quarta-feira, 3 de março de 2010

Coluna da Ana Lia Almeida

Quanto riso, oh, quanta alegria!

Os confetes e as serpentinas mal começam a enfeitar as ruas fevereiras de 2010 e já sentimos todos uma incontrolável e merecida vontade de nos divertir. Isso nos faz pensar que o propósito maior da vida é mesmo a alegria, e o Carnaval um de seus maiores patronos. É tempo de frevo, maracatu, axé, samba, chuva, suor e cerveja... tempo de recolhimento espiritual para alguns, o que não deixa de ser uma legítima busca pela felicidade.

É tempo propício também para refletirmos sobre a forma como nos divertimos. O lazer é um direito humano, e assim o diz nossa Constituição Federal de 1988 em seu artigo 6º. Um direito dos mais valiosos e fundamentais, portanto. Contudo, o que vemos à nossa volta cotidianamente são tristes carnavais cujos foliões parecem dançar um ritmo padronizado de estranhamento de si e dos outros.

Por que as pessoas, de um modo geral, mesmo quando estão nos lugares construídos para a diversão, não parecem em nada estar se divertindo? Por que elas freqüentam bares onde mal podem conversar por causa da televisão ligada em máximo volume? Por que a maior parte da população simplesmente decidiu que divertido é ouvir pseudo-forrós com mulheres semi-nuas mexendo freneticamente os seus corpos-objetos?


O direito humano ao lazer me parece estar bastante mal exercido e compreendido em nossos dias. A diversão não pode ser vendida num pacote padronizado, como se as pessoas fossem iguais e, pior de tudo, igualmente banais. O estranhamento a que me referi diz respeito, por um lado, a uma incapacidade geral de perceber-se enquanto sujeito, com interesses próprios a serem descobertos e outros a serem cultivados. Por outro lado, tal estranhamento nos impede também de perceber as pessoas no que elas têm de particular em relação a si mesmas, o que é uma grande forma de desrespeitá-las.

Não tenho dúvida de que esse estranhamento, que viola nosso direito fundamental ao lazer, é mais uma parcela cruel da opressão do nosso mundo capitalista. Tem muita gente ganhando dinheiro com a nossa falta de diversão, cinicamente nos convencendo de que estão nos divertindo.
 
É assim que a indústria do entretenimento – e concordemos, “entreter-se” não tem sequer semanticamente o mesmo valor simbólico de “ser feliz” – faz filmes ruins em Hollywood para assistirmos, produz realyties shows para nos esquecermos de nossas próprias e banais vidas, nos faz decorar músicas pornográficas e/ou idiotas e sempre, sempre, ganha muito dinheiro às custas de nossa suposta diversão.

Assim, também, transformamos cada ano mais um pouco o Carnaval numa festa privada, cheia de camarotes e cordões de isolamento, de onde podemos fingir que somos felizes. O desafio é romper este ciclo e descobrir o que verdadeiramente nos diverte, as coisas que nos fazem felizes ao nosso modo. Pensemos nisso antes do Carnaval que se aproxima.

Um comentário:

  1. O carnaval, sob o paradoxo que lhe é peculiar, se registra na história também como um momento de irreverência, de questionamento da ordem posta. Por isso, pessoas podem assumir personagens, apresentar ideias através de uma estética adotada nas fantasias e nas pinturas corporais.
    Essa pretensão parece ter sido incorporada por uma perspectiva comercialista do carnaval para destruir o que, de fato, pode se representar através dele. Em lugar de representar a "rua" como o lugar do povo e de suas manifestações, assume o interesse privado, se reduz a valores localizados e específicos de certos grupos, que, através da reificação humana, alimenta suas condições econômicas, e, por sua vez, estabelecem suas bases de existência e manutenção em preconceitos e compreensões sociais questionáveis.
    O pior de tudo é que, quando se tenta problematizar a música, as danças, as condições de lazer hoje (im)postas, muitas pessoas afirmam se estar buscando problemas onde não existe, muitas pessoas reclamam o "direito" de se "divertirem despretensiosamente" e de "sorrirem" com as letras e com as coreografias.
    Talvez, antes de pensarmos que conseguimos sair imunes de um momento "lúdico" como esse, poderíamos observar como vivemos hoje, qual o grau de respeito pelas pessoas que conseguimos construir em nossa sociedade, como tratamos as mulheres, as crianças e adolescentes, as pessoas negras, com deficiência, os pobres, as pessoas homossexuais.
    Será que a maneira lúdica de expressão não é a mais eficaz de sedimentar valores?
    O que podemos esperar de uma sociedade que, submetida a uma propoganda avassaladora do alcoolismo, da violência, inclusive, através de elementos musicais e coreográficos? Teremos mais ou menos dignidade e respeito às pessoas?
    Daqui a dez anos veremos os efeitos, sobretudo no nordeste, da mensagem "beber, cair e levantar" ou da mensagem "Jogaram uma bomba, no cabaré... Voou pra todo canto pedaço de mulher'

    'Foi tanto caco de puta voando pra todo lado
    Dava pra apanhar de pá, de enxada e de colher!'

    'No meio da rua tava os braços de Teresa,
    No meio fio tava as “perna” de Raché,
    Em cima das telha os “cabelo” de Maria,
    No terraço de uma casa tava os peito de isabé!'

    'Aí eu juntei tudo e colei bem direitinho
    fiz uma rapariga mista, agora todo homem quer!'

    'Pode jogar uma bomba lá no cabaré,
    Que eu junto os cacos das puta
    Pra fazer outra mulher!"

    É preciso problematizar, o que parece natural só se torna "natural" se for naturalizado. Naturalizar o desrespeito, é matar a dignidade humana.

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