domingo, 7 de fevereiro de 2010

Mais sobre o advogado popular

Alô companheir@s da Assessoria Jurídica Popular!

Na primeira postagem deste ano da graça de 2010, camarada Ribas perguntava: o advogado popular é um ser em extinção? Tendo em vista a importância do tema (tanto pra nós da AJP como para o povo explorado e oprimido do atual sistema-mundo), trago aqui alguns elementos a mais pra pensar a questão.

O senhor da imagem ao lado pode parecer a primeira vista mais um daqueles Lordes aristocráticos da Inglaterra vitoriana. Mas, na verdade, seguindo o relato do excelente livro do ainda jovem Friedrich Engels, "A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra", este senhor ao lado pode ser tido como um dos primeiros advogados populares da História moderna. Trata-se de William Prowting Roberts (1806-1871), advogado, proveniente de família da classe média de Manchester, descrito por Engels como "o terror dos juízes de paz da Inglaterra".

Roberts fez jus a este título porque patrocinava causas jurídicas do nascente proletariado inglês, principalmente das minas de ferro e carvão, contra os proprietários destas minas, que além de pagar salários irrisórios, mantinham os trabalhadores em condições terríveis de insalubridade. "Coincidentemente", os magistrados que julgavam as causas patrocinadas por Roberts eram também proprietários dessas mesmas minas! (algo como aquilo que Gilmar Mendes faz hoje quando julga trabalhadores em luta pela terra...)

Mesmo nessa obviamente desfavorável situação, Roberts, que além de advogado era um importante dirigente do movimento cartista na Inglaterra, ganhou tantos casos para o proletariado das minas inglesas contra os proprietários, que, além de receber a referida alcunha, tornou-se um advogado "full-time" dos trabalhadores, especialmente nas associações operárias (os sindicatos não eram legalizados naquele tempo) ligadas ao movimento cartista. Faziam isso recolhendo fundos entre estas associações, que pagavam assim um salário suficiente para Roberts se manter como advogado dos trabalhadores, "aterrorizando os proprietários".

Quando tive notícia dessa extraordinária experiência histórica dos trabalhadores ingleses, logo liguei àquela concepção de advogado popular que tradicionalmente assimilamos com base na organização dos movimentos populares no Brasil. O advogado popular seria o advogado de movimentos sociais, especialmente aqueles que realizam lutas sem qualquer tipo de estrutura e sem recursos, a ponto de depender continuamente de patrocínio do Estado ou de organismos internacionais, através da estrutura das famigeradas ONGs. Em síntese: advogado popular = trabalho em ONG.

Pois bem. A experiência aqui relatada aponta, a meu ver, que esta é uma concepção extremamente restrita do que é o advogado popular. Na verdade, o advogado popular é o advogado das causas jurídicas do povo, entendido aqui como a "classe-que-vive-do-trabalho" (conceito sugerido por Ricardo Antunes). Ele pode até não ter "consciência de classe", mas é, de fato, em realidade, advogado do povo. Dessa forma, enquanto o povo existir (e sempre existirá no capitalismo, pois este modo de produção depende da classe-que-vive-do-trabalho para se reproduzir enquanto tal), seguirá existindo o advogado popular, mesmo que este não tenha consciência disso.

Agora, entendo a objeção daqueles que dirão que o "advogado de porta de cadeia", o advogado vendido do sindicato pelego, etc etc, não são advogados populares, apesar de patrocinarem causas do povo. Aí, passamos a discutir o advogado popular não apenas por aquilo que ele faz, mas pela opção ético-política de sua atuação. De fato, o advogado que atua em causas do povo enganando, manipulando o povo, não pode ser advogado popular. O advogado popular é, então, aquele que defende as causas do povo com base em uma opção ético-política em favor do pobre, do trabalhador, do oprimido (nos seus mais diversos sentidos) no atual sistema-mundo. Ele não precisa ser, necessariamente, socialista (até porque não há "um" socialismo, mas vários socialismos, como o próprio Manifesto Comunista já denunciara); mas deve, necessariamente, ter clara esta opção ético-política, que não é ainda consciência de classe.

Se estes advogados com a referida opção ético-política pelo oprimido só conseguem espaços para a defesa do povo nas ONGs, é basicamente porque a classe-que-vive-do-trabalho está tão fragmentada que não consegue ter estruturas próprias que não dependam de financiamentos do Estado (cuja moeda de troca geralmente é a cooptação política ou a auto-censura) e de organismos internacionais (geralmente ligados às políticas imperialistas de controle dos países periféricos). Se as associações operárias clandestinas na Inglaterra conseguiam se unir, através do movimento cartista, para financiar suas estruturas próprias de organização e de luta, por que, no Brasil de 2010, os sindicatos e movimentos populares não fazem o mesmo?

Percebam, então, o tamanho do nosso desafio: além de pacientemente buscar aproximar politicamente as diversas organizações populares (tarefa dificílima, na atual conjuntura), precisamos formar advogados populares cuja formação política esteja associada a uma poderosa formação técnica, entendendo que as batalhas jurídicas são uma parte da luta de classes, e que essas batalhas precisam ser travadas junto com o povo, em todas as dimensões, em todos os espaços, em todos os conflitos entre oprimidos e opressores, explorados e exploradores.

Oxalá um dia consigamos formar vários advogados populares e militantes políticos do porte de um William Prowting Roberts!

3 comentários:

  1. Olá Diego e leitor@s
    Fico muito feliz e satisfeito que aquela postagem tenha te instigado a escrever uma resposta!
    Com certeza nosso desafio é este, estar junto como opção ética.
    Temos muito a aprender com os advogados populares brasileiros, mesmo os que tiveram ou estão ligados a ONGs. Afinal, a auto-sustentabilidade ainda é um projeto que não têm experiências contemporâneas (que eu conheça). Este nosso amigo inglês é uma inspiração, com certeza.

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  2. Diehl,
    O mais paraense dos curitibanos!
    Que bela reflexão esta sua para marcar a entrada como autor no blog.
    Concordo com tudo, afinal, a discussão do do modo de atuação e de compreensão do advogado/a popular são algo que temos que realizar cada vez mais, sobretudo devido a carência deste quadro e a crescente demanda dos grupos sociais organizados.
    Mas também aprendi com o movimento indígena que somente o advogado popular/indígena não basta, é necessário termos o promotor/defensor público popular/indígena, o juiz popular/indígena, etc. Isto é possível? Sem dúvida, se tomarmos o termo popular com base nessa escolha ético-política, acredito que sim.
    É preciso pensar o desafio de mudar toda a estrutura do Poder Judiciário com base na sua popularização ou inclusão de profissionais ligados ético-políticamente a grupos sociais vulnerabilizadios!
    Grande abraço amigo!
    Excelente texto.

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  3. Diego e amigos!

    Sem dúvida, esta é uma questão crucial: o trabalhador do direito é um sujeito importante no conflito social instaurada pelo modo de produção capitalista. Sua onguização, de fato, é um dos males mais nocivos dos últimos tempos. Não que todas as experiências onguistas sejam necessariamente ruins, mesmo porque as exceções estão aí para confirmar a regra.

    Temos de pensar seriamente na atividade jurídica como totalidade: organização, crítica e resistência devem ser paridas junto aos trabalhadores. A organização popular, hoje, ainda é tímida no que pertine à inserção dos advogados populares, basta ver o ascenso cada vez mais de tirar o fôlega da criminalização dos movimentos sociais populares; a crítica, relegada à teoria e ao academicismo já deu tudo o que podia dar sem práxis; a resistência ainda sofre com a marca da extrema assimetria dentro do conflito que a exige.

    A classe trabalhadora se organiza de vários modos e não podemos nós de atentar a este fato. A falsa dualidade produzida pela intelectualidade brasileira (seguindo as tendências európeias) em distinguir os velhos movimentos sociais dos novos, criou nos juristas críticas uma insensível ojeriza aos sindicatos ou às cooperativas populares, por sua estrutura historicamente coopatada. Ocorre que separar o problema identitário da questão de classe é perder-se na curva da história.

    Se Rosa Luxemburgo, em seu precioso "Reforma ou revolução?", dizia que sindicatos, partidos e cooperativas eram organizações formais destinadas a apenas reformar a sociedade, não o fazia senão para criticar as tendências de sua época, e não para rejeitar essa forma de organização política. Portanto, não se trata de "formas" boas em si, senão que devem unir os elementos objetivos e subjetivos que a luta pela transformação da sociedade necessita. Daí que, concordando com o Diego, seja o caso de voltarmos os olhos para as experiências dos sindicatos, a fim de que o encaremos como um verdadeiro movimento popular, dentre os quais as mais recentes resultantes têm sido apenas uma entre muitas formas de organização do povo trabalhador oprimido.

    Continuemos refletindo, que desse mato sai cachorro!

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