Após o fim do evento "Direito e Ditadura", organizado pelo PET do Direito da UFSC, semana passada, em Florianópolis, resta a reflexão sobre muitos dos pontos levantados nos debates e falas.
Os advogados, nas defesas dos presos políticos utilizaram o "direito da ditadura" contra o regime político, para salvar algumas vidas dos perseguidos, nos complexo processos e inquéritos militares do período de 1964 a 1985, no Brasil. Com a suspensão do habeas corpus, mesmo assim, puderam advogados, como Modesto da Silveira (foto), criar defesas e estratégias de resistência e preservação da vida dos presos políticos. O acento estava na criatividade, no blefe, no enfrentamento, no uso da própria hierarquia militar e outras poucas regras do jogo impostas pelos militares.
O direito de resistência também foi utilizado contra o regime político autoritário. Vladimir Saffatle (foto) interpreta que o uso da violência contra um Estado ilegal é legal. Além disto, é um dever. Aquele Estado que usa da violência para além do direito é ilegal. As pessoas diante desta ilegalidade devem insurgir-se, pois este ato representa a única manifestação de legalidade, juridicidade, na luta pela preservação/conservação de um espaço para expressão democrática. Este direito a resistência está situado mesmo na teoria liberal, principalmente, a partir da carta revolucionária francesa de 1789. Refere-se ao dever individual de resistência contra toda forma de opressão. Principalmente, a opressão imposta pelo arbítrio de um Estado autoritário. O estado deve, na concepção liberal, conservar e garantir o direito por meio da violência institucionalizada, aquela que impõe a decisão tomada no âmbito estatal para a sociedade civil. O limite é o direito.
Quando desaparecem os limites do direito e a política está deposto e suspenso o direito e instaurada a exceção. A utilização da exceção é comum nos regimes políticos/jurídicos brasileiros, para garantir e preservar relações sociais de privilégios da classe burguesa no poder.
O golpe de 1964 foi a instauração de um regime de exceção que garantiu interesses da classe burguesa incipiente brasileira e sua submissão no sistema capitalista dependente, periférico e colonial. A crise econômica e política pré-golpe trazia condições concretas de profundas transformações, como de fato ocorreram, com o regime militar. Mas, vieram no sentido de frear todas as reformas propostas pela esquerda no governo nacionalista de Goulart. Na visão de Nildo Ouriques (foto), o golpe de 1964 demonstrou claramente os limites da alternativa institucional, escolhida pela esquerda brasileira nacional-populista (como demonstram outras experiências posteriores, como o governo chileno de Allende).
O debate mais polêmico está na análise de conjuntura anterior ao golpe militar. O ascenso da participação e organização política e fortalecimento de movimentos populares seria suficiente para configurar uma situação pré-revolucionária?
Muitos, a esquerda, defendem que não haviam condições. Comprovadas pela pouca ou inexistente resistência ao assalto do governo de Goulart, assim como a incipiente organização das Ligas Camponesas e outros movimentos de trabalhadores, como o sindical, e o próprio Partido Comunista. Poucos, a esquerda, defendem que foram criadas algumas condições, uma vez que interpretam a política populista e nacionalista estratégica para contrariar a repressão da dependência e colonialismo. A direita, existem os alardes falaciosos, e de propaganda, que estaria em marcha uma revolução 'comunista', representada nas falas de Jango, Brizola, Prestes, e outros líderes políticos da época - conforme criticou Caio Navarro de Toledo (foto).
Finalmente, o que resta da ditadura é a experiência política do esgotamento da alternativa democrática liberal levada pela esquerda socialista/nacionalista. Ainda, evidencia a necessidade da construção de uma resistência e insurgência coletiva e popular. Resta ainda a herança perversa do direito da ditadura, como a lei de segurança nacional, o capítulo da ordem e segurança previsto na constituição de 1988 - que é cópia da de 1967 -, a justiça militar, e todas as práticas de uso do direito como instrumento do arbítrio - presente nos delegados complacentes com a tortura, e nos juízes que condenam o uso do direito de resistência das ocupações de terra, por exemplo.
Resta, por fim, esta necessidade de resgate histórico, o movimento pela memória e a justiça de transição. As propostas centrais são a abertura dos arquivos e a interpretação autêntica da lei de anistia de 1979 e responsabilização dos militares e civis que colaboraram em atos de tortura, sequestro e outras formas inadmissíveis mesmo no paradigma liberal democrático.
O legado final é a perversidade do aplauso do espectador da violência, arbítrio e autoritarismo com o pobre.
Fotos cedidas pela organização do evento, agradecemos, especialmente, a Junia Botkowsi.
Car@s,
ResponderExcluirsou da opinião de que o Direito não é ontológica ou deterministicamente um "instrumento insurgente" ou "contra-insurgente" em si, mas é mais um dos instrumentos existentes e que é usado pelas classes e grupos sociais em suas lutas. Por se tratar de uma "linguagem" intrinsecamente ligada ao elemento do Poder, o estudo que devemos fazer não pode se limitar a essa relação entre "Direito e linguagem" (tema importante e enriquecedor, pois apreende as especificidades do jurídico), mas às relações de poder que movem efetivamente essas relações.
No caso do debate entre Direito e ditadura, me vem a memória um evento recente da Comissão da Anistia do Ministério da Justiça. Há ali um trabalho interessante de resgate da memória e da verdade, inclusive manejando o Direito vigente em todas as suas limitações (ainda maiores depois da decisão do STF na ADI da lei da Anistia), mas que padece, a meu ver, de uma limitação maior: a visão política das relações de poder edificadas no período da Ditadura no Brasil.
Me refiro ao fato de se promover um discurso até certo ponto revanchista contra os militares, tendo como marco ideal a "sociedade democrática" em que vivemos hoje (sic), e buscando criar um consenso na sociedade civil para que nunca mais regressemos à barbárie do passado. Há aí pelo menos 3 questões que devem ser problematizadas: 1) a perspectiva reformista limitada à "democracia possível e existente" como se fosse o "melhor dos mundos"; 2) a incompreensão de que os militares não foram nada mais que os "cães-de-guarda" do verdadeiro responsável pela ditadura no Brasil, que foi o imperialismo estadunidense com a colaboração de nossa elite subserviente; 3) que de nada adianta um discurso moralista contra os militares para que "nunca mais volte a ocorrer" se o imperialismo segue a pleno vapor com sua máquina de guerra, de propaganda ideológica e de controle econômico dos povos.
Esse é na verdade um tema que exige uma discussão toda a parte neste espaço, que por falta de tempo não pude levantar na forma de postagem. Essa postagem do Luiz é um bom pontapé inicial.
Olá Diego
ResponderExcluirConcordo com esta avaliação de que o poder econômico que manejou os militares brasileiros continua a todo vapor.
Quanto ao estudo do direito como linguagem, não consegui entender sua crítica, assim como a questão do "ontologicamente" insurgente.
A análise da realidade social possibilita apresentar o movimento dialético de extinção do direito como como resultado da insurgência.
A experiência histórica demonstra, nos momentos revolucionários, que a ascensão de uma classe no poder, seja a burguesa, seja a trabalhadora, envolve também a insurgência de um direito.
O mais interessante é perceber que alguns instrumentos jurídicos foram colocados mesmo antes do momento da transição, no ordenamento daquele direito que se queria extinguir. Inclusive, na prática, estes instrumentos serviram para acelerar a desintegração deste direito.
Assim, a tarefa posta em nosso tempo, é a de apoiar a insurgência dos movimentos populares para a extinção do Estado e do direito capitalistas.
Agora, se isto envolve a insurgência de um "direito popular", são outros quinhentos. Ainda vou precisar comer muito feijão para definir minha posição neste debate.
Principalmente, refletir sobre o fato de que as revoluções francesa e russa envolveram a imposição de um direito autoritário, para alguns, a completa arbitrariedade. Longe, por exemplo, da concepção científica do comunismo de Marx.