ministérios e empresas estatais em troca de apoio político no Congresso Nacional).
Desde o fim da crise política do “Mensalão” (com a entrada do PMDB no governo) e a reeleição de Lula em 2006, parecia que o clima de estabilidade política seria duradouro. O Brasil viveu nesse período sua efêmera “era de ouro”, com a implementação do PAC, a alta do preço das commodities no mercado internacional, o forte crescimento do PIB (puxado sobretudo pelo consumo interno, especialmente no contexto da rápida recuperação em relação à crise econômica de 2008) etc. Porém rapidamente o cenário começa a mudar, e o momento simbólico que inicia o processo de corrosão das bases políticas da “Nova República” será, sem sombra de dúvidas, as mobilizações de junho de 2013.
As jornadas de junho de 2013 começaram como pequenas mobilizações da chamada “oposição de esquerda”, além da esquerda anarquista e autonomista. Enquanto a oposição de esquerda (sobretudo PSOL e PSTU) impulsionava as mobilizações contra os gastos promovidos pelo governo federal com megaeventos como a Copa das Confederações (dentro dos Comitês Populares da Copa), o movimento anarquista e autonomista impulsionava os protestos contra os aumentos de passagens de ônibus por meio do Movimento Passe Livre (MPL). Como os aumentos de tarifas ocorreram em praticamente todas as capitais brasileiras no início de junho de 2013, ambas as lutas acabaram confluindo num momento em que o Brasil se tornava o centro das atenções na imprensa internacional em virtude do início da Copa das Confederações.
Apesar de significativas, as mobilizações não eram no entanto massivas nesse primeiro momento. A mídia dominante, como sempre, tratava de rotular a militância como “baderneira” e se posicionava contra os protestos. No entanto, como que num “passe de mágica”, de um dia para outro 2 novos fatores surgem e serão decisivos para a grande mobilização que viria em seguida: 1º o surgimento de novas pautas que passaram a mobilizar sobretudo setores da juventude de classe média e da pequena burguesia, chegando até alguns setores da juventude beneficiada por programas como o PROUNI, mobilizados às ruas por pautas ligadas ao combate à corrupção (sobretudo uma misteriosa “PEC 37”, sobre a qual voltarei na sequência); e 2º uma mudança de atitude da mídia, que passou a apoiar as manifestações e a realizar coberturas abrangentes, em tempo real, buscando estimular a participação da juventude e direcionar sua revolta contra o governo federal.
Esse novo momento é aquele que produziu toda a massificação das “jornadas de junho”, e é o momento mais conhecido desse processo. Quem esteve nas ruas neste período sabe bem que a mobilização estava longe de ter um conjunto definido de bandeiras de luta, um programa de reivindicações ou qualquer liderança que tivesse a legitimidade para negociar pautas que representassem resultados concretos daquelas manifestações. Junho de 2013 foi um momento de catarse da juventude brasileira, insatisfeita com os avanços insuficientes ocorridos no Brasil no período “lulista”, porém sem uma consciência política e histórica formadas para além dos discursos convencionais da mídia e das redes sociais.
Um ator que pode ser considerado decisivo para a mobilização da juventude em junho de 2013, mas que até hoje não havia sido devidamente caracterizado como força política, como “fator real de poder” que emergiu no atual período histórico, é o Ministério Público. É notório a todos aqueles que participaram das jornadas de junho de 2013 que pautas até então completamente desconhecidas, como a famigerada “PEC 37” (que pretendia retirar os poderes constitucionais de investigação criminal do Ministério Público), levaram uma grande quantidade de jovens da classe média às ruas mobilizada pelo tema do “combate à corrupção”. Como isso foi possível?
Certamente, tal agenda não foi estabelecida por “geração espontânea”. Ainda há que se confirmar os modos como tal processo se deu, mas parece cada vez mais forte a evidência de que grupos internos do Ministério Público (e especialmente do Ministerio Público Federal), passaram a construir ferramentas de mobilização política e instituição de redes de influência, de modo que suas agendas corporativas próprias passassem a reverberar na sociedade. E a principal ferramenta de mobilização utilizada foram as redes sociais. Como resultado, a PEC 37 foi imediatamente arquivada no Congresso Nacional, e o Ministério Público compreendeu que a mobilização da “opinião pública” era uma ferramenta fundamental que deveria ser explorada de forma concomitante às ações jurídicas propriamente ditas (algo que nós da AJP já sabemos há muito tempo e fazemos a partir das mobilizações dos movimentos sociais).
Diante da crise de junho de 2013, a presidenta Dilma Roussef veio a público com 5 propostas para atender uma pequena mas importante parte das reivindicações das ruas. Uma delas, certamente a mais estrutural e estratégica de todas, era a convocação de uma Assembleia Constituinte exclusiva para a realização de uma profunda reforma política, dado que a CF/1988 (não por acaso) atribui de forma exclusiva ao Congresso Nacional a competência normativa sobre o tema. O resultado foi que, em menos de 24 horas, diante das pressões e chantagens do PMDB (sobretudo o ultimato do vice-presidente Michel Temer), a proposta teve que ser descartada, pois afetava de forma estrutural as bases políticas da “Nova República”.
Diferente portanto de análises que afirmam que junho de 2013 representou uma crítica ao “lulismo”, na verdade essas mobilizações colocaram na agenda política nacional algo muito mais profundo: trata-se da dissolução dos elementos estruturais da chamada “Nova República”. Diferente do que muitos analistas acreditam, a “Nova República” não se refere apenas àquele período de transição até um novo regime constitucional caracterizado pelo governo Sarney. A “Nova República” iniciada em 1985 perdura até hoje, e são seus fundamentos centrais que estão em crise desde junho de 2013.
A “Nova República” estabeleceu seus fundamentos na CF/1988, sendo alguns de seus elementos centrais:
- a manutenção de uma economia capitalista, garantida pelas instituições jurídico-políticas que protegem a propriedade privada e monopolista dos meios de produção;
- a manutenção de uma economia dependente, impedindo que o Estado atuasse de forma direta em determinados setores da economia nacional, como fizera anteriormente Getúlio Vargas ao criar empresas estatais estratégicas (como a Petrobrás, CSN, Fábrica Nacional de Motores etc). Tudo o que a CF/88 autoriza é o papel “regulamentador” ou “fiscalizador” do Estado, mas que não pode “competir” em atividades econômicas pois isto geraria “desequilíbrios” (segundo os economistas neoliberais) na economia nacional. Com isso, o principal agente de promoção do desenvolvimento econômico numa economia dependente como o Brasil, que é o próprio Estado, passou a ser proibido de se valer de diversas ferramentas de atuação, condenando o Brasil a passar por um lento mas sistemático processo de desindustrialização desde o início da “Nova República”;
- a manutenção dos privilégios corporativos atribuídos a instituições provenientes da ditadura e que não passaram por processos internos de democratização, como o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Polícia Federal, as Polícias Civis e Militares, as Forças Armadas etc. Essa medida resultou numa espécie de “pacto” destas instituições com as forças políticas dominantes, que puderam governar o país durante todo o período seguinte sem serem acossadas por investigações, denúncias e responsabilização jurídica por irregularidades que ocorrem de forma estrutural em todos os âmbitos da Administração Pública (municipal, estadual, distrital e federal);
- A instituição de uma democracia de “baixa intensidade”, limitada quase que exclusivamente à representação política e à competição entre os partidos políticos sem qualquer limite estabelecido à influência do poder econômico e midiático nas eleições;
- A manutenção do oligopólio dos meios de comunicação;
- A afirmação de um conjunto amplo de direitos fundamentais para legitimar a Constituição da "Nova República", mas que não confere ferramentas institucionais para “tirá-los do papel” (ex: o direito a reforma agrária existe na CF88, mas não pode ser realizado pois há o dever de indenizar os proprietários, o que inviabiliza a política pública no plano orçamentário).
Muitos outros elementos poderiam ser destacados como estruturantes da Constituição da “Nova República”, cujas contradições decorrem de suas próprias bases políticas, que se encontram atualmente numa crise que, muito provavelmente, é terminal. Qualquer que seja o desfecho da atual crise brasileira, é certo que aquele grande “consenso social” que estruturara a “Nova República” (da qual também participaram os trabalhadores, gostemos disso ou não) está esgotado, e seu resultado será, de uma forma ou de outra, o fim da Constitução da “Nova República”. Vejamos brevemente as razões dessa conclusão:
- caso o impeachment seja derrotado, a maior parte do PMDB se encontrará na oposição ao governo Dilma e seguirá atuando junto com as forças sociais e políticas golpistas para desgastar o governo e o PT com o intuito de formar um novo bloco político de orientação neoliberal, com vistas a vencer a próxima eleição presidencial e com isso implementar um conjunto de medidas neoliberais que representam, na prática, o fim da maior parte dos direitos e garantias fundamentais da CF/88 (que são elementos do pacto de classes instaurado pela “Nova República”);
- caso o impeachment ocorra, simbolicamente ter-se-á o golpe definitivo contra a CF/88, e a implementação imediata desse conjunto de medidas neoliberais que representam, na prática, o fim de tais direitos e garantias fundamentais.
Dado que a classe trabalhadora brasileira (que bem ou mal foi representada durante todo o período da “Nova República” por Lula e pelo PT) dá sinais de que não aceitará a destruição deste conjunto de direitos e garantias fundamentais que lhe atraíram para o “pacto de classes” instaurado pela “Nova República”, o resultado é que neste momento, taticamente, sua atuação ocorrerá no sentido de exigir a manutenção destes direitos previstos na CF/1988. No entanto, assim como tal Carta já não mais interessa ao principal partido da “Nova República” (o PMDB), tampouco interessará à massa trabalhadora no longo prazo a manutenção de suas bases fundamentais, por seus próprios limites estruturais. E isso se torna mais evidente a partir do momento em que os movimentos sociais defendem a realização de uma Assembleia Constituinte exclusiva para a reforma política, ou agora com propostas que começam a ganhar força de convocação de uma nova Assembleia Constituinte geral, que proporcione romper com as amarras sob as quais estávamos submetidos até então.
É evidente que existem muitos riscos no processo que está em curso neste momento. O fim da Constituição da “Nova República” pode levar a uma nova conformação social, jurídica e política que não é necessariamente melhor que as condições que tínhamos até este momento. No entanto, de nada adianta neste momento se lamentar ou defender um "pacto social" que se esgotou. No atual momento de crise, todas as “ilusões constitucionalistas” (lembrando o termo utilizado por Lenin) terão que ser deixadas de lado. Direito é “política concentrada”, e são os cenários políticos da luta de classes que devem ser analisados.
É o que pretendemos fazer no próximo post:
4. O "golpe de Estado de novo tipo", se consolidado, representará simbolicamente o fim da Constituição da "Nova República". Mas o que virá depois?
5. E aí, AJP: vai ter golpe ou vai ter luta?
Obrigada pela importante contribuição sobre a atual conjuntura de de tentativas de desmantelamento dos institutos de democratização. Os que tão duramente conquistados, agora sendo atacados pelos grupos que sempre estiveram à espreita e se recompondo para a reconversão da democracia brasileira aos braços do autoritarismo e endurecimento contra os processos de independência dos grupos e classes trabalhadoras em nosso País.
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