quinta-feira, 28 de abril de 2011

Ações afirmativas, e eu com isso?


Desde 2002, diversas universidades públicas brasileiras têm implementado modalidades de ações afirmativas – como as cotas – para permitir o ingresso diferenciado para determinados grupos sociais, como negros e indígenas.

Em 2008, foi bastante noticiado na imprensa o processo de discussão, no Congresso Nacional, do Projeto de Lei nº. 3627/2004, ainda em tramitação, que pretende instituir a obrigatoriedade das cotas sociais, raciais e étnicas nas universidades federais. No entanto, as ações ou políticas afirmativas possuem definição mais abrangente do que a simples ligação com as cotas.

Desde 1968, quando técnicos do Ministério do Trabalho e do Tribunal Superior do Trabalho se mostraram favoráveis a criação de lei que obrigasse as empresas privadas a manter uma porcentagem mínima de empregados negros, o Estado brasileiro e a iniciativa privada têm promovido políticas afirmativas em diferentes âmbitos da vida social – relações de emprego, serviços de saúde, sistema eleitoral e na educação – voltadas para enfrentamento imediato de barreiras econômicas, sociais e/ou culturais que dificultam a inclusão social de determinados grupos da população brasileira.

No âmbito educacional, as políticas afirmativas têm por propósito compensar, em parte, a gritante desigualdade e exclusão preconizada pelas práticas tradicionais de ingresso e permanência universitária, que não levam em conta: (1) as disparidades da formação básica dos estudantes de escolas públicas para com os de escola privada, além do percentual mínimo de ingresso de estudantes negros e indígenas; (2) as dificuldades de permanência do estudante durante o percurso acadêmico, o que exige “novos acessos” diferenciados a recursos econômicos e materiais que subsidiem a formação pedagógica e a qualidade de vida.

UFPR: entre colunas, jardins e (quem sabe?) pessoas

O rol de modalidades de políticas afirmativas no âmbito educacional é extremamente amplo, centrado tanto no ingresso e permanência universitária quanto na inserção no mercado de trabalho. Para se ter uma idéia da complexidade, apenas em relação ao ingresso diferenciado Fúlvia Rosemberg delimitou as seguintes modalidades: “a) aulas ou cursos preparatórios para acesso ao ensino superior e de reforço (melhoria do desempenho acadêmico); b) financiamento dos custos para acesso (inclusive no pagamento a taxas para o vestibular) e permanência no ensino superior; c) mudanças no sistema de ingresso nas instituições de ensino superior via metas, cotas, pontuação complementar etc.; d) criação de cursos específicos para estes segmentos raciais, tais como a licenciatura para professores indígenas da Universidade Federal de Roraima.”

Sem dúvida, a “onda” do momento são as cotas, modalidade onde uma parte do total de vagas existente no vestibular tradicional é separada para ser concorrida exclusivamente por estudantes de determinado público-alvo, como estudantes negros (cotas raciais), de baixa renda ou oriundos das escolas públicas (cotas sociais) e estudantes indígenas (cotas étnicas). Porém, cabe lembrar que atualmente as cotas vêm sendo preteridas, em muitas instituições de ensino superior, por outras modalidades de ingresso diferenciado, a exemplo das reservas de vagas – onde um público-alvo específico (basicamente, membros de povos indígenas) concorre em vestibular diferenciado, que ocorre separado do vestibular tradicional, de modo a possibilitar mudança nas estruturas do processo seletivo a fim de respeitar a diversidade sociocultural – e as turmas especiais – onde toda uma turma (ou curso) é criada para incluir tão somente estudantes oriundos de um determinado público-alvo, igual há na Universidade Federal de Goiás, com a formação, em 2008, da primeira turma especial de Direito específica para agricultores rurais e assentados da reforma agrária.

De modo geral, o debate sobre as ações afirmativas apresenta-se acirrado, marcado pela polarização dos discursos entre favoráveis e contrários, tendo em vista, basicamente, duas perguntas: estas políticas são justas? E mais, elas funcionam?

Em primeiro lugar, a idéia de justiça está atrelada a concepção de igualdade e liberdade que cada pólo discursivo enfatiza. Para os contrários as ações afirmativas (com ênfase nas cotas), estas políticas violariam o princípio da igualdade entre as pessoas ao outorgar “privilégios” de promoção social a determinados segmentos ou indivíduos da população, o que resultaria numa afronta ilegal a liberdade de concorrência que toma como medida central a capacidade intelectual de cada um para alcançar, por méritos próprios, as oportunidades e os objetivos de vida. Por outro lado, os defensores das ações afirmativas procuram enfatizar que a livre concorrência ao “sabor do mercado” é uma forma de permitir a manutenção das exclusões sociais historicamente estabelecidas, principalmente porque isenta o Estado da responsabilidade de intervenção nas relações de poder que estabelecem condições sociais desfavoráveis à inclusão e participação de determinados grupos.

Assim, enquanto os contrários as ações afirmativas educacionais sustentam que a justiça somente é alcançada quando a liberdade é mantida acima da igualdade, de forma a permitir que cada um faça de seu mérito pessoal a “ponte” para a materialização de direitos; os defensores das ações afirmativas educacionais desconstroem a falácia desta afirmação, pois as possibilidades de mérito pessoal estão necessariamente atreladas às oportunidades (leia-se: direitos) que se abrem antes, durante e depois de sua realização, e cujas condições de possibilidade estão imersas em relações de poder assimétricas localizadas para além dos domínios de cada indivíduo.

E quanto ao funcionamento ou eficácia das ações afirmativas em realizar aquilo que promete, será que de fato isto ocorre? Apesar do breve período de existência de políticas afirmativas no âmbito universitário brasileiro, estudos recentes demonstraram que estudantes cotistas têm alcançado notas iguais ou melhores do que estudantes não cotistas nos cursos universitários. Claudete Batista Cardoso, analisando o processo seletivo da Universidade de Brasília (UnB), revelou que em 27 cursos as notas do vestibular de cotistas foram maiores do que as de não cotistas, em termos proporcionais.

No entanto, a relação entre estudo, mercado de trabalho e ações afirmativas ainda é uma incógnita no Brasil. Não se sabe ao certo em que medida as políticas afirmativas tem conseguido realizar promoção e mobilidade social, além da melhoria de vida para segmentos populacionais como negros, indígenas e pessoas de baixa renda.

Neste caso, o melhor caminho seria observar países onde as ações afirmativas existem há mais tempo, como nos Estados Unidos, cujo início data do final da década de 60 do século XX.

Em análise ao relatório – denominado The Shape of the River (A forma do rio) – avaliativo dos 30 anos de ações afirmativas nos Estados Unidos, o jurista Ronald Dworkin chegou à conclusão que as ações afirmativas educacionais empreenderam significante impacto na segregação e discriminação racial por meio da oferta de vagas em universidades de alto prestígio que possibilitou não somente a ascensão social de diversos indivíduos negros a cargos profissionais bem remunerados, mas o fortalecimento da diversidade racial nas universidades e da própria idéia de democracia, o que, sem duvida, tem algum peso de contribuição na recente conquista norte-americana da eleição de Barack Obama, o primeiro presidente negro de sua história.

3 comentários:

  1. Olá, Assis!

    Ponto importante a ser discutido este que você expôs na postagem.

    Quanto à divisão binária entre os que condenam e os que apóiam a política das ações afirmativas, baseada nas concepções de igualdade e liberdade só faria uma observação, no que toca justamente a estes dois grandes valores, que parecem sempre em disputa no Ocidente do mundo. Igualdade sem liberdade? Liberdade sem igualdade? Será que são pólos antagônicos, ou apenas nos acostumamos a reproduzir esta "dessintonia" aparente por nos apegarmos aos conceitos liberais ou socialistas da nossa "língua" recebida? O que eu quero dizer é que quando se categoriza em pólos opostos valores tão caros, parece que fica difícil elaborar uma proposta que contemple uma realidade que tenhamos os dois... Será que conseguiríamos superar isso algum dia?

    Posso dizer que, para mim, é muito claro que esta idéia de liberdade herdada do liberalismo é distorcida e conduz à dominação. Se os participantes não estão em razoável condição de igualdade material, não existe liberdade para aquele que não tem como exercer suas capacidades por conta desta ausência de oportunidade. Contudo, isto não quer dizer que, por isto, o valor "liberdade" leve, necessariamente, a um desprezo a esta condição de igualdade. A idéia de liberdade não foi "criada" pelo liberalismo, ela já existia bem antes e em outras concepções. Prefiro pensar na idéia de liberdade como "não dominação" ( que é um pensamento milenar) e como possibilidade de exercer as capacidades dentro da coletividade (com vistas à coletividade), o que é bem representado no tema das ações afirmativas- e não só as que focam simplesmente em guardar vagas em instituições de ensino superior, mas as de objetivos mais amplos, como as que o Assis menciona.

    De qualquer modo,as ações afirmativas devem ser encaradas como um ponto de partida para algo melhor: o momento em que elas não serão mais necessárias. Sua existência, quiçá necessária hodiernamente, serve de lembrete de que estamos longe de vivermos o que declara, por exemplo, nossa Constituição ou as "Cartas" de Direitos Humanos que assinamos por aí.

    Abraços!

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  2. Oi Nayara,

    Excelente reflexão esta sua. Gostaria de pontuar, de início, que a perspectiva traçada no texto foi de realizar certa "análise de conjuntura" das ações afirmativas educacionais no Brasil, daí porque privilegiasse o tom da disputa de projetos educacionais, que também são projetos de sociedade, pois trata-se de questão, assim como a legalização do aborto e a reforma agrária, inseridas em certo campo minado que nada mais é do que a tensão existente em sociedade estruturada em conflitos e divisões de classe e com discriminações que geram injustiças históricas.
    Pois bem, não há porque encarar, numa perspectiva de proposição teórica, a tensão entre liberdade e igualdade como necessariamente insolúvel, mas a prática e os discursos têm demonstrado que aqueles que se posicionam a favor das ações afirmativas (quase) sempre apelam para o valor da igualdade material e os que se posicionam contrários, ao valor da liberdade individual.
    É certo que podemos discutir os usos e desusos dos valores, inclusive, acho que acima deles está a própria questão da justiça social e de certa hermenêutica constitucional que garante a existência destas políticas, além de toda sorte de estatísticas que comprovam a relação entre exclusão social e exclusão/barreira do acesso à universidade.
    Mas, por fim, concordo com você que as ações afirmativas tê caráter temporário. Elas, de fato, servem para corrigir em curto/médio prazo o que a melhoria da educação e das condições sociais como um todo poderiam trazer a longo prazo.
    Há de ver, também, como determinados segmentos sociais - em particular movimentos sociais e povos tradicionais - têm se apropriado das ações afirmativas, em especial às educacionais, para fortalecer suas lutas coletivas via instrumentalização de conhecimentos científicos e profissionais específicos, e, por outro lado, tensionando a disputa pela própria concepção de universidade, não apenas no sentido de mudança no paradigma científico, mas também da própria administração da universidade, pelas vias de certa democratização das relações internas e da produção do conhecimento que tem, entre outras bases, a idéia da popularização do espaço universitário ou da universidade popular.

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  3. por que há necessidade de ações afirmativas?

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