sábado, 13 de março de 2010
Um novo direito internacional desde a América Latina
Olá a tod@s da AJP!
Mês passado um dos debates que foram levantados neste blogue insurgente tratava das contradições geradas pela relação entre Revolução e Direito, a partir do processo que ocorre na Bolívia, dando azo ao que já se chama de "novo constitucionalismo latino-americano".
Seguindo os rastros destas contradições, é impossível deixar registrar nota sobre um importante evento ocorrido no final do mês passado, no paradisíaco balneário de Cancún, no México. Trata-se do evento que ensejou a criação, no já histórico dia 23/02/2010, da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC).
A CELAC reúne todos os países do continente americano, menos Canadá e Estados Unidos (também Honduras ficou inicialmente de fora, pois rejeitou-se o governo impostor hondurenho, porém reconheceu-se desde já a pertença do povo hondurenho à nova organização). Seu objetivo é, "simplesmente", ser o substituto da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Os motivos para tão drástica medida parecem incompreensíveis para os mais desavisados, inclusive (talvez principalmente) entre os juristas e estudantes de Direito que, em sua maioria, se preocupam apenas com o "direito posto" e a apologia ao "direito realmente existente", sem compreender as condições históricas, sociais e políticas que permeiam a produção e reprodução do Direito. Porém, para aqueles que compreendem o papel historicamente cumprido pela OEA desde o contexto geopolítico do pós-guerra até as recentes crises em Honduras, e, agora, na Argentina, percebem que este organismo internacional (e suas tão festejadas Corte e Comissão de Direitos Humanos) sempre foi um instrumento político em favor da dominação dos povos da América Latina.
Vale a pena conferir o editorial que o Jornal Brasil de Fato dedica a este histórico encontro, no qual, finalmente, "Bolívar derrotou Monroe". Lá, há um breve histórico dos "bons serviços" prestados pela OEA ao longo de todos estes anos:
- sua criação promovida pelos EUA num contexto de luta pela dominação da América Latina e contra o avanço do "espectro comunista";
- a expulsão de Cuba, não por ter feito uma revolução "violenta", mas por ter, dois anos depois, se declarado um país socialista (!);
- sua atuação ambivalente e legitimadora dos diversos golpes militares ocorridos no continente "em favor da democracia e da liberdade";
- a coexistência de sua concepção (liberal) de direitos humanos com a implantação do neoliberalismo na América Latina;
- o fato de ter sido o primeiro "sujeito de direito internacional" a reconhecer como legítimo o golpe (depois malfadado) na Venezuela em 2002;
- o silêncio diante do reativamento da 4ª Frota da Marinha estadunidense;
- seus esforços em prol do reconhecimento, pela comunidade internacional, da legitimidade do golpe ocorrido em Honduras;
- na atual nova crise das Malvinas, sem afirmar o direito do povo argentino à soberania sobre aquelas ilhas tomadas de assalto pelos britânicos.
Nao à toa, portanto, os países latinoamericanos começam a construir mecanismos nos quais sejam menos submetidos às pressões e influências do "grande irmão do norte", e isso em pleno processo de redefinição da geopolítica mundial pós-(pós?)crise capitalista. Realmente, como diz Hobsbawm, vivemos hoje tempos interessantes...
O passo seguinte da CELAC será dado em 2011, em Caracas, na Venezuela, onde os termos dessa nova organização deverão ser estabelecidos. E nós, da Assessoria Jurídica Popular, temos não apenas que acompanhar os debates que seguirão nesta nova organização, mas também participar ativamente desse processo, especialmente na construção de um novo sistema latino-americano de direitos humanos.
Vemos, portanto, que nasce também um novo direito internacional desde a América Latina. Cabe saber se vamos continuar nos adaptando e reproduzindo servilmente as concepções e os modelos liberais-eurocêntricos de direitos humanos, ou se vamos, juntamente com o povo latinoamericano, construir um novo e autêntico modelo, pensado desde a nossa realidade, desde a América Latina, desde o Outro, que também somos nós!
O desafio está lançado!
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Mais uma discussão deveras interessante aqui no blog. Entretanto, não sei se o caminho passa pela construção de um "novo" Direito Internacional de matiz latino-americana, ou pelo diálogo dos "anseios" latino-americanos por um "novo" Direito Internacional em relação ao Direito "(im)posto" pela dominação eurocêntrica e norte-americana nessa parte do mundo. Talvez o diálogo que parta dos “anseios” seja mais frutífero para a construção desse novo paradigma a partir da necessidade que temos de um “novo” Direito Internacional em razão de tudo quanto já aconteceu por aqui. Porém, não posso afirmar nada de maneira cabal, visto que em um cenário globalizante dominado por um neoliberalismo natimorto (mas ainda assim vivo apesar dos seqüentes golpes tomados nos últimos anos), o próprio “risco” inerente a essa sociedade, conforme bem expõe Ulrich Beck, exige soluções globais para problemas globais – e não apenas soluções locais em razão de “anseios” (perfeitamente lídimos) dessas localidades. Contudo, muito em virtude da dominação eurocêntrica e norte-americana que a América Latina sempre sofreu, concordo com Enrique Dussel ao dizer que a única filosofia possível para essa parte do continente é aquela que parte da Ética – do reconhecimento da alteridade do Outro, bem distante da objetificação perpetrada pelo capitalismo de consumo, o qual nos faz andar em meio ao “deserto do real”, como fala Slajov Zizek, sem qualquer ponto de referência em relação às possibilidades de futuro. Nesse sentido, acredito que essa discussão igualmente passa pelo crescente debate entre multiculturalistas e interculturalistas perpetrado na atualidade, considerando-se que adotar uma postura relativa a um “novo” Direito Internacional de matiz latino-americana está para uma espécie de “isolamento” desse local, está para uma visão multicultural, sendo que, ao revés disso, uma visão intercultural preceitua o diálogo entre culturas diversas no sentido de buscar um standard de reconhecimento que em tudo está para a própria proposta de Dussel em relação à Filosofia da Libertação Latino-Americana. Apesar disso tudo, trata-se de um debate que deve ser encarado com a maior seriedade e profundidade, sem arroubos ilógicos antes da tomada de decisões, sob pena de se recair em um “isolamento” que nenhum problema resolveria – redundando em um protótipo de dominação que, dada a natureza “politiqueira” inerente à América Latina, mais nos “prenderia” do que nos “libertaria”. Acho que é isso, por enquanto, o que me veio à mente ao ler esse texto acima. E parabéns pela atualidade e razoabilidade do debate proposto.
ResponderExcluirDiego,
ResponderExcluirCreio que a temática é essencial para a análise de nossa conjuntura, ainda que não deva servir esta proposta como solução fácil, ainda mais se considerarmos a possibilidade de a primavera latino-americana não continuar.
De toda forma, discordo do posicionamento do Eduardo, ainda que sua vigilância crítica seja muito importante. Não me parece que a busca pela articulação dos povos latino-americanos seja uma postura meramente "multicultural", uma vez que não podemos perder de vista que não se operacionaliza o "todo" (as soluções globais) senão por intermédio das "partes" (a necessidade de se reconhecer o quinhão histórico que deve ser o contributo de nosso continente). A dialética não pode idealistamente pressupor o todo sem mediações concretas. A geopolítica latino-americana (assim como a de outros continentes) é uma destas mediações concretas. Dússel, por exemplo, sempre estabeleceu seu ponto de partida geopolítico: a exterioridade não deixa de ser vista pela metáfora espacial centro-periferia. E, como diriam os descolonialistas contemporâneos, não podemos esquecer que uma postura pós-moderna (como pode ser interpretada a multicutural) esquece a mobilização das partes, pura e simplesmente deificando o fragmento. Portanto, o fragmento pós-moderno não pode ser confundido com o movimento dialético que imprescinde das partes, ou seja, multiculturalismo não é sinônimo de organização continental. O legado de Bolívar é interessante, mas mais que ele, nesta questão, José Marti tem muito a nos ensinar, quando percebe a cisão das duas Américas: a nossa América e a América que não é nossa. Da mesma forma, a teoria da dependência, demonstrando o desenvolvimento diferenciado da dinâmica imperialista na periferia do sistema-mundo.
Assim, fico com a crítica transmoderna de Dússel, que tenta resgatar materialistamente a dimensão moderna da utopia sem perder de vista a crítica a seus mitos. Sua capacidade crítica nos leva, inclusive, à crítica à interculturalidade, enquanto postura ingênua, uma vez que, como diria Paulo Freire, não se dialoga com quem não está disposto ao diálogo sincero (sugiro a leitura do artigo de Dússel, intitulado: "Transmodernidad y interculturalidad: interpretación desde la filosofía de la liberación" - em: http://www.enriquedussel.org/txt/TRANSMODERNIDAD%20e%20interculturalidad.pdf ). Ao mesmo tempo, porém, estes são os limites da própria nova organização latino-americana, envolta que está em reformismos e conciliadorismos de classe.
Um abraço fraternal a todos e continuemos o debate!
Olá pessoal!
ResponderExcluirFico muito feliz que estejamos voltando a este debate, que rendeu tanto da outra vez.
Concordo com o Diehl que este ato político simboliza muito para Nossa América.
Afinal, basta ler no panfleto da direita desesperada brasileira, a Revista Veja desta semana, que refere este novo organismo internacional como uma vitória sobre os Estados Unidos.
Lembro, como o Pazello, das palavras de Paulo Freire, sobre a necessidade de pensarmos a nossa realidade, a partir de nós mesmos. A proposta do instituto de estudos sobre os "povos do terceiro mundo" (terminologia da época).
Por isto é tão importante o chamada do Diego do papel das assessorias universitárias.
O que eu quero dizer é o seguinte: quantos de nós estamos dispostos a estudar a América Latina e ter uma atitude crítica em relação ao eurocentrismo?
Basta lembrarmos do congresso do NEPE em 2008, e da comoção que o discurso de um Nildo Ouriques causou em alguns renajuanos. Nesta ocasião, com seu geitão particular, o Nildo ressaltou a importância de estudar a teoria política e econômica da América Latina.
O desafio está lançado, quem vai apoiar?
Acompanhando atentamente o debate.
ResponderExcluirFico feliz com as (ainda poucas, em virtude da importância do tema) respostas e os comentários. Concordo com Eduardo na importância de mantermos uma análise crítica para não recairmos no "reboquismo" das experiências em curso, apesar de achar também que essa postura crítica não nos permite "ficar em cima do muro", não ter uma posição política clara nesse nosso momento histórico. A ressalva do Pazello é importante, especialmente para pensarmos o fundamento político e filosófico dessa nova perspectiva que buscamos, já que, a meu ver, o "multiculturalismo" "relativista" é um dos braços da concepção de Direitos Humanos proposta/imposta pelo imperialismo (com países não alinhados, usam John Rawls para justificar a intervenção "em prol dos DDHH"; com países alinhados, usam do relativismo para fechar os olhos ao sistema colonial, à exploração e à violação dos DDHH...).
ResponderExcluirLegal o Ribas lembrar daquele momento marcante do evento do NEPE. Penso que a crítica do prof. Nildo continua, infelizmente, bastante atual. A maioria da intelectualidade (inclusive muitos que se colocam do nosso lado!) tem se contentado em teorizar e promover lutas extremamente setorizadas (o que não significa que sejam desimportantes, mas sim que deveriam estar articuladas com as lutas maiores). Se apequenam diante do grande desafio que é pensar esse imenso processo que está em curso, e que vive hoje dilemas terríveis, que exigem respostas imediatas.
Como resposta a isso, o único jeito é seguir levantando estes grandes temas, e lembrar que toda concepção (necessariamente histórica) do Direito e dos DDHH está calcada numa dada teoria social, política, numa determinada filosofia, etc. Dessa forma, a construção desse novo paradigma (no qual nós da AJP temos um papel muito mais importante do que a maioria imagina!) exige que tenhamos também as nossas referências, a nossa própria concepção de mundo, que precisamos ir construindo num processo contínuo.
Assim como os autores indicados, outra referência interessante que pode nos ajudar nesse debate é a Marta Harnecker, que fala que nesse processo precisamos mesmo "inventar para não errar". As obras completas dela foram recentemente publicadas no sitio www.rebelion.org. Fica a sugestão.