Humberto Góes
O CONCEITO DE CASA CONTRA O
CONCEITO DE PROPRIEDADE PRIVADA NO FILME AQUARIUS
Em texto escrito por Túlio Jales e José Leôncio Guimarães Filho (http://dejure.org.br/…/aquarius-um-elogio-a-propriedade-pr…/ ), afirma-se a existência de um
discurso de defesa da propriedade privada em seu aspecto liberal e de um
possível egoísmo da personagem Clara. Estas seriam apontadas como algumas das
"contradições" do filme Aquarius, cujo propósito, entre outros, é
denunciar a ordem imposta à cidade pelas construtoras.
Em desacordo com que indicam os amigos, encontro outra
perspectiva de leitura do filme e de compreensão para o modo como é apresentada
a luta de Clara. Para expressá-la, primeiro, invoco um conceito que suponho
fugir em alguma medida à concepção liberal de propriedade, o qual considero
mais condizente com o conjunto das ideias esboçadas em Aquarius. É a categoria
teórica "casa", que, no contexto, pode ser confundida com a noção de
"território".
Usando argumentos que os próprios autores atribuem ao direito de
propriedade no pensamento liberal tendo em conta certa visão filosófica,
considero que a ideia de “casa” imprime a certo espaço marcas de subjetividade
que o transformam em “lar”, em “moradia” - mais do que em propriedade. Por
isso, apesar de ser considerado individualmente, o que parece surgir com a ação
de Clara é a defesa de seu “território”, construído com a história esculpida
nos objetos pessoais e no afeto constituído e difundido no cotidiano que se
enlaça ao lugar.
Tal como é retratado, este não é apenas o cenário em que as
coisas acontecem. É um sujeito que dialoga com Clara a todo o tempo. A
expressão disso está em outros protagonistas que igualmente atuam para a
configuração territorial do lugar, isto é, que contribuem para a formulação do
conceito de "casa" que Clara parece invocar com a sua ação de
desafiar tudo aquilo que afeta o seu território: a praia (e os tubarões com os
quais concorre para se banhar); a cômoda que aparece sempre que se pensa ou se
vivem os prazeres sexuais; os discos (e sua conexão com o presente por meio dos
pendrives); o misto de tecnologias novas e antigas que imprime ao território
imediato, ou seja, à casa, uma intertemporalidade; o esgoto identificado como
divisor de bairros, portanto, de territórios mais amplos em que se situam as
casas. Com esses elementos e juntamente com o sentimento de pertença que se vê
promovido do contato subjetivo com o lugar, o território mesmo vai sendo
definido, demarcado, o que também compreende a possibilidade de, dentro de
certas circunstâncias, configurar-se a entrada ou a saída, bem como o contato
desse lugar subjetivado com outros territórios com os quais aquele se
interconecta por meio do território maior da cidade, também composta
subjetivamente pelas pessoas que a realizam como tal.
Essa compreensão é o que parece surgir enquanto Clara caminha em
direção a "Brasília Teimosa", um território que a princípio estaria
proibido à protagonista do filme por sua condição social, e indica com clareza
os marcos subjetivos que definem a divisão dos territórios no ambiente da
cidade.
Nesse contexto é que igualmente se recompõe nas entrelinhas do
filme o direito de herança. Este não surge apenas com uma transmissão qualquer
de bens. Está intimamente ligado à ideia de cuidado com o território e à ideia
de cuidado que própria protagonista tem consigo mesma e com a relação que, a
partir de seu lugar, mantém com o mundo. Sob esta perspectiva, que passa pela
noção de "casa", o cuidado se vincula à uma concepção de segurança
que o abrigo pode proporcionar à existência humana.
Ao que parece, as pessoas, em maior ou menor medida, mantêm essa
relação de cuidado e autocuidado com sua "casa". Porém, talvez para a
maioria, todos os sentimentos que se dão em torno do território são passíveis
de se transformar em dinheiro, o que reduz a condição da "casa" à
concepção de "bem imóvel", portanto, de "propriedade". Não
é o caso de Clara, que deseja acima de tudo preservar o seu lugar – nem lhe
interessa saber o preço que lhe atribuem ao imóvel. Para ela, sua casa não tem
preço. Tem valor e esse valor não se reduz a pecúnia.
Tanto é assim que ela afirma à sua filha aquele espaço físico
subjetivado como sua "casa"; invoca o direito de preservar sua
"autonomia sobre o território" e diz que ela e os irmãos poderão
tomar decisões sobre o lugar somente depois de sua morte, portanto, quando os
laços que a enraízam espacialmente, porque irrepetíveis diante de sua condição
subjetiva, se perderão e/ou não poderão ser exercidos.
Apenas nesse instante é que vejo o direito de herança surgindo
em seu aspecto liberal. Ainda assim, como uma pretensa promessa ou alento
futuro para a filha. Não para a protagonista mesma.
Não se pode dizer que o filme não esboça incoerências e
conflitos sociais individualizados em seus personagens. Ao contrário disso, representa
as angústias e as inconsistências que cada um e cada uma pode viver diante do
mundo. Sintetizadas mesmo na defesa do lugar, são apresentadas as contradições,
os limites e o alcance que a própria luta de preservação vai produzindo. Nesse
bojo, emergem algumas tomadas de consciência, a exemplo do reconhecimento da
exploração do trabalho doméstico, minimizada pela tentativa de aproximação e de
construção de um sentimento de lealdade, de amizade, com a pessoa que atua como
empregada doméstica no que se define como "lar" ou
"moradia".
A casa é o lugar em que tudo ocorre, mas também vai sendo
marcada pelo traço subjetivo e cria ao mesmo tempo as condições para a
emergência e reforço dessa subjetividade. Por essa razão é que considero
inadequado pensar em um suposto egoísmo da parte de Clara. Na verdade, o que
ela faz é resistir à logica que se naturaliza nas pessoas diante da atuação
incisiva das empresas de construção civil para transformar todos os lugares da
cidade em bens constituídos por seu intermédio.
Não é o fato de os vizinhos e a filha terem sucumbido a essa
lógica que faz surgir em Clara o que se poderia chamar de egoísmo. Essa é a
qualificação negativa atribuída à protagonista pela construtora e pelos
personagens que tentam de forma violenta ou velada impor uma mudança de
perspectiva, bem assim, a alteração de sua postura classificada como
“intransigente” frente à proposta de compra, cujo significado se amplia ao se
perceber que vem junto com uma promessa de mais segurança, de comodidade, de novidade.
Ao contrário disso, a personagem assume em si mesma a resistência para
preservar a cidade da tentativa da sanha capitalista de conotá-la como um
“negócio”. Por isso é que Clara é vista pela construtora e por seus vizinhos
como um obstáculo que precisa ser removido. Não importam os seus sentimentos,
seus laços que territorializam o lugar. Ela não assume a lógica “normal” quanto
ao que, para a construtora, é um bem a partir de que pode se dar a sobreposição
de seus interesses econômicos a qualquer outro.
Por fim, observando nas imagens que compõem a obra
cinematográfica o apagamento das torres de luxo construídas em descompasso com
a historicidade do Recife antigo, considero Aquarius, sob outro aspecto, como a
organização de um discurso que nega às construtoras a condição de medium entre
as pessoas e a cidade. Isto é, considero que o filme se compõe como a defesa
evidente de que são as pessoas que podem definir o lugar e as condições de
viver e transformar a cidade.
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