Há algum tempo venho refletindo sobre as articulações possíveis entre Assessoria Jurídica Popular (AJP) e construção teórica definida como etnodesenvolvimento, não apenas devido o curso do qual sou professor e que possui o referido nome, mas também para apresentar possíveis novos entrelaçamentos da prática acadêmico-profissional da AJP.
Pois bem, uma primeira questão talvez seja propor certa conceituação do termo etnodesenvolvimento. No mesmo período histórico em que se pensava o conceito de desenvolvimento sustentável – década de 80 – nos países europeus, na América Latina fervilhavam debates entre diversos especialistasacadêmicos, culminando com sua primeira apresentação pública na “Reunião de Peritos sobre Etnodesenvolvimento e Etnocídio na América Latina”, promovida pela articulação entre a UNESCO e a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO), em dezembro de 1981, na cidade de San José/Costa Rica.
Desde então, muitos autores – destaco: Rodolfo Stavenhagen, Guilhermo Bonfil Batalha, Ricardo Verdum, Gilberto Azanha, Ivani Ferreira de Faria e Rodrigo Azevedo Grünewald – vêm trabalhando na definição do conceito, sempre na linha de questionar o modelo de desenvolvimento historicamente imposto aos povos colonizados que tem por base ideologias capitalistas e coloniais, com a proposta de “outro” modelo que recupere o legado político-cultural e socioambiental destes povos.
Não pretendo realizar um apanhado teórico extenso, mas referi apenas, dentre os autores citados, aquele que considero que possui a definição que melhor possibilita a articulação com a práxis da AJP, que é o texto de 1982 de Guilhermo Bonfil Batalha denominado de “El etnodesarrollo: sus premisas jurídicas, políticas y de organización”. Para Batalla (1982), o etnodesenvolvimento requer que as comunidades sejam efetivamente gestoras de seu próprio desenvolvimento, que busquem formar seus quadros técnicos de modo a conformar unidades político-administrativas que lhes permitam exercer autoridade sobre seus territórios e os recursos naturais neles existentes, de serem autônomos quanto ao seu desenvolvimento étnico e de terem a capacidade de impulsioná-lo. Para o autor, há duas questões fundamentais para o etnodesenvolvimento: (a) capacitação de quadros técnicos dentro dos próprios grupos indígenas (ou, no sentido hoje atribuído, povos e comunidades tradicionais), sendo que os programas de capacitação devem tomar como base a cultura para a qual se destina esta capacitação; (b) programa de etnodesenvolvimento deve ser assunto interno a cada povo, ou seja, deve ser definido e levado a cabo por cada grupo, sendo que o Estado, por meio de suas agências, tem o dever de apoiar e criar condições para que se torne possível.
Evidentemente as duas questões fundamentais levantadas por Batalla (1982) são a autonomia e a capacitação ou qualificação técnica dos povos diferenciados socioculturalmente, para os quais a AJP pode colaborar. Penso isso muito com base no que estamos realizando aqui na região do rio Xingu/PA, no assessoramento jurídico do Movimento Xingu Vivo Para Sempre (MXVPS), sendo a contribuição da AJP posta em dois planos: (a) na garantia da autonomia dos povos e comunidades tradicionais, sobretudo quando se objetivam em movimentos sociais, com especial atenção ao fortalecimento da participação nos espaços de negociação sócio-estatais, pois significa instrumentalizar a linguagem jurídica e os assessores jurídicos para atuar no auxílio à manutenção dos pleitos e proteção contra possíveis retaliações, em especial de políciais e da mídia, o que exige, por deveras, o acompanhamento permanente das ações políticas dos povos/comunidades/movimentos, colocando-se publicamente como assessor jurídico como medida que, de certa forma, constrói seguridade social aos membros internos, mesmo quando são alvos de ameaças e repressão; (b) na idéia de capacitação ou qualificação técnica, o que envolve a necessária formação de grupos de estudo ou de mini-cursos/oficinas em que sejam discutidos assuntos relativos às principais temáticas de direitos demandadas pelos povos/comunidades/movimentos, seja em termos de sua promoção (como os direitos indígenas e o direito ambiental) ou de sua proteção (como o direito penal, para saber lidar com a polícia e os agentes judiciais), sempre tendo por base os aspectos do pluralismo jurídico, da diversidade cultural e da autonomia que interferem radicalmente na percepção/aplicação dos direitos.
Penso que em contexto de conflito político nitidamente polarizado e de extrema impunidade institucional, como é o caso envolvendo a UHE Belo Monte, a AJP precisa estar articulada em rede com outras instituições públicas e sociais para saber tocar as demandas que surgem dos movimentos sociais, e que por vezes não está propriamente na necessidade de encontrar a melhor solução jurídica para os problemas sociais, mas antes na capacidade de dialogar com os movimentos sociais à eficácia das ações políticas a serem tomadas numa perspectiva de desobediência civil – ou de pluralismo jurídico – aos direitos e às instituições públicas, o que envolve a consideração de formulações estratégicas que considerem os riscos e os potenciais, os ganhos e as possíveis perdas simbólicas e físicas.
As reflexões ainda estão no início e há muito a problematizar com as experiências adquiridas a cada dia. Temos muito que aprender com os povos/comunidades/movimentos, neles é que estão os verdadeiros advogados populares que, sem precisar de nenhum diploma universitário, constroem as possibilidades de formulação e efetivação dos direitos no cotidiano dos embates políticos. O etnodesenvolvimento representa a escolha política por tipo de desenvolvimento social que respeite os interesses e as reivindicações étnicas situadas em determinado contexto local, cujos porta-vozes são homens e mulheres que, na maioria das vezes, só conheceu a face da repressão e do abandono do Estado, o que não significa dizer que não lutem por um Estado melhor, mas que pensar os direitos e o desenvolvimento a partir de suas epistemologias étnicas está necessariamente relacionado em repensar o modelo estatal, ao menos no que diz respeito à efetivação de políticas públicas e de participação social no poder.
Mestre Assis!
ResponderExcluirMuito interessantes suas considerações, ainda mais no tocante a problema tão sensível como o do conceito de "desenvolvimento", aliado a uma sua possível adequação no contexto interétnico de uma sociedade marcadamente feudal, como a nossa.
Vários movimentos sociais e populares têm se preocupado com a questão do desenvolvimento para além de o avanço técnico (ou seja, dos instrumentos produzidos por uma dada civilização ou cultura), mas no sentido do modelo político no qual se deve empregar a tecnologia. Imagino que isto se aproxime muito do etnodesenvolvimento, ao menos analógica ou tradutoriamente (como espécie de tradução). O que você acha?
Na verdade, este meu questionamento se dirige à necessidade de que vejamos o modelo de desenvolvimento como horizonte político, mas que se condiciona, de algum modo, pela produção técnica. Esta não deve subordinar aquele, mas também não pode ser vista folclórica ou redutoramente, pois também pode ser uma conquista da humanidade. De qualquer forma, isto nos impõe a discussão sobre como implementar os avanços técnicos, no sentido do bem-estar comunitário, dentro do conceito de etnodesenvolvimento.
Outra reflexão que seu texto me gerou: a aliança entre AJP e etnodesenvolvimento pode levar também a uma reflexão sobre a autonomia do direito indígena em relação ao estatal. A assimetria de poderes entre estes, chamemos assim, "direitos" só pode ser estranhada na direção do estado e sua proteção (ou a contrariedade a sua força) ou é possível reforçar um direito do inequivocamente outro (para usar a expressão de Jesus Antonio de la Torre Rangel) também?
Um grande abraço e parabéns pela ótima reflexão!
Ainda vou no Pará ver esses projetos que o Assis fala...
ResponderExcluirPazello,
ResponderExcluirSuas críticas sempre fomento o avanço da reflexão. Acho que a idéia de colocar a questão do desenvolvimento como disputa pelo modelo político de gestão da tecnologia é importante porque coloca em cena duas dimensões que estão inteiramente conectadas nos embates sociais: o modelo ou projeto político e a tecnologia, no sentido de técnicas e instrumentos, acredito.
É salutar, por exemplo, que o movimento indígena venha sistematicamente reiterando a necessidade de inclusão digital às aldeias/famílias indígenas, como forma de empoderamento e de inclusão social, na mesma linha dos cursos técnicos e universitários. Nesse caso, julgo que tem como ponto ideológico a necessária concepção de plataformas étnicamente diferenciadas de gestão política dos recursos tecnológicos, que tem por bases a questão da autonomia e da participação, e que está inteiramente inserida no debate - ainda que não explicitamente - do etnodesenvolvimento.
No entanto, fico também me perguntando se está sintese que você propõe não traria uma redução da própria concepção de desenvolvimento que podemos assumir. Digo isso, por exemplo, com base no curso que sou professor, pois aqui as disciplinas são divididas em sete eixos - direitos humanos; cultura; sistemas de saúde; educação; sociedade e meio ambiente; desenvolvimento e sustentabilidade; identidades, nação e territórios; linguagens étnicas - que trazem uma perspectiva, para falar numa linguagem dos direitos humanos, que o etnodesenvolvimento significa a efetivação integral dos direitos - ou de sua efetivação de forma indivisível - o que trás questões como o direito à tradição, às linguas étnicas e aos conhecimentos tradicionais, que não necessariamente estão vinculados à questão dos usos da tecnologia, apesar de fazerem parte de certa disputa por modelos políticos.
Sobre a outra reflexão que você coloca, é uma dúvida/problema que também tenho colocado, mas numa linguagem que se refere a relação entre reconhecimento jurídico e tradução intercultural, de modo a afirmar que os limites da tradução não implicam em limites ao reconhecimento, pois as produções nativas valem por si independente da reciprocidade comunicativa. Com isso, quero dizer que apesar das assimetrias de poder que engendram assimetrias de compreensão/tradução, as autodefinições nativas - incluse de sistemas jurídicos e jurisdição específicos - devem ser respeitadas, portanto, reconhecidas e protegidas pelo Estado sempre, como medidas que valem por si, assim como está disposto na Constituição Boliviana ao elencar as cosmologias indígenas como princípios constuticionais, o que leva a crer que o modo como os povos indígenas interpretarão a adequação de suas cosmovisões como princípios (e os usos/implicações aos direitos que daí se possa tirar) dará o tom da forma como se poderá adequar juridicamente as práticas nativas.
Enfim, são questões em aberto, mas pediria que você explicasse melhor a colocação do termo de la Torre.
Ah, Nay, sinta-se convidada, hehehe.
Assis,
ResponderExcluirSem dúvida, estamos sempre nos debatendo em torno do que consideramos seja o nosso universal e quais as mediações necessárias para realizá-lo plenamente. Por exemplo: direito, justiça ou política? Qual é nosso universal e quais são nossas mediações? Outro exemplo: direitos humanos, necessidades humanas ou desenvolvimento?
Creio que a complexidade da forma como medra o conhecimento e sua divisão do trabalho nos leva a ter de disputar, às vezes, conceitos distintos em setores diversos da produção do saber. Lutar pelo direito no âmbito do "direito" (o da ciência jurídica mas também o do direito positivo fetichizadamente maiúsculo) é uma postura conservadora caso não esteja colada a outros âmbitos. No entanto, as luta pelos direitos humanos no espaço dos movimentos sociais e populares, por sua vez, pode assumir aspecto de conquistas históricas muito importantes. E quando estes espaços se sobrepõem, então, logo a complexidade se faz de todo e é preciso avançar na clarificação dos problemas centrais a cada mediação. Daí que as propostas totais são sempre temerárias para nós. Mas nós não podemos nos escusar de a elas nos dedicarmos, sob pena de reducionismos, tais quais o que você imputou a meu comentário. Por outro lado, todavia, o etnodesenvolvimento como o universal (o guarda-chuva, para usar uma expressão banal, ou a totalidade, para fazer uso de um termo metódico) também rpecisa dar conta do problema da cultura como tecnologia que propicia a produção da vida. Nesse sentido, vem a pergunta: nos termos culturais, a linguagem ou a organização política, é uma tecnologia basal à produção da vida ou uma essência inextricável ao ser humano? A pergunta é redutora, sem dúvida. Mas das simples questões podem surgir grandes reflexões. Para mim, o seu apelo à incindibilidade do etnodesenvolvimento (a partir dos 7 eixos citados) é um grade exemplo disso.
Quanto ao problema da assimetria de poderes no reconhecimento da organização política dos povos (que no ocidente se chama direito), gostei de sua reflexão também e creio que sua "dúvida" é a questão de nosso tempo. Recorri ao Torre Rangel para afirmá-lo. Ele fala que a expressão "derecho" não tem equivalente entre populações indígenas mexicanas com as quais ele trabalhou. Mas encontra contato com a noção de "lo nuestro". Isto seria o "inequivocamente outro" na medida da radical alteridade que provoca e exige. Me veio à cabeça a partir de uma entrevista que o Luiz Otávio e eu fizemos com o professor e advogado mexicano e que está publicada, para quem tiver interesse: http://www.ccj.ufsc.br/capturacriptica/documents/n1v2/parciais/entrevista%28n1v2%29.pdf
Grande abraço e continuemos refletindo!