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Quando ingressei nos bancos da Faculdade de Direito, meados dos anos de 1990, uma das coisas que mais me deixava intrigado era ser tratado por “doutor”. Naquela época, ser aluno da egrégia faculdade de direito da UFBA ainda tinha certo glamour, e a sociedade em geral reproduzia os antigos “salamaleques” do bacharelismo. Sou do tempo em que não era fácil fazer Faculdade, ainda mais direito numa Federal. Tanta era a pompa que, mesmo sendo um simples estudante da graduação, era comum ser identificado e tratado por “doutor”. Naquela época, ainda sobrevivia um clima coimbrão decorrente do ideário dos docentes e discentes da Faculdade centenária: o piso de mármore branco, os livros da capa de couro, os bustos, os relicários, “datas venias”, ternos e gravatas. Nesse clima, ser doutor era parte “natural” de um ritual que as elites baianas já estavam acostumadas desde o Império. Mas essa coisa do “doutor” tinha um outro sentido, menos artificial. Lembro que no SAJU, Serviço de Apoio Jurídico Gratuito, onde construí toda minha trajetória acadêmica, as pessoas mais simples me identificavam comumente por “doutor Vladimir”. Tratava-se de uma forma de tratamento singela, sincera, típica de quem procurava ajuda, uma reverência respeitosa para com um pretenso “expert”. Se por acaso pedisse para não ser chamado de “doutor” era como se fosse quebrado um pacto de respeito, e por isso mesmo passei a não mais me importar com essa alcunha; passei a compreender, então, os limites e os possíveis sentidos legítimos do tratamento “doutoral”.
Toda essa lembrança me remete às recentes eleições do curso de direito da UNESC. O colega João Carlos, em várias salas, repetia algo que ficará em minha memória: “sou um professor chão de fábrica”. Confesso que ainda hoje, mesmo após a conclusão do doutorado, o que mais me causa estranheza não é ser tratado por “doutor”. Até porque não sinto nesse tratamento, nos dias atuais, aquele sentido respeitoso vindo das camadas populares, tampouco o sentido bacharelesco tradicional. Tanto do ponto de vista acadêmico (pós-graduação) como o profissional, penso que o termo “doutor” está sendo esvaziado dos seus sentidos legítimos e meritórios (se existir algum deles), passando a ser uma expressão jocosa, artificial, quase uma piada contada às avessas. Por tudo isso, nos dias atuais, o que mais me intriga é ser professor.
Ainda hoje quando algum aluno me chama ao longe “professor Vladimir”, demoro e titubeio. Serei eu mesmo? Para mim, ser professor, meu ofício, meu mandato, também sempre foi meu maior desafio. Um dia poderei, tal como o amigo João, ser chamado pelos alunos apenas como “professor”, e sentir nessa simples menção um reconhecimento raro, sincero, simples, que não precisa de nenhum rodeio ou pretexto protocolar. Poderei também, quem sabe, ser chamado de “doutor” com a mesma singeleza daqueles que sabem reconhecer o mérito sem precisar de máscaras; que sabem reconhecer, sem papas na língua, nem rancor, que por detrás dos diplomas na parede há legitimidade concreta, tempo e sonhos empenhados. E se algum dia as palavras “doutor” e “professor” puderem resgatar esses sentimentos vivos de minha memória (ou delírios), quem sabe terei encontrado o sentido pleno para toda minha carreira, o motivo para minhas lutas, vitórias e derrotas; terei encontrado, enfim, meu “chão de fábrica”.
Oi, Vladimir!
ResponderExcluirEu tenho seriíssimos problemas com esta história de doutor(a). Como alguém pode se sentir confortável colocando um abismo desses diante de um Outro que nos busca? Muito estranha essa "relação"...
Abraço