Sigo, aqui, minha reflexão sobre a universidade popular (iniciada na postagem do último domingo) e não sem considerar o peso que tal reflexão tem entre-nós, uma vez que gera muita expectativa e paixão. Os limites a que estou submetido são óbvios, em especial por ser exercício de (ainda) livre pensante, o que torna impossível uma autêntica universidade alternativa (para lembrar de minha última proposta em classificar a universidade popular conforme seus níveis de alternatividade: universidade de combate; uso alternativo da universidade; e universidade alternativa). Assim, quero frisar: este esboço reflexivo é incompleto, mas segue uma linha mínima, a qual devo, por ora, evidenciar. Trata-se de resgatar o histórico insurgente da universidade popular em nossa América (tarefa de minha primeira postagem), sendo exemplares as experiências do México e de Córdoba; colocar o problema da universidade popular no centro das preocupações do projeto de libertação do continente latino-americano (tarefa de hoje), seja como ponto a ser enfrentado com mais fôlego pelas teorias de libertação, seja como resultado das práticas revolucionárias vivenciadas na América Latina; e projetar a universidade popular, no encontro entre as suas formas de transição do que se tem hoje com o que se quer também hoje, tendo como referência a práxis dos movimentos populares insurgentes (tarefa do domingo próximo).
Inicio a reflexão de hoje perguntando: por que resistimos tanto em pensar nos conteúdos da universidade popular em nome de sua forma? Por que resistimos tanto em pensar na transição de uma universidade que está de costas para a realidade para uma que seja o seu oposto? Por que colocamos o processo educativo como o ponto gravitacional da mudança da sociedade em que vivemos?
Pois bem, meu primeiro rascunho de resposta - ainda que sem pretensão de eliminar as complexidades inerentes a esta problemática - vai no sentido de perceber que, em geral, se aposta em uma universidade que leve a seu reboque o processo revolucionário de transformação da realidade. Ou seja, antes a nova universidade, depois a nova sociedade. A meu ver, ingenuidade. Obviamente, não devemos cair em simplistas argumentos de quem vem antes, a subjetividade renovada ou a renovação das estruturas. Eis aí um processo dinâmico e envolvido na produção da vida, a qual aponta para algo que nunca pode ser esquecido pelos críticos: a práxis. A universidade popular é o todo que envolve forma, conteúdo e implementação do novo. É a unidade que dará a autenticidade ao projeto de sua popularização cujo significado está muito mais próximo ao de socialização que ao de popularidade.
É neste sentido que devemos estar atentos, todos nós, para o perigo do espontaneísmo educacional, o qual se revela como o contrário lógico da universidade popular alternativa. Daí que, como eu dizia, faz sentido pensar sobre este assunto a partir de uma gnosiologia liminar e de libertação desde a América Latina. Para mim, esta perspectiva não é suficiente por si, fazendo-se necessário pôr os olhos sobre a práxis revolucionária continental, assim como também pôr os pés no chão e as mãos na massa. A despeito de isso, porém, um conjunto de teorias de libertação tem muito a nos oferecer, no intuito de não jogarmos fora os grandes projetos teóricos que envolveram os latino-americanos, em especial no último século. É certo relembrarmos de um Mariátegui, como já fizemos, ou mesmo considerar a figura de um libertador e educador popular, como José Marti. Menos certo, contudo, é descuidar da experiência histórica levada a cabo no último meado do século XX, em termos de educação popular.
A proposta histórica de Paulo Freire não é fruto do acaso. Duas ordens de elementos se avizinham dela e dão-lhe um sentido inalcançável caso nos afastemos de tais ordens. Por um lado, Freire segue, de uma maneira ou de outra, o projeto de educação pública brasileira iniciada por Anísio Teixeira e sua aproximação, de teor nacionalista, com as classes populares (conferir a Biblioteca Virtual Anísio Teixeira). Por outro lado, Paulo Freire é fruto de um momento histórico em que fervilhavam experiências revolucionárias e que fizeram surgir as teorias de libertação latino-americanas, a partir da perspectiva dos "oprimidos".
Vejamos o que esta dupla genealogia nos informa. Com Anísio Teixeira, procura-se cristalizar no Brasil a educação para as massas. De alguma forma, este legado é assumido pelo ISEB - Instituto Superior de Estudos Brasileiros e sua versão nacional-desenvolvimentista do Brasil seria assumida em larga medida por Freire nos seus primeiros escritos e suas pioneiras ações. No entanto, é insuficiente dar mostras dessa tradição a partir da qual Paulo Freire se forjou (como o é, igualmente, colocá-lo no rol dos católicos progressistas). De uma banda, a "escola nova" de Anísio Teixeira enquistava-se de um certo liberalismo pedagógico (ainda que moderado) - o qual é essencial de ser entendido para afastarmos de vez suas infensas e deletérias influências, dentre as quais se destaca o espontaneísmo educacional e o papel secundário do professor no ato pedagógico -; de outro flanco, o isebianismo teve uma muito curta duração para os propósitos a que se pretendia dedicar, tais quais a reforma do Brasil e uma nova forma de pensar a realidade nacional. Neste caso, cabe ressaltar as figuras de Alberto Guerreiro Ramos e Álvaro Vieira Pinto, ambos homenageados por Freire em seus textos, sendo que o primeiro nos deixaria uma profunda crítica ao colonialismo intelectual e o segundo a perspectiva da construção de uma universidade nacional, a qual seria seguida de perto por Darci Ribeiro - ainda que este tenha sido um anisiano confesso (para este debate, confrontar os textos de Vieira Pinto, "A questão da universidade", e Ribeiro, "A universidade necessária" - vários livros deste último disponíveis em: Fundação Darci Ribeiro).
Paulo Freire, todavia, logo se desvencilharia de uma submissão a esta herança (que, em grande medida, merece ser resgatada) e apresentar-se-ia com um pensamento inovador. Se em seu "Educação como prática da liberdade" o pedagogo ainda é um nacionalista, em seus escritos seguintes, já redigidos no exílio, como "Extensão ou comunicação?" e "Pedagogia do oprimido", Freire já dá mostras de seu materialismo histórico (ver a Biblioteca Digital Paulo Freire). Todo o seu percurso como educador, porém, traria a marca de um grande projeto pedagógico para o Brasil e deve sempre ser relembrado: para além de a alfabetização de adultos, Paulo Freire formulou um "sistema" de educação alternativa que previa uma universidade popular de transição a partir da extensão universitária, coroando-se com um Instituto de Ciências do Homem e um Centro de Estudos Internacionais, voltado para o terceiro mundo. Esta perspectiva de totalidade reflete a preocupação freireana com respeito à práxis dos trabalhadores e sua tomada de poder, o que passaria pela educação e universidade populares. Nesse sentido é que se pode retomar a questão: o que é conscientização? Certamente, não é dar consciência a ninguém, mas sim um trabalho conjunto de troca mútua, em que todos aprendem e ensinam, mas com um objetivo indene, a revolução.
Mas já que falamos de "alternatividade", esclareçamos o que vem ela a significar. Não há, entrementes, menção a uma proposta alternativa que pretenda conviver com o "egotivo" (ego X alter), ou seja, com o que está-aí, com o hegemônico. Trata-se de uma alternativa que supere o estado de coisas da universidade elitista de hoje, mesmo que isso não signifique desprezar suas contra-hegmonias internas.
Por isso a importância de se pensar a universidade popular desde a América Latina, mas também trabalhar para ela. Assim, as experiências revolucionárias pelas quais o continente passou são efetivos testemunhos. Ainda que nos faltem elementos, é inegável que a socialização do ensino em Cuba tornou-se possível com a revolução de 1959, assim como o socialismo do século XXI também tem investido nisso (e, dessa forma, abarcamos o ciclo revolucionário latino-americano tão destacado pelas teorias de libertação, em especial por Enrique Dússel: Cuba, Chile, Nicarágua, Chiapas, Venezuela, Bolívia e Equador; ainda assim, há de se atentar para os limites e contradições de todos estes processos, mesmo aqueles já findados).
Todo este conjunto de experiências práticas e teóricas deve ser tema da universidade popular. De nada adianta apostarmos na "forma" como sendo o carro-chefe desta discussão. Muito pouco resolveremos o nosso problema, caso creiamos que o diálogo pode melhorar o ensino jurídico se nos mantivermos aferrados ao eurocentrismo teórico e ao etnocentrismo das práticas. Muitíssimo pouco se avançará, caso entendamos ingenuamente que a universidade popular deve ser expressão democrática do respeito às diferenças, se estas acentuarem o mercado de trabalho e as técnicas que instrumentalizam o mundo de hoje. Pode ser que estejamos, com a forma dialógica, envidando um uso alternativo da universidade, mas a sua alternatividade revolucionária estará distante ainda assim. Que eu não soe, com meu depoimento reflexivo, como um antidialógico, porque, ao contrário, penso que a teoria da ação dialógica de Paulo Freire nos é central e é a partir dela, por exemplo, que devemos ressistematizar o ensino jurídico (e todos os demais "ensinos"). Mas esta teoria pressupõe a denúncia e o anúncio de uma nova sociedade. Como fazê-lo? Espero que nos indaguemos sobre isso e deixemos nossas opiniões não só aqui no blogue.
Ver também outras postagens de nosso blogue sobre o tema:
- Universidade popular, de Luiz Otávio Ribas;
- Autonomia universitária ou colonialidade do saber?, de Ricardo Prestes Pazello.
O novelo da universidade popular está começando a ser "desinlinhado" no blogue...
ResponderExcluirReflexões claras Sr. Ricardo Prestes Pazello. Requer um tanto de fé nos resultados e pressupõe a coincidência, dos participantes, do ponto de partida da conscientização. Para falar a verdade, da minha parte é o que eu mais temo e isso é em relação a mim mesma, aliás eu-com-os-outros. Eu pretendo ser professora, mas não sei se estou certa da minha legitimidade, enquanto tal ( no futuro), para a empreitada que esta ideia de universidade popular exige.
Eu nem acredito que escrevi isso...
Pazello,
ResponderExcluirReflexões continuadas de imensa qualidade crítica, parabéns!
Acho que o tema da universidade popular necessita incorporar toda a parte histórica e teórica que você estabelece, mas com a reflexão ética que coloca no final, ou seja, de que se trata de assumir o compromisso com a transformação mútua da sociedade-universidade, para o qual não há receita de bolo, nem tampouco escolhas sem resistências.
Todavia, continuo a acreditar que os pilares da revolução de Cordoba são fundacionais de outra proposta universitária, é dizer, o protagonismo estudantil e a articulação com as classes populares.
E vamos continuar a refletir...
Naiara,
ResponderExcluirApesar de certo pessimismo em sua crítica, creio que ela não deixa de ser importante, afinal é preciso não romantizar a relação com os movimentos populares, por parte dos assessores populares. Ainda assim, creio seja importante a crença e aposta em um horizonte mais largo do que este que nos obrigam a ter. O velho Mílton Santos, em um de seus últimos e mais conhecidos textos, falava na superação do pensamento único, consubstanciado pela globalização. Temos de pensar como o todo conforma as particularidades e perceber que a utopia também pode ser concreta. Aliás, sem o não-lugar-ainda (ou o ainda-não blochiano), deixamos de lado uma grande parte da realidade e esquecemos que a crítica (ou melhor, críptica) não é só o que é factível pragmaticamente, mas também principiologicamente.
Assis,
Muito me honra e me deixa contente seu comentário. Sem dúvida, há muito que se acumular nessa discussão, De toda forma, concordo plenamente na importância da reforma de Córdoba e no protagonismo estudantil e sua relação com as classes populares. Penso que seja o caso de pensarmos na autogestão nesta experiência, como vários movimentos populares costumam empreender suas tarefas educacionais. Nesse sentido, a experiência soviética de um Macarenco (transliteração mais comum: MAKARENKO) em obras como o "Poema pedagógico" são-nos fundamentais, ainda que colocadas em outro contexto geopolítico. Vamos adiante com nossas reflexões!
Oi!
ResponderExcluirSr. Ricardo Prestes Pazello, só estou tentando expor minhas inquietações dentro do que você traz nas suas reflexões. Com isso, eu não quero negar o sonho, a utopia, só não quero me afastar demais do presente e de toda a sua conjuntura que não parece propícia a tantas certezas a tão longo prazo.
Mas claro que sei que fixar um objetivo, ainda que distante, pode ser um excelente ponto de partida para esta transformação. O que eu sinto falta mesmo é da discussão em torno do ponto de partida...
Entretanto, ainda que eu parece absolutamente discordante (o que talvez nem seja o caso), eu peço e dou grande incentivo para que continues a expor suas reflexões. São elas que estão trazendo o debate à tona novamente, ainda que de modo tímido da parte dos comentadores.
Abraço...
Pazello
ResponderExcluirMuito bom texto sobre a universidade popular!
Sou fascinado pelo projeto de Paulo Freire, inspirado em Anísio Teixeira. A Universidade de Brasília poderia ter sido um bom passo, se não fosse o golpe militar e a sua invasão em 1968.
Pensemos no exemplo da Escola Nacional Florestan Fernandes e façamos votos de solidariedade e apoio a esta linda iniciativa do MST!