Em um quibutz...
Afirmar que o direito é um capítulo da filosofia política de Marx não é mero esvaziamento de ambos os debates. Ao contrário, tem de querer dizer algo. O direito que se exprime, antes de mais, como organização política (o que vou chamar, aqui, de "filosofia política do direito") não equivale ao direito como forma jurídica do/para o capital (aqui, também, aparecendo como "economia política do direito"). E por que salvar o direito? Bom, em primeiro lugar, não se trata de salvar nada. Em segundo, vejamos o seguinte: se a tese da necessidade e desnecessidade, histórica e a um só tempo, do direito estiver correta e se se falar em direito significa se falar em política, há algo que deve ser afirmado nesta totalidade, neste real pensado. E, mais, a afirmação da organização política não basta, assim como não basta a negação do estado. Entre a materialidade da economia política burguesa, em sua fase avançada ou não, e a formalidade do estado de direito, há de se perceber um movimento quanto ao método de compreensão da realidade: faz-se necessária uma mediação sintética, a factibilidade histórica dessa negação. E a suprassunção - a que tem de despontar em nosso horizonte - realizadora da factibilidade crítica mencionada é, nada mais nada menos, que a autogestão, como realidade organizacional, historicamente alocada e espacialmente possível.
É certo que, neste terreno, caberia toda uma discussão acerca do significado histórico do estado nas sociedades que viveram o socialismo. A transição passou, necessariamente e sem exceções, pela estatalidade e adquiriu sua forma pela via do planejamento econômico. Muitas críticas houve sobre este conjunto de experiências, mas estranhamente pouco se avançou, de fato, no aperfeiçoamento desta racionalidade revolucionária. Ou a anarquia (mesmo que politicamente qualificada) ou a volta ao "livre mercado" (mesmo que constitucionalizado): estas foram as propostas teóricas que pavimentaram o debate, com hegemonia prática para a segunda opção. Os que escaparam a este dualismo não puderam enfrentar o referido aperfeiçoamento, seja pelo déficit de experimentos socialistas pós-1989, seja pelo abandono relativo da questão frente ao turbilhão de coisas a serem questionadas com a rearticulação financerizada do capitalismo contemporâneo.
Enfim, tudo isto para dizer que, afora algumas escolas consolidadas do pensamento de esquerda, a questão da organização política pós-revolucionária foi posta para escanteio e, junto com ela, a perspectiva da factibilidade organizativa para a própria revolução. Refiro-me à autogestão e suas potencialidades políticas e econômicas.
Falar em autogestão não deve ser um discurso sobre mais uma conceituação vazia, como assim se tornaram as problemáticas da democracia ou da sustentabilidade. Antes que isso, deve-se ressaltar sua importância para se pensar (e realizar) a transição horizontal para um novo modo de produção e uma nova ordem política. Portanto, não se trata de celebrar o irracionalismo (e des-pensar as modalidades outras de produzir a vida) assim como não se trata de rejeitar a ordenação da realidade, em sua substância última.
Negar o direito - ou afirmar a desnecessidade do direito - não é simples joguete de palavras, como pensam alguns. Tampouco é metafísica teorética, como imputam outros, como se o problema estivesse para além de nossa capacidade de racionalizar o real. Não, fazê-los significa caminhar para algum lugar e a este não-lugar-ainda chamamos de autogestão social, e cremos seja o melhor caminho a se nos mostrar.
Historicamente, a Comuna de Paris, analisada na postagem "'A Internacional' e o direito: notas sobre a ludicidade revolucionária", é um exemplo eloqüente desta proposta autogestionária. O autogoverno dos produtores é o seu sensível depoimento de factibilidade política. No entanto, outras experiências existiram e, conforme suas emersões no século XX, a partir delas muitas polêmicas se abriram, em especial em torno da estratégia a ser usada para a elevação do proletariado como classe dirigente até a extinção das classes mesmas.
Como disse, a discussão do papel do estado é crucial para esta reflexão. A vanguarda revolucionária e o partido, as guerras de posição e movimento, as reformas, a emancipação política das colônias, todas passaram por este problema. Algumas formações históricas, contudo, tentaram experienciar a autogestão social. Quiçá, os maiores exemplos deste último século tenham sido a Espanha e a Iugoslávia, de Tito, esta menos frustra que aquela. Ainda assim, não podemos menosprezar o cabedal revolucionário como um todo, com um destaque especial à revolução russa.
O interessante é notar, neste aspecto, que o testemunho político dos revolucionários espanhóis ou dos autogestionários iugoslavos acabou representando, do lado dos primeiros, um pioneiro triunfo dos libertários anarquistas, assim como, dentre os segundos, uma tendência isolada e exitosa ao mesmo tempo do socialismo com verve marxista. É óbvio que os descaminhos alvejaram tais experiências, mas é inegável que elas acabaram por se tornar o grau máximo de várias preocupações com a economia política do poder.
É comum no âmbito das ciências econômicas, políticas ou da administração, se dedicar alguns capítulos ao problema da autogestão. E parece que alguns relatos históricos são obrigatórios. Não só os espanhóis ou iugoslavos se apresentam para tal. Em momentos intermédios de rotineiras classificações, surgem os quibutzim israelenses ou os conselhos operários italianos, para ficar com um exemplo; também a cogestão nas empresas alemãs ou as cooperativas integrais ou setoriais de realidades diversas como a indiana, a canadense ou a latino-americana. Mais do que acentuar uma útil, segundo meu entender, didatização classificatória de momentos de gestão partilhada, é preciso frisar a inseparabilidade desta discussão com relação ao projeto político de reordenação social de um povo.
Isto porque é necessário pensar a hora e a vez da autogestão. E qual a sua hora? A da organização revolucionária popular, pré e pós tomada do poder. E qual sua vez ou seu lugar? Aquele que se dá com relação à organização política de um povo, em substituição ao direito-fenômeno.
A partir de autores como Guillerm e Bourdet (no livro "Autogestão: uma mudança radical"), podemos chegar a conclusões acerca da autogestão que nos colocam diante de três características: a gestão democrática, a produção coletiva e a distribuição dos resultados conforme o trabalho dispendido. Assim, ressalte-se a tríade participação-responsabilidade-informação, centrais para a dinâmica autogestionária.
Este debate nos põe diante do problema da centralidade do trabalho para a produção da vida, mesmo que nunca destituído de suas feições identitárias, ecológicas e inclusive libidinais. Por isso não pode a autogestão se reduzir a mecanismo político sem lastro econômico, por exemplo. Ou mesmo ficar apenas no plano do imaginário e/ou horizonte social, sem se concretizar nas instituições políticas ou nas esferas de produção direta. Mas isto não quer dizer que, em espaços de sociabilidade presentes em que a produção da vida não se coloque a partir do trabalho econômico, não se possa lançar mão da pauta autogestionária. Só significa que ela apenas se tornará plena com a totalidade da vida concreta, o que passa pelo labor.
Desse modo, a cooperação se mostra como essencial para qualquer forma de organizar a sociedade em que vivemos. Mas apenas a autogestão pode potencializar tal cooperação em seus aspectos de justiça e socialização dos meios de produção. Mesmo na mais absoluta heterogestão há um modo de cooperação próprio (e quem o desvendou foi o próprio Marx, em sua obra clássica - "O capital"). Quanto a isto, paga a pena uma classificação didática. São as seguintes as formas de organização social as mais típicas e abstratas: a) heterogestão; b) gestão participativa; c) cogestão; d) gestão cooperativa; e e) autogestão. São condicionantes desta serialização o atingimento dos três caracteres acima mencionados (gestão, produção e distribuição), assim como a amplitude territorial à qual se chega (afinal, não vivemos numa realidade desterritorializada, como propõem os servos do apocalipse pós-moderno e pós-industrial).
É dessa forma que se percebe avanços de proposição quando se passa da mera reivindicação por participação nas decisões da produção econômica (como no caso dos conselhos de fábrica) para a própria produção direta (como é o que ocorre nas cooperativas, chave-mestra do socialismo utópico cuja importância foi tão ressaltada, ainda que bastante criticada, por Marx e Êngels). Mas esta produção direta não é satisfatória se se mantiver circunscrita a guetos econômicos da realidade, devendo-se pensar a totalidade social como que guiada por tal principiologia. É dessa forma que lemos nas páginas de "Organismo econômico da revolução", de Diego Abad de Santillán, que toda a revolução espanhola se organizaria a partir de uma federação de ramos econômicos e de representação territorial, nos moldes da autogestão plena. Assim, não só as unidades produtivas seriam microssocialmente autogestionárias. Todo o resto da sociedade também o seria - portanto, uma autogestão macrossocial.
Com isto resta claro que um idealismo cooperativista não se confirma na realidade revolucionária. Propostas como a da economia solidária ou de redes de movimentos sociais só conseguem ter loquacidade se se voltam para estas perspectivas macro e sem que isso acabe sendo mera retórica vazia. Neste sentido, estão aquém de projetos políticos como os de Owen, Fourier ou Saint-Simon que, de alguma maneira, propunham que a integralidade de suas "ilhas-utopia" ou "cidades-do-sol" se organizassem cooperativamente.
Eis que a autogestão ganha significados de importância pouco diminuta para a "filosofia política do direito", já que supera a atual "economia política do direito". A lei do valor não é aquela à qual se cinge a normatividade na autogestão (e dessa forma se abre toda uma outra discussão sobre o aspecto normativo de uma organização política ampliada). E é neste exato sentido que ganha coerência o conjunto de estudos, dentro do que se denomina campo jurídico (no mínimo, campo jurídico de investigações), sobre o modo de cooperação dos movimentos populares, dos assessores jurídicos populares e do próprio trabalho, em geral, bem assim como sobre a maneira de se empreender esse salto qualitativo nos domínios da descolonização do saber, como face muitas vezes oculta da colonialidade do poder. É a autogestão como um capítulo à parte para as reflexões jurídico-políticas destas realidades.
A partir de que momento faz sentido a discussão sobre a organização política de nossa realidade social para além de a crítica ao que aí está? Esta questão, me parece, é conseqüência necessária das duas últimas reflexões a que me propus na coluna de domingo. Estas se referiram a uma consciente interconexão entre a problemática jurídica e a obra de Marx. Como já disse, pululam as publicações sobre isso bem como o interesse pela relação, ainda que por vezes maltratada pelos errantes cultores da teoria crítica do direito...
Afirmar que o direito é um capítulo da filosofia política de Marx não é mero esvaziamento de ambos os debates. Ao contrário, tem de querer dizer algo. O direito que se exprime, antes de mais, como organização política (o que vou chamar, aqui, de "filosofia política do direito") não equivale ao direito como forma jurídica do/para o capital (aqui, também, aparecendo como "economia política do direito"). E por que salvar o direito? Bom, em primeiro lugar, não se trata de salvar nada. Em segundo, vejamos o seguinte: se a tese da necessidade e desnecessidade, histórica e a um só tempo, do direito estiver correta e se se falar em direito significa se falar em política, há algo que deve ser afirmado nesta totalidade, neste real pensado. E, mais, a afirmação da organização política não basta, assim como não basta a negação do estado. Entre a materialidade da economia política burguesa, em sua fase avançada ou não, e a formalidade do estado de direito, há de se perceber um movimento quanto ao método de compreensão da realidade: faz-se necessária uma mediação sintética, a factibilidade histórica dessa negação. E a suprassunção - a que tem de despontar em nosso horizonte - realizadora da factibilidade crítica mencionada é, nada mais nada menos, que a autogestão, como realidade organizacional, historicamente alocada e espacialmente possível.
É certo que, neste terreno, caberia toda uma discussão acerca do significado histórico do estado nas sociedades que viveram o socialismo. A transição passou, necessariamente e sem exceções, pela estatalidade e adquiriu sua forma pela via do planejamento econômico. Muitas críticas houve sobre este conjunto de experiências, mas estranhamente pouco se avançou, de fato, no aperfeiçoamento desta racionalidade revolucionária. Ou a anarquia (mesmo que politicamente qualificada) ou a volta ao "livre mercado" (mesmo que constitucionalizado): estas foram as propostas teóricas que pavimentaram o debate, com hegemonia prática para a segunda opção. Os que escaparam a este dualismo não puderam enfrentar o referido aperfeiçoamento, seja pelo déficit de experimentos socialistas pós-1989, seja pelo abandono relativo da questão frente ao turbilhão de coisas a serem questionadas com a rearticulação financerizada do capitalismo contemporâneo.
Enfim, tudo isto para dizer que, afora algumas escolas consolidadas do pensamento de esquerda, a questão da organização política pós-revolucionária foi posta para escanteio e, junto com ela, a perspectiva da factibilidade organizativa para a própria revolução. Refiro-me à autogestão e suas potencialidades políticas e econômicas.
Falar em autogestão não deve ser um discurso sobre mais uma conceituação vazia, como assim se tornaram as problemáticas da democracia ou da sustentabilidade. Antes que isso, deve-se ressaltar sua importância para se pensar (e realizar) a transição horizontal para um novo modo de produção e uma nova ordem política. Portanto, não se trata de celebrar o irracionalismo (e des-pensar as modalidades outras de produzir a vida) assim como não se trata de rejeitar a ordenação da realidade, em sua substância última.
Negar o direito - ou afirmar a desnecessidade do direito - não é simples joguete de palavras, como pensam alguns. Tampouco é metafísica teorética, como imputam outros, como se o problema estivesse para além de nossa capacidade de racionalizar o real. Não, fazê-los significa caminhar para algum lugar e a este não-lugar-ainda chamamos de autogestão social, e cremos seja o melhor caminho a se nos mostrar.
Historicamente, a Comuna de Paris, analisada na postagem "'A Internacional' e o direito: notas sobre a ludicidade revolucionária", é um exemplo eloqüente desta proposta autogestionária. O autogoverno dos produtores é o seu sensível depoimento de factibilidade política. No entanto, outras experiências existiram e, conforme suas emersões no século XX, a partir delas muitas polêmicas se abriram, em especial em torno da estratégia a ser usada para a elevação do proletariado como classe dirigente até a extinção das classes mesmas.
Como disse, a discussão do papel do estado é crucial para esta reflexão. A vanguarda revolucionária e o partido, as guerras de posição e movimento, as reformas, a emancipação política das colônias, todas passaram por este problema. Algumas formações históricas, contudo, tentaram experienciar a autogestão social. Quiçá, os maiores exemplos deste último século tenham sido a Espanha e a Iugoslávia, de Tito, esta menos frustra que aquela. Ainda assim, não podemos menosprezar o cabedal revolucionário como um todo, com um destaque especial à revolução russa.
O interessante é notar, neste aspecto, que o testemunho político dos revolucionários espanhóis ou dos autogestionários iugoslavos acabou representando, do lado dos primeiros, um pioneiro triunfo dos libertários anarquistas, assim como, dentre os segundos, uma tendência isolada e exitosa ao mesmo tempo do socialismo com verve marxista. É óbvio que os descaminhos alvejaram tais experiências, mas é inegável que elas acabaram por se tornar o grau máximo de várias preocupações com a economia política do poder.
É comum no âmbito das ciências econômicas, políticas ou da administração, se dedicar alguns capítulos ao problema da autogestão. E parece que alguns relatos históricos são obrigatórios. Não só os espanhóis ou iugoslavos se apresentam para tal. Em momentos intermédios de rotineiras classificações, surgem os quibutzim israelenses ou os conselhos operários italianos, para ficar com um exemplo; também a cogestão nas empresas alemãs ou as cooperativas integrais ou setoriais de realidades diversas como a indiana, a canadense ou a latino-americana. Mais do que acentuar uma útil, segundo meu entender, didatização classificatória de momentos de gestão partilhada, é preciso frisar a inseparabilidade desta discussão com relação ao projeto político de reordenação social de um povo.
Isto porque é necessário pensar a hora e a vez da autogestão. E qual a sua hora? A da organização revolucionária popular, pré e pós tomada do poder. E qual sua vez ou seu lugar? Aquele que se dá com relação à organização política de um povo, em substituição ao direito-fenômeno.
A partir de autores como Guillerm e Bourdet (no livro "Autogestão: uma mudança radical"), podemos chegar a conclusões acerca da autogestão que nos colocam diante de três características: a gestão democrática, a produção coletiva e a distribuição dos resultados conforme o trabalho dispendido. Assim, ressalte-se a tríade participação-responsabilidade-informação, centrais para a dinâmica autogestionária.
Este debate nos põe diante do problema da centralidade do trabalho para a produção da vida, mesmo que nunca destituído de suas feições identitárias, ecológicas e inclusive libidinais. Por isso não pode a autogestão se reduzir a mecanismo político sem lastro econômico, por exemplo. Ou mesmo ficar apenas no plano do imaginário e/ou horizonte social, sem se concretizar nas instituições políticas ou nas esferas de produção direta. Mas isto não quer dizer que, em espaços de sociabilidade presentes em que a produção da vida não se coloque a partir do trabalho econômico, não se possa lançar mão da pauta autogestionária. Só significa que ela apenas se tornará plena com a totalidade da vida concreta, o que passa pelo labor.
Desse modo, a cooperação se mostra como essencial para qualquer forma de organizar a sociedade em que vivemos. Mas apenas a autogestão pode potencializar tal cooperação em seus aspectos de justiça e socialização dos meios de produção. Mesmo na mais absoluta heterogestão há um modo de cooperação próprio (e quem o desvendou foi o próprio Marx, em sua obra clássica - "O capital"). Quanto a isto, paga a pena uma classificação didática. São as seguintes as formas de organização social as mais típicas e abstratas: a) heterogestão; b) gestão participativa; c) cogestão; d) gestão cooperativa; e e) autogestão. São condicionantes desta serialização o atingimento dos três caracteres acima mencionados (gestão, produção e distribuição), assim como a amplitude territorial à qual se chega (afinal, não vivemos numa realidade desterritorializada, como propõem os servos do apocalipse pós-moderno e pós-industrial).
É dessa forma que se percebe avanços de proposição quando se passa da mera reivindicação por participação nas decisões da produção econômica (como no caso dos conselhos de fábrica) para a própria produção direta (como é o que ocorre nas cooperativas, chave-mestra do socialismo utópico cuja importância foi tão ressaltada, ainda que bastante criticada, por Marx e Êngels). Mas esta produção direta não é satisfatória se se mantiver circunscrita a guetos econômicos da realidade, devendo-se pensar a totalidade social como que guiada por tal principiologia. É dessa forma que lemos nas páginas de "Organismo econômico da revolução", de Diego Abad de Santillán, que toda a revolução espanhola se organizaria a partir de uma federação de ramos econômicos e de representação territorial, nos moldes da autogestão plena. Assim, não só as unidades produtivas seriam microssocialmente autogestionárias. Todo o resto da sociedade também o seria - portanto, uma autogestão macrossocial.
Com isto resta claro que um idealismo cooperativista não se confirma na realidade revolucionária. Propostas como a da economia solidária ou de redes de movimentos sociais só conseguem ter loquacidade se se voltam para estas perspectivas macro e sem que isso acabe sendo mera retórica vazia. Neste sentido, estão aquém de projetos políticos como os de Owen, Fourier ou Saint-Simon que, de alguma maneira, propunham que a integralidade de suas "ilhas-utopia" ou "cidades-do-sol" se organizassem cooperativamente.
Eis que a autogestão ganha significados de importância pouco diminuta para a "filosofia política do direito", já que supera a atual "economia política do direito". A lei do valor não é aquela à qual se cinge a normatividade na autogestão (e dessa forma se abre toda uma outra discussão sobre o aspecto normativo de uma organização política ampliada). E é neste exato sentido que ganha coerência o conjunto de estudos, dentro do que se denomina campo jurídico (no mínimo, campo jurídico de investigações), sobre o modo de cooperação dos movimentos populares, dos assessores jurídicos populares e do próprio trabalho, em geral, bem assim como sobre a maneira de se empreender esse salto qualitativo nos domínios da descolonização do saber, como face muitas vezes oculta da colonialidade do poder. É a autogestão como um capítulo à parte para as reflexões jurídico-políticas destas realidades.
A autogestão e sua relação com o Direito é um tema complexo, e acho que isso explica porque não houve comentários até agora a essa interessante postagem.
ResponderExcluirUm erro bastante comum ao abordá-lo, cometido pela maioria dos autores da área do "direito cooperativo", é de trata-lo a partir da sua vertente puramente "jurídica", quando esse é um caso clássico que demonstra como o Direito "vai a reboque" de outras relações sociais (dentre elas, as relações de produção) que se estabelecem, ainda que haja uma interação dialética em que o Direito não é só influenciado, mas também influencia.
A repartição da produção numa cooperativa a partir da quantidade de trabalho despendido por cada sujeito é um exemplo disso, e já foi analisado por Marx em sua "Crítica ao Programa de Gotha". Trata-se da aplicação de um "direito igual", que é a síntese do Direito burguês, da sociedade capitalista. Tal "direito igual" não existe, porém, por si só, mas sim porque persiste em funcionamento, nas relações de produção, aquilo que em economia se denomina de "lei do valor-trabalho". Portanto, o "direito igual" que fez com que as autogestões, mesmo em sociedades pós-revolucionárias, distribuísse o resultado da produção com base nas quantidades de trabalho de cada um, baseia-se ainda no valor-trabalho, e não nas necessidades de cada pessoa (essência da verdadeira liberdade ainda a ser conquistada, e que tornará a barbárie atual numa mera etapa da "pré-história da humanidade").
Como qualquer lei econômica ou jurídica, a lei do valor é histórica e relativa a uma determinada totalidade social. É ela que faz com que as pequenas experiências isoladas dentro da sociedade capitalista (economia solidária, cooperativas etc) em geral se arruinem, ou resultem em subremuneração e precarização das condições de vida do trabalhador. Enquanto essa lei do valor não for abolida, não há alternativa factível. Por isso, o único caminho ("sendero"?) efetivamente factível é em direção a esta u-topia, este "não-lugar" de uma sociedade baseada na satisfação de necessidades (e não no valor de troca da mercadoria), ao qual um dia chegaremos, pegando o gancho de outros debates nesse blogue.
Recomendo, por fim, que tod@s vejam a 3ª parte do documentário "A batalha do Chile", que mostra como estava em plena organização uma enorme autogestão da produção e da distribuição sociais no Chile durante o Governo Allende, e que foi violentamente interrompida pelo golpe militar dirigido pelo Pentágono.
Abraço!
Assevero a interpretação do Diego, sobre a importância do debate da autogestão.
ResponderExcluirPercebi, Pazello, que neste texto, tu vai além de outros textos seus, sobre o cooperativismo e o trabalho.
A autogestão está colocada como uma alternativa de sociedade, que envolve a negação/extinção do Estado e do direito. Precisamos aprofundar este conceito.
Diego, que tal uma postagem explicando o conceito da "classe-que-vive-do-trabalho"? que até onde me consta, é utilizado pelo Ricardo Antunes, por exemplo. Percebi que muitas pessoas não conhecem, nem o autor, nem a idéia.
Sobre a relação do assessor jurídico popular com a autogestão penso que deve ser levada as últimas consequências. Inclusive, se for factível, unir-se organicamente aos movimentos populares nesta proposta. Pensar formas de autogestão aplicáveis aos nossos grupos estudantis e de advogados, sempre foi algo que me encantou.
Acredito que este passo é essencial para negar o Estado e o direito. Alcançar, na prática, a autonomia total destes grupos da universidade, do Estado, das organizações internacionais, dos órgãos financiadores etc.