quarta-feira, 15 de abril de 2015

Direito, delírio, experiências e coisas reais



Este pequeno texto não é o nosso primeiro neste blogue. Em nossa primeira e recente experiência, tentamos expressar um pouco das angústias e conhecimentos que brotam da práxis extensionista de uma AJUP universitária.

Aqui, marca-se o início de uma nova caminhada. Agora advogados, neste início de ano passamos de graduandos à condição de colaboradores externos do LUTAS (UEL) a AJUP que há três anos ajudamos a construir em Londrina/PR. Assim nos tornamos dois jovens recém-graduados que não conseguem, porém, enxergar-se de modo algum como formados em direito. Como fazê-lo, afinal, se a cada experiência, a cada dia, a cada delírio, sempre crescem mais e mais as perguntas diante desse estranho objeto que é o fenômeno jurídico?

Foi nesse momento de transição pessoal que, com muito prazer, aceitamos o convite de escrever uma coluna e, assim, contribuir com este espaço de crítica e formação.

Nossas intervenções aqui serão mensais. E, assim como em nosso primeiro texto, nosso objetivo será o de problematizar questões vivas, cotidianas, provocar debates e reflexões e, com isso, desafiar o direito a ser desmistificado a partir do real. Daí o nome da coluna: Direito, delírio, experiências e coisas reais.

Começaremos falando sobre o que representou e representa participar de uma AJUP a esses dois caminhantes de primeiras viagens. Parece a nós que a grande vantagem da extensão universitária em relação ao ensino superior “tradicional” sempre foi o pisar no desconhecido. Longe das salas de aula e dos livros, o concreto das relações sociais desafia muito mais o estudante em sua dinâmica cognitiva. Nesse sentido, é possível perceber que a experiência ajupiana cinde-se inevitavelmente em dois momentos, complementares, mas distintos entre si: 1) trabalhar com o direito e com as demandas das comunidades assessoradas em conjunto com elas; e 2) pesquisar o direito como objeto do conhecimento humano, especialmente a partir dessas mesmas experiências práticas.

Bakhtine, acima, autor do conceito de
carnavalização como critério de
interpretação literária.
No primeiro desses momentos, no qual se desenrolam as atividades de assessoria jurídica propriamente ditas, as experiências são geralmente intensas, urgentes, impactantes, angustiantes, nos fazem chorar e nos desesperam. Ao final, voltamos para casa com a sensação de que seria necessário fazer mais, muito mais. Mas, sobretudo, é inegável que voltamos para casa diferentes. As marcas de nossos sapatos na extensão, que foram por um momento vivas, agora já vão se vertendo em pequenas memórias. E essas, ao se decantarem em nossa consciência, finalmente reviram toda a constelação teórica sobre o direito que carregávamos dentre os muros da graduação. Em poucas palavras: apreender o direito pelos olhos de uma AJUP inevitavelmente significa carnavalizá-lo, escancarar as suas mais íntimas contradições e, ao final, enfrentá-lo como algo palpitantemente estranho. E assim chegamos ao segundo e desafiante momento de uma AJUP universitária: pesquisar o direito, esse direito ao avesso e desafiante, esse direito carnavalizado e crú que acaba de ser apreendido na prática extensionista.  

A carnavalização não poderia
tornar possível
a criação da estrutura aberta,
da grande polifonia,
contra os costumes gnosiológicos
que deixam os juristas
com sua consciência em paz?
Luis Alberto Warat 1

 
 Capa do álbum Alucinação (1976), 
de Belchior
Lançados nessa aventura de brilho e escuro, sombra e luz, ao integrarmos uma AJUP vivemos essa intensa alucinação, semelhante a de um jovem Belchior que, logo no início de seu álbum de 1976, afirmava a condição histórica de ser um apenas rapaz, latino americano, sem dinheiro no banco, e vindo do interior, já denunciando, ao mesmo tempo, a incômoda contradição imposta pelo antigo compositor baiano que dizia tudo é divino, tudo é maravilhoso...

Também percorremos nossa própria alucinação na graduação, conhecendo por meio de simplificações de sala de aula aquilo que viria a ser o direito. Até que podemos, em dado momento da graduação, dar dois grandes gritos, ainda que prematuros. O primeiro deles veio da desilusão: nada é divino, nada, nada é maravilhoso, nada é sagrado, nada, nada é misterioso, não.

Já o nosso outro grito, esse que ainda amadurece em nós, vem da puberdade de nossa alucinação, como o cantor ao chegar à faixa central de seu disco: o grito de já não estar mais interessado em nenhuma teoria, em nenhuma fantasia, nem no algo mais. O que nos interessa, agora, são justamente todas as coisas concretas, narradas nos versos seguintes da música, versos carregados de cotidianidade (jeans, motocicleta, violência, tráfego, pessoas cinzas normais) que chegam a passar despercebidas até a chegada do refrão novamente.


Curiosamente, após o ápice do álbum representado nessa música que lhe dá o nome, o poeta-advogado destina as quatro canções finais, já em musicalidade mais densa e de prosa entristecida, para falar do passado, presente e futuro. Alerta para o delirante não cantar vitória muito cedo não (Não Leve Flores); anuncia as mudanças em um passado que não nos serve mais (Velha Roupa Colorida); retrata sua pesada caminhada, de sonho, de sangue e de América do Sul (À Palo Seco); e tem a certeza que aflora da pele do retirante de que nada é divino nem maravilhoso para aquele que vem do Norte (Fotografia 3x4).

Como o compositor cearense, que deixa o futuro para a última canção do álbum, Antes do Fim, nós o fazemos igual.

Regredindo ao estranhamento do direito após a carnavalização da ordem jurídica pelos delírios do real, nos perguntamos: será que aí, nesse caos instaurado, poderá abrir-se a possibilidade de transformar o velho, aquelas falsas percepções sobre o direito, em algo novo verdadeiro?

Talvez.

Talvez seja esse o misterioso local onde, pelo esforço do delírio, poderemos conhecer teoricamente o direito. Essa será nossa aposta: arriscaremos aprender a delirar com as coisas reais, arriscaremos nos entregar a esses delírios como negação do retorno ao velho antigo. Apostaremos em, assim, nos reaproximarmos do direito, depois de carnavalizá-lo, como objeto pensado, agora enfim a partir das experiências concretas.

Pelo olhar dos olhos do povo, dissipadas as nébulas de suas mistificações, o nosso compromisso será com aqueles que sofrem nas mãos da ordem posta, com os pretos, pobres, mulheres, discriminados, estudantes, humilhados do parque e todos os trabalhadores… Essa será a nossa aposta epistemológica. Essa será a subida ao mirante2 mais elevado para observarmos as determinações concretas que permeiam a nossa sociabilidade e o direito dentro dela. Eis o método pelo qual o delírio nos regredirá ao concreto. Eis o método pelo qual esperamos, enfim, encontrar o direito nas coisas reais...

E a única forma que pode ser norma
é nenhuma regra ter;
é nunca fazer nada que o mestre mandar.
Sempre desobedecer.
Nunca reverenciar.”
Belchior, Como o diabo gosta

Reservamos a esses últimos parágrafos uma nota indesejada, cujo motivo ainda nos é difícil aceitar. Não poderíamos terminar o texto sem reservarmos suas linhas finais a um rapaz, latino americano, pai, que no dia 13 de abril de 2015 deixara órfãos seus versos e poesias. Eduardo Galeano, poeta que também sonhava a partir de coisas reais, que era capaz de mirar lo que no se mira, pero lo que merece ser mirado, coincidentemente nomeara uma de suas poesias pelo nome de El derecho al delírio, declamada no vídeo logo abaixo.

Por ocasião de sua partida, assumimos então mais um compromisso com o advento desta coluna, um compromisso galeano: qualquer que seja a nossa busca, o de sempre poetizar a vida e a escrita com simplicidade, sem perder de vista os sonhos, nem o contato com o real.

¿Que tal si deliramos por un ratito?
¿Que tal si clavamos los ojos, más alla de la infamia
para adivinar otro mundo posible? 3



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(1) WARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abando do sentido e da reconstrução da subjetividade. Vol. I.   Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004.

(2) Ver LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2000.

(3) GALEANO, Eduardo. Patas arriba. Madrid: Centro Bibliográfico y Cultural: 1998.

2 comentários:

  1. Vida longa à coluna Direito e delírio!
    Nosso querido Belchior disse a desobediência com lindeza nessas canções.
    Sempre que escuto este verso do delírio como experiência com coisas reais me lembro do Marx. É mesmo um desafio, ainda mais na juventude, fazer esta escolha, com tanta tentação, não é mesmo?
    Bela escolha que fizeram para o nome! abraços

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