sábado, 31 de julho de 2010

Lira Filho: porque a crítica jurídica não pode morrer



Em tempos de forte tensão, em que conquistas populares são minadas pelos interesses egóicos das classes dominantes; em tempos de refluxo da organização popular, acometida pelo vicarismo histórico de ou quase desaparecer ou de ser cooptada quase integralmente; em tempos de realidade virtual e nauseante separação de homem e mundo; em tempos difíceis, portanto, é preciso re-vidar (na ambigüidade que que o uso neológico da palavra pode oferecer) a crítica dos que nunca se conformaram com sua realidade.

Para o contexto do pensamento jurídico latino-americano, uma figura não pode nunca ser esquecida. Lembrá-la é um dever revolucionário, ainda que suas concepções pressupusessem um humanismo dialético. Não temos, por isso, de concordar com todas as suas concepções de mundo. No entanto, reavivar seu espírito - da forma mais materialista possível - é tarefa do hoje. E, entrementes, superá-lo. Isto seria seguir sua lição, dialeticamente.

Para o mundo jurídico-político, pouco plausível seria tentar descrever quem foi Roberto Lira Filho (a grafia "oficial" é Lyra, com ípsilon): filho de Roberto Lira, dos maiores juristas brasileiros do primeiro meado do século XX? dos primeiros teóricos críticos e marxistas do direito no continente latino-americano? fundador da Nova Escola Jurídica Brasileira e inspirador do Direito Achado na Rua? poeta, tradutor, músico, crítico literário, teólogo, penalista, filósofo e sociólogo do direito? Não. Tudo isso e mais, pois um crítico feroz e mordaz do direito e da realidade de opressão do Brasil e de toda a América Latina, um exemplo de rebeldia e inconformismo a ser seguido coetaneamente.

No contexto brasileiro, três são os grandes nomes para a fundação de uma teoria crítica do direito: Roberto Lira Filho, Luis Alberto Vará (ou Warat) e Luiz Fernando Coelho (ainda que bastante distintos e, até mesmo, violentamente divergentes). Lira Filho foi o que mais prematuramente deixou sua carcaça terrestre e o que mais falta faz hoje, com seu ímpeto agitador e destruidor de todas as mesmices do mundo jurídico-político tupiniquim. Seu grande legado, a luta contra a ditadura, a visão plural da normatividade e a contribuição marxista para as análises do direito moderno, superando as velhas ideologias do jusnaturalismo e do juspositivismo, ainda hoje insistentemente renovadas com outros signos e escaramuças as mais inacreditáveis (as que envolvem o judiciário, enovelam o legislativo e enlaçam o executivo - toda a burocracia estatal, enfim).

Como não ficar com suas palavras? Convido os que acompanham nosso blogue para lerem Lira Filho, sob o pseudônimo de Noel Delamare:
-
Envio
-
Não me lamento, porque canto,
Faço do canto manifesto.
Sequei as águas do meu pranto
Nos bronzes fortes do protesto.
-
Acuso a puta sociedade,
Com seus patrões, seus preconceitos.
O teto, o pão, a liberdade
Não são favores, são direitos.

Eis um poema do livro "Da cama ao comício, poemas bissextos" (Nair, 1984), disponível no sítio do Núcleo de Pesquisa Lyriana - NPL, o qual fazemos questão de divulgar, mesmo porque não compreendemos a razão pela qual sua obra continua embargada nas gavetas do individualismo e da incompreensão, tão na contra-mão de seus ensinamentos enquanto cultor do saber e democratizador do conhecimento. Hoje, além de alguns textos esparsos em raras coletâneas, apenas o clássico "O que é direito", da coleção "Primeiros Passos" da editora Brasiliense está disponível para aquisição. Isto porque é obra com direitos autorais cedidos à editora. Mas a crítica jurídica se ressente de não poder mais consultar com facilidade, a não ser em boas bibliotecas em geral das grandes universidades públicas do país, textos fundamentais como "Criminologia dialética" (Borsoi, 1972), "Para um direito sem dogmas" (Fabris, 1980), "Razões de defesa do direito" (Obreira, 1981), "Direito do capital e direito do trabalho" (Fabris; Instituto dos Advogados do RS, 1982) e "Karl, meu amigo: diálogo com Marx sobre o direito" (Fabris; Instituto dos Advogados do RS, 1983), dentre muitos outros títulos.


Gostaríamos muitíssimo de sensibilizar, com nossa mensagem, os que detêm os direitos autorais da obra de Lira Filho para que tornassem possível um sonho, há tempos cultivado por vários professores e editores, que é o de publicar suas obras completas. Ao mesmo tempo, não deixamos cair no esquecimento este importante referencial da crítica jurídica latino-americana, o qual merece e precisa continuar sendo marco de estudos de tantos pesquisadores e trabalhadores do direito.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Novo livro de Direito Urbanístico

Divulgamos o livro coordenado por Betânia Alfonsin e Edésio Fernandes intitulado "Coletânea de legislação urbanística: normas internacionais, constitucionais e legislação ordinária".
Betânia Alfonsin é jurista urbanista, professora da faculdade de direito da PUCRS e da Fundação Escola Superior do Ministério Público do RS.
Edésio Fernandes é jurista urbanista, professor universitário e consultor jurídico.

Conforme apresentação da obra:
"Esta coletânea de legislação de Direito Urbanístico pretende cumprir o papel de difundir as principais normas que conformam a nova ordem jurídico-urbanística brasileira inaugurada pela Constituição Federal de 1988, consolidada pelo Estatuto da Cidade de 2001 e grandemente enriquecida nos últimos anos. Com o cuidado de introduzir teoricamente a obra e resgatar a história, o objeto e os princípios do Direito Urbanístico Brasileiro, os juristas e urbanistas organizadores da coletânea selecionaram as normas constitucionais e as normas federais pertinentes, bem como os mais importantes tratados internacionais firmados pelo Brasil relacionados ao tema. Trabalho pioneiro do gênero, a presente coletânea de legislação urbanística reúne o elenco normativo indispensável para agentes públicos e operadores jurídicos responsáveis pela implementação da política urbana preconizada pela Constituição Federal e pela interpretação das questões relacionadas à gestão urbano-ambiental das cidades brasileiras".

Conforme palavras da Betânia, foi o resultado de mais uma parceria sua com Edésio Fernandes, com grande êxito. Ao contrário de outros compêndios que apenas reúnem a legislação, esta coletânea é precedida de um marco teórico cuidadosamente escrito, resgatando a história do Direito Urbanístico no Brasil, bem como apontando os desafios deste momento histórico em que tantas novas leis foram promulgadas nesta área e, paradoxalmente, tantos obstáculos se colocam para a garantia de sua efetividade.

Despejo em Imbituba: "mas essa gente aí, hein, como é que faz?"


É com imenso pesar que o blogue Assessoria Jurídica Popular informa a todos os seus leitores que ocorreu, às 6 da manhã de quarta-feira, 28/07, a reintegração de posse (?) da empresa Votorantim nos Areais da Ribanceira, em Imbituba/SC, ou seja, o despejo de várias famílias, dentre elas a de seu Antero e dona Aurina, seus filhos e criações, das terras em que moram e trabalham, agricultores que são, plantando tradicionalmente aipim.

Vínhamos acompanhando a questão, tendo já noticiado as ameaças iniciais do despejo, depois o ato promovido pelos agricultores com apoiadores na cidade de Imbituba e o alerta geral, do última dia 23, o qual acabou se concretizando na quarta-feira.

Um golpe duro na mobilização popular de Santa Catarina e na assessoria jurídica popular do estado. Há tempos, vem ocorrendo um acompanhamento da luta da comunidade tradicional dos Areais da Ribanceira por parte de movimentos populares, mídia alternativa e assessoria popular. Tal qual um prenúncio, em uma das últimas edições do programa da Rádio Campeche, rádio comunitária de Florianópolis, o tema foi a situação de Imbituba e lembro que uma das canções escolhidas pelos bravos companheiros para ilustrar os acontecimentos foi "Despejo na favela", de Adoniran Barbosa. A música canta uma ordem de despejo assinada pelo doutor na petição e a pergunta final ecoa: "mas essa gente aí, hein, como é que faz?" Lembro, igualmente, que foram realizados vários eventos de apoio aos agricultores de Imbituba, tais como a 7ª Feira da Mandioca de Imbituba (de 24 a 27 de junho), a manifestação no centro da cidade contra o ato judicial que ordenava o despejo na área, a reunião do coletivo Juristas Populares, na capital, a diuturna atuação da Secretaria do MST em prol de uma saída justa para os agricultores, assim como as notícias veiculadas nos blogues Imbituba Urgente e É novaS! produções. Da sentença da juíza ao despejo efetuado, ficamos com a palavra de ordem "O despejo não ficará impune!" - se o direito é capaz de ter seus desvãos contra-hegemônicos, como no caso recém-divulgado por nós da vitória da Flaskô, ele possui muito mais uma argamassa firme e sufocante de espoliação e opressão, como fica claro no caso imbitubense. Mesmo com várias atitudes em nível judicial tomadas pelos advogados populares responsáveis pela defesa da ACORDI - Associação Comunitária Rural de Imbituba, o direito estatal, oficial, ilegítimo, injusto e burguês deu o seu aval, a sua cumplicidade para com o grande capital. Trocando em miúdos, a Votorantim, de quem nenhum preposto sequer algum dia encheu as unhas de terra nas plantações de mandioca dos Areais da Ribanceira, conseguiu sua "reintegração" (?) de "posse" (???).

Destruídos os cultivos, derrubadas as paredes de madeira, agora resta o abrigo na sede da Associação e a Polícia Militar garantindo o despejo. Talvez reste alguma dignidade para o direito, como defendia o velho Lira Filho, em suas "Razões de defesa do direito". Mas é difícil continuar acreditando. Creio mesmo que vale a letra de "Despejo na favela", do Adoniran, sem ser seguida, infelizmente, da de "Abrigo de vagabundo":

Despejo na Favela

Adoniran Barbosa


Quando o oficial de justiça chegou
Lá na favela
E contra seu desejo entregou pra seu narciso um aviso pra uma ordem de despejo
Assinada seu doutor, assim dizia a petição

dentro de dez dias quero a favela vazia e os barracos todos no chão
É uma ordem superior,
Ôôôôôôôô Ô meu senhor, é uma ordem superior {2x


Não tem nada não seu doutor, não tem nada não
Amanhã mesmo vou deixar meu barracão
Não tem nada não seu doutor vou sair daqui pra não ouvir o ronco do trator
Pra mim não tem problema em qualquer canto me arrumo de qualquer jeito me ajeito
Depois o que eu tenho é tão pouco minha mudança é tão pequena que cabe no bolso de trás


Mas essa gente aí, hein, como é que faz???? {2x
Mas essa gente aí, hein, como é que faz????

quarta-feira, 28 de julho de 2010

O despertar da espera


Companheiros

Hoje pela tarde foi realizado na UFSM o encontro que debateu sobre "A questão da Terra no Estado do Rio Grande do Sul pela ótica dos povos indígenas e o papela da Universidade pública, gratuita, pluriétnica e laica na educação superior Indígena", dentro das atividades do Congresso Nacional de Estudantes de Agronomia. Nesse debate estiveram presentes os representantes das nações Guarani, Kainguangue e Charrua, as três que são nacionalmente reconhecidas como sobreviventes no território do RS.

Foi um espaço bastante interessante, no qual as comunidades expressaram uma vez mais a necessidade de políticas públicas voltadas não apenas para a redistribuição de terras aos povos originários, mas também para sua sustentabilidade. O probema da "invisibilidade"desses povos é uma das formas que opressão se manifesta atualmente, sem políticas públicas dos governos municipais capazes de dialogar com a cultura originária.

Aqui em Santa Maria se fazem presentes duas destas etnias: os Guaranis e os Kainguangues, que comercializavam no calçadão seus artesanatos, desde um acordo feito com Administração Municipal anterior. Devido à burocracia e à demora na regularização de suas terras, ambas comunidades vivem em lugares precários, à beira do asfalto em pequenas faixas ocupadas. Dessa forma, o artesanato, mais do que expressão de suas culturas é também a principal fonte de rende desses povos.

No entanto, no último mês, especialmente a partir do mês de junho, a prefeitura municipal começou a implementar açoes de "revitalização do centro"da cidade, com a transferência compulsória de ambulantes, camelôs e artesãos para o "Shopping Popular Independência". Conforme informativo do GAPIN (Grupo de Apoio aos Povos Indígenas) foram realizadas algumas reuniões com as Comissões de Direitos Humanos da Câmara de Vereadores e do Exceutivo com a proposta de organização do espaço público dentro da cidade para a comercialização do artesanato de forma permanente por essas comunidades.

O que se tem até agora é uma permissividade provisória da Prefeitura para que as comunidades comercializem no centro da cidade. Entretanto, foi despertada uma necessidade secular, que é a da sustentabilidade destes povos pelo reconhecimento de sua alteridade, proporcionando-lhes condicões ecônimicas e culturais de exercerem a diferença.A organização das etnias Guaranis e Kainguangue por meio do GAPIN é uma articulação que começou a surtir efeitos, como o da própria discussão dentro da Universidade Públicas de maneiras que proporcionem além do acesso, a interação com estes povos. Rumo à I Conferência Municipal sobre Terras Indígenas de Santa Maria /RS!

domingo, 25 de julho de 2010

Quem planta cultura colhe revolução



Muito se fala em trabalhar a educação popular como um instrumento de busca pela emancipação humana e pela compreesão crítica da realidade. E muito se discute como se deve trabalhar a educação popular hoje. Associar a arte a educação popular talvez seria a melhor forma de se trabalhar hoje nas comunidades oprimidas. Assim criaremos aqui um espaço associando as práticas da AJUP com a arte, mais especificamente o cinema. Alguns núcleos como o P@JE no Ceará e o Isa Cunha no Pará já trabalham com a Cine debates como sendo mais uma forma de se trabalhar a Educação Popular.


E hoje indicamos o filme “Cabra Marcado para Morrer” (1984), dirigido por Eduardo Coutinho, o filme conta a história política de João Pedro Teixeira, líder da liga camponesa de Sapé, cidade do interior da Paraíba. Retratando as perseguições da Ditadura militar no interior do país, acabando com a idéia de que a Ditadura Militar da década de 60 tinha reflexos apenas nas grande cidades. As gravações do filme foram iniciadas no ano de 1964, e interronpidas pelos militas e só foram finalizadas de vinte anos depois. Um filme cru que mostra a brutalidade do sistema capitalista.

O homem da "casa" de papelão - Direito da indiferença

Por anos, às portas da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, em Fortaleza, na esquina das Ruas Merlon de Morais com a Senador Pompeu, uma “casa” de papelão abrigou um homem.
A indiferença, apesar do tempo de compartilhamento do espaço, impediu que se conhecesse seu nome, de onde vinha, por que estava ali, ou mesmo, na falta de ações elementares como as anteriores, que se promovesse qualquer intervenção transformadora na vida dessa pessoa com que se convivia sem vê-la.
Por isso, também o homem da casa de papelão morreu sem ser percebido. Somente depois de algum tempo os integrantes da comunidade acadêmica da escola de direito da UFC notaram a falta de sua “casa” na esquina.
Ironicamente, uma faculdade de direito pôde conviver longamente com a falta de direitos sem se sentir responsável por isso. Mas, não são poucas as faculdades de direito que, negando-se a repensar as bases em que estruturam a educação que são capazes de prestar, eximem-se da responsabilidade de interferir nos problemas sociais e de formar pessoas capazes de realizar, promover e defender direitos humanos.
Sob o signo da neutralidade e da arrogância teórica, sustenta-se certa forma de educar, através de que se reforça e se propaga o direito da indiferença. Mas também, erguem-se muros, nem sempre visíveis, embora reais, que separam estudantes, professores e professoras da realidade, mesmo que esta esteja inegavelmente muito próxima.
Pensar o direito como legítima organização social da liberdade, à Lyra Filho, exige decerto uma virada epistemológica que não coaduna com a compreensão estabelecida no modelo central de ensino jurídico que se propaga pelo Brasil. Impõe que sejam revistas concepções e que se avaliem as condições de elaboração do pensamento hegemônico para vencer o conjunto de crenças e métodos cognitivos que impedem de se instalar nos ambientes de formação jurídica uma compreensão de que o direito nasce no seio de uma sociedade conflituosa, não-harmônica, ou seja, nasce na rua, no calor das lutas e das reivindicações sociais, e se destina a uma eterna e dialética busca da justiça, cujo conteúdo se delineia também no universo cultural, político e histórico, sem um a priori pré-definido, construído e atualizado no tempo e no processo mesmo de sua busca/realização na dinâmica da sociedade. Portanto, não é fruto exclusivo do poder político do Estado, não se reduz à expressão normativo/legalista, não se basta no espaço institucional que é, a um só tempo, criatura e criador da própria lei. E, acima de tudo, não é neutro. Estabelece um compromisso inevitável com a emancipação humana; não admitindo sua dicotomia em relação aos direitos humanos, porque só existe autenticamente enquanto elemento de superação de todas as formas de opressão.
Ainda, no seio dessa virada epistemológica, em que o direito se mostra complexamente no campo da eticidade, colocando-se inseparavelmente como forma de pensamento, realização e difusão de uma perspectiva libertadora, não eurocêntrica e colonialista, de direitos humanos, deslegitima-se o discurso da desigualdade e do desrespeito como problemas individuais; passa a ser fundamental eliminar a indiferença e a omissão como comportamento face aos problemas sociais e, o compromisso com a transformação da realidade de injustiças e vulnerabilidade social à violação de direitos se transforma no centro do universo de estudantes, educadoras, educadores e outros profissionais de direito.

sábado, 24 de julho de 2010

Estatização, e na Flaskô, ninguém coloca a mão: eles podem matar uma, duas ou três rosas… mas não deterão a primavera

Para manter os leitores do blogue informados sobre os últimos acontecimentos destacados neste espaço virtual, trazemos as novas acerca do caso de decretação de falência da Flaskô. Após ampla campanha de divulgação do ocorrido e mobilização por solidariedade para com os trabalhadores da fábrica, no dia 15 de julho, o juiz de Sumaré encerra o processo de falência da Flaskô, decisão esta fruto de grande pressão social e engajamento dos operários. A vitória proletária foi comemorada, no dia seguinte, com uma manifestação contra qualquer tentativa de fechamento da Flaskô.







Nós certamente damos nosso apoio a sua luta e indicamos as marchas e contra-marchas do direito burguês - como sempre se referem os integrantes do Movimento das Fábricas Ocupadas (MFO) -, espaço onde se deve construir a resistência ainda que não seja ela a redenção, lembrando dos advogados populares que assessoram este movimento. Mais uma vez fica realçado o teor político do direito, algo que não deve nunca deixar de estar no horizonte de todos, em especial em tempos de refluxo da crítica jurídica latino-americana.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Imbituba urgente!

Comunicamos o Alerta Geral do blogue "IMBITUBA-URGENTE", em virtude da iminência de uma ação policial a mando do governo do Estado de Santa Catarina, para cumprimento da decisão judicial de reintegração de posse - contrária ao direito insurgente dos agricultores que produzem sua vida naquele pedaço de chão.

Momento para articulação e mobilização das organizações sociais e políticas em defesa dos interesses dos agricultores de Imbituba.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Poema em homenagem a Eugênio Lyra

Divulgamos o poema de Vladimir Luz em homenagem ao advogado popular Eugênio Lyra, que foi assassinado aos 30 anos, no dia 22 de setembro de 1977, na cidade de Santa Maria da Vitória (BA).
O advogado, e poeta, já foi homenageado com poemas na ocasião de seu falecimento, em 1977. Agora, o professor e assessor jurídico universitário Vladimir Luz presta esta lúdica e linda homenagem:

EUGÊNIO LYRA

Era uma vez uma criança que lia

E, num instante, a palavra lida se fez carne
Terra batida, sol a pino
Luz do sertão, mãos estendidas
Fez-se olhar sem ter onde
Corpo que espera o outro
Abraços de tantos que vagueiam

E a palavra se fez lei, grito calado
Latifúndio, latim
E a criança que lia virou homem, andarilho
Viu-se nos outros, como se via nas palavras
Pariu a si mesmo emprestando sua voz
Fez-se ato, gesto e luta
Homem que, por se fazer ser em muitos
Cravou sua sina

Era uma vez uma criança que lia
Eterna criança que se fez e se faz
Em nós – Justiça


Vladimir Luz


Lyra era poeta, podemos encontrar alguns de seus poemas no livro "Eugênio Lyra presente", como o que segue:

Plantemos novas sementes, 
colhamos frutos maduros, 
rompamos todas as frentes 
e obstáculos futuros. 
Sejamos mais conscientes 
e, juntos, onipotentes, 
prostremos todos os muros.

Do teu, para sempre,
Eugênio – 14/04/71


Leia também:
Vida e luta de Eugênio Lyra no blogue da AATR
Homenagem da Assembléia Legislativa da Bahia, no blogue "Terra sem lei"
Moção de solidariedade no blogue da AATR

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Coluna do Jacques - "O morro é nosso"

Conforme já noticiado neste blogue, o movimento "O morro é nosso" conquistou importante vitória pela ocupação do Morro Santa Tereza para fins de moradia e produção da vida de dezenas de famílias - contra o interesse da especulação imobiliária de mãos dadas com o governo do estado e do município.

No artigo "Quem diz que a pressão popular nunca funciona não sabe o que está dizendo ", nosso companheiro Jacques Alfonsin entoa um ode à organização e participação popular!

Segue um trecho do artigo:
"O morro Santa Tereza, assim se identifica de modo mais geral a área em questão, com tudo o que significa para o Estado e o Município, foi salvo em sua beleza, sua flora, seu ar, suas águas, e, principalmente, suas/seus moradores pobres, pela consciência que essas/es conquistaram de sua dignidade e cidadania, do quanto vale a sua organização, do quanto a pressão político-jurídica é capaz de produzir, em defesa dos seus direitos".

Por fim, Jacques chama a atenção de todos militantes e assessores populares do Brasil a refletir sobre a possibilidade de articulação entre os instrumentos legais e as políticas públicas federais, para uma maior efetivação do direito fundamental de moradia - positivismo de combate. Cita o exemplo do Estatuto da Cidade e o programa "Minha Casa Minha Vida".

Leia
Artigo "Quem diz que a pressão popular nunca funciona não sabe o que está dizendo ", de Jacques Alfonsin
Postagem "Morro Santa Teresa, vitória do povo! ", do blogue Coletivo Catarse
Postagem "Campanha 'O morro é nosso '"

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Ato de Imbituba: as comunidades tradicionais contra o capital



Dando continuidade às informações veiculadas aqui no blogue, abrimos espaço para que o movimento dos agricultores de Imbituba, comunidade tradicional dos areais catarinenses, divulguem suas atividades em prol de sua luta pela terra e pela preservação de seu modo de vida, evidente contraposição ao modo de vida capitalista.

A seguir, o relato da manifestação dos agricultores no meio urbano de Imbituba:


Nesta segunda-feira em Imbituba, Sul de Santa catarina um ato público chamado pela ACORDI (Associação Comunitária Rural de Imbituba) reuniu em passeata pelos bairros e centro da cidade dezenas de pessoas, representando os movimentos sociais, sindicatos, membros de universidades, agricultores e populares da região em defesa dos agricultores ameaçados de despejo por uma ordem judicial.


Carregando faixas e protestando com discursos e palavras de ordem o ato atravessou a cidade e teve por finalidade principal esclarecer a comunidade local, estadual e nacional, com respeito aos fatos que vêm ocorrendo com os agricultores dos Areais da Ribanceira, uma área de 290 hectares, contestada na justiça por interesses daqueles que detêm o poder econômico e político na região e que através de manobras legais e ilegais, ameaçam a existencia destes pequenos agricultores, que ocupam as terras há muito tempo e dela tiram sua subsistência baseada principalmente no cultivo e beneficiamento da mandioca.

A manifestação parou em frente aos principais órgãos públicos da cidade de Imbituba, prefeitura, câmara dos vereadores, Fórum da comarca e os manifestantes distribuíram um jornal editado pela ACORDI. Os representantes das diversas entidades presentes ao ato discursaram, manifestando apoio, esclarecendo os fatos e pedindo o apoio da população e das autoridades constituídas, buscando reverter a ameaça de despejo.

Antes do final da manifestação foi decidido por todos que a vigília e a resistência continuarão. Um momento que emocionou a todos os presentes foi quando Altair Lavratti, membro da direção estadual do MST, saudou com palavras de ordem o nascimento do pequeno Davi, filho de Marlene Borges, presidente da ACORDI, presa no início do ano já gravida enquanto organizava os agricultores da associação. Davi nasceu em uma maternidade da região na última sexta-feira, 9 de julho. Já nasceu vencendo uma gravidez de risco e os riscos de uma prisão ilegítima e violenta. Coseguirá o Davi ajudar a vencer esta luta contra o Golias do poder econômico e político que ameaça esta comunidade tradicional e toda a região?





Para mais informações, acompanhe o blogue: Imbituba Urgente.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Sobre burocratas travestidos de poetas...

Um pouco da poesia e musicalidade de Arnaldo Antunes in Tudos

Eu apresento a página branca.

Contra:

Burocratas travestidos de poetas
Sem-graças travestidos de sérios
Anões travestidos de crianças
Complacentes travestidos de justos
Jingles travestidos de rock
Estórias travestidas de cinema
Chatos travestidos de coitados
Passivos travestidos de pacatos
Medo travestido de senso
Censores travestidos de sensores
Palavras travestidas de sentido
Palavras caladas travestidas de silêncio
Obscuros travestidos de complexos
Bois travestidos de touros
Fraquezas travestidas de virtudes
Bagaços travestidos de polpa
Bagos travestidos de cérebros
Celas travestidas de lares
Paisanas travestidos de drogados
Lobos travestidos de cordeiros
Pedantes travestidos de cultos
Egos travestidos de eros
Lerdos travestidos de zen
Burrice travestida de citações
água travestida de chuva
aquário travestido de tevê
água travestida de vinho
água solta apagando o afago do fogo
água mole sem pedra dura
água parada onde estagnam os impulsos
água que turva as lentes e enferruja as lâminas
água morna do bom gosto, do bom senso e das boas intenções
insípida, amorfa, inodora, incolor
água que o comerciante esperto coloca na garrafa para diluir o whisky
água onde não há seca
água onde não há sede
água em abundância
água em excesso
água em palavras.

Eu apresento a página branca.

A árvore sem sementes.

O vidro sem nada na frente.

Contra a água.


segunda-feira, 12 de julho de 2010

Notícias do Front (ou da Fronteira)

A ditadura não morreu, está aqui, mais próximo do que pensamos e do lado de quem menos esperávamos. Ditadura sim, mas não no sentido de regime explicitamente autoritário, centrado na coerção pública (e, por vezes, oculta) dos direitos e da liberdade. A ditadura atual está travestida de militarização da democracia – como bem definiu Milton Santos, militarização enquanto relação de poder cuja obediência aos mandamentos dos grupos hegemônicos é a única alternativa democraticamente apresentada e representada nos espaços de negociação política e produção midiática – e apela para os "interesses nacionais" para legitimar uma série de ações truculentas e antidemocráticas que violam os direitos humanos e constitucionais de centenas de pessoas que ousaram (e ousam) contrariar o status quo nacional, regional e local propagador do discurso demagógico do desenvolvimentismo capitalista-neocolonial pela ótica da construção da Hidrelétrica de Belo Monte.

Refiro-me a ações "não-oficiais" e "não-noticiadas" que têm como pólo de manifestação a cidade de Altamira, no sudoeste do Pará, e cujos destinatários são todos aqueles – de autoridades públicas a membros de movimentos sociais populares – que se destacaram nos últimos anos, sobretudo durante o período da audiência pública e do leilão da Hidrelétrica de Belo Monte, e passaram a sofrer retaliações institucionais que vão de representações da Advocacia Geral da União (AGU) contra o juiz federal, devido deferimento das liminares, passam pela transferência de diretores de órgãos públicos ligados ao meio ambiente por atuarem de forma pró-ativa na região, e chegam às seguidas incursões da Polícia Federal e da Agência Nacional de Inteligência (ABIN) as sedes dos movimentos sociais populares ou diretamente na residência dos militantes – sempre não fardados – para buscarem informações sobre as ações planejadas, mas que tem por trás toda uma tática de amedrontamento e guerra psicológica via monitoramento permanente de lideranças políticas.

Além disso, há toda uma linha de cooptação de lideranças indígenas locais por meio de entrega de cestas básicas e de combustível, feita pela Eletronorte, e que tem como objetivo não-declarado o enfraquecimento do movimento indígena pelos conflitos que passam a ocorrer entre povos indígenas favoráveis e contrários a construção da Hidrelétrica.

O mais estranho disso tudo é que todos esses atos se desenvolvem dentro de um Estado que se considera Democrático de Direito, capitaneado por um governo que se considera de esquerda e populista. As contradições, aqui, saltam aos olhos e nos permitem sugerir a renovação dos procedimentos utilizados no período da ditadura para pressionar todos aqueles que se colocam contrários ao discurso hegemônico, e se colocam contrários de modo a reivindicar politicamente outras condições de desenvolvimento e novas perspectivas de relação com o meio ambiente.

Em Altamira, o front (de guerra) é também a fronteira de uma perspectiva de desenvolvimento para os próximos anos que colide diretamente com os interesses e direitos ao meio ambiente saudável e das populações tradicionais, como os povos indígenas. O Programa de Aceleramento (PAC) e o Programa de Aceleramento 2.0 (PAC 2) tem na construção de hidrelétricas na região amazônica uma das grandes bandeiras de "desenvolvimento" socioeconômico do Brasil, e a Hidrelétrica de Belo Monte, assim como as Hidrelétricas de Santo Antônio e Girau, no rio Madeira, em Rondônia, estão colocadas como a porteira que ao ser aberta possibilitará a construção de diversas outras hidrelétricas na Amazônia.

Mas a quem preço? É o que se pergunta. O que estamos assistindo, aqueles que estão no "olho do furação", é o desmoronamento em cadeia de todos os valores que sustentam o Estado Democrático de Direito e os Direitos Humanos pela sobreposição demagógica dos "interesses nacionais" articulados com interesses mercadológicos e neoliberais de multinacionais que vêm a Amazônia pela ótica do lucro e da exploração desmesurada de seres humanos – não basta lembrar que o Pará é "campeão" de trabalho análogo ao escravo no Brasil – e da natureza – também não é demais reavivar o fato de o Pará ser o estado "campeão" de desmatamento na atualidade.

No entanto, as conseqüências negativas desta articulação pendem sempre para os grupos sociais vulnerabilizados, como camponeses, ribeirinhos e povos indígenas, além dos municípios influenciados pela Hidrelétrica e que não tem (e nem terão) condições orçamentárias e estruturais para suprir as novas demandas sociais – de educação, saúde, saneamento básico, segurança pública, poluição e tantos outros aspectos – que emergirão com a explosão do contingente populacional previsto – onde apenas no município de Altamira, de população atual de aproximadamente 98.000 habitantes, esperasse a duplicação da população, ou seja, esperasse a chegada de mais 98.000 pessoas em menos de 5 anos, migrante que acreditam na ilusória crença de que aqui será o novo Eldorado dos Carajás, quando, na verdade, não passa de uma nova Tucuruí (da Hidrelétrica de Tucuruí), pois a maioria dos empregos gerados será temporário e a previsão é que grande parte dos migrantes acabem se incluindo apenas nos números do bolsão de miséria da cidade e dos índices de violência das páginas policiais dos jornais.

Ainda assim, a situação trágica não permite aos lutadores e lutadoras dessa terra, banhada pelo rio Xingu, esmorecer um só momento no objetivo final de garantir a interdição da construção da Hidrelétrica de Belo Monte por meio de ações pacíficas que sinalizem ao governo e a parcela da população nacional que o "desenvolvimento do Brasil" não pode pensar o Norte a partir do Sul, mas sim possibilitar discussão de qual desenvolvimento as pessoas e organizações do Norte querem, desenvolvimento este que não pode está desatrelado da idéia de sustentabilidade e de respeito para com o meio ambiente e as populações tradicionais, mas, acima de tudo, de respeito para com os valores que orientam o Estado Democrático de Direito e os Direitos Humanos.

sábado, 10 de julho de 2010

Judiciário decreta falência da Flaskô!


Esta semana, a página do Movimento das Fábricas Ocupadas divulgou a decretação da falência da Flaskô, fábrica sob a gestão democrática dos trabalhadores, símbolo de resistência operária e da pauta, pouco usual após o grande consenso fechado na década de 1990 acerca das privatizações, terceirizações e liberalizações econômicas, pela estatização das fábricas quebradas. Basta lembrar a palavra de ordem: "Fábrica quebrada é fábrica ocupada, fábrica ocupada é fábrica estatizada" (este é, inclusive, o título do livro de Janaína Quitério do Nascimento, que narra a epopéia dos trabalhadores da Cipla e Interfibra, em Santa Catarina, em sua tentativa de estatização e a recusa peremptória do governo Lula, em nome da gelatinosa e pouco consistente idéia de "economia solidária").

Quem decretou a falência da Flaskô foi o judiciário de Sumaré/SP. O juiz da 2ª Vara Cível, sr. André Gonçalves Fernandes, no dia 1º de julho, apresentou a tentiva de um golpe mortal contra os trabalhadores que controlam autonomamente a produção da fábrica. No entanto, o Movimento das Fábricas Ocupadas mobiliza seus militantes, bem como seus apoiadores, para reverter a situação e reafirmar suas reivindicações: contra a ameaça de fechamento da Flaskô; pela estatização sob o controle operário; pela decretação de interesse social da Flaskô; contra a criminalização dos movimentos sociais; pela solidariedade da classe trabalhadora; e pelo socialismo.

Tais reivindicações fazem tanto mais sentido quanto mais percebemos que os interesses econômicos falam mais alto que as necessidades dos trabalhadores, assim como quando observamos as concepções de mundo que guiam as decisões de boa parcela do judiciário brasileiro - fazendo-nos lembrar de recente análise de Boaventura de Sousa Santos sobre "A contra-revolução jurídica". Vejamos o que divulga o Movimento das Fábricas Ocupadas, sobre o caso de Sumaré e seu judiciário, notando sempre o uso do direito oficial ou burguês como espaço de resistência (como parece ser a marca dos editores deste blogue), bem como a necessidade do protagonismo dos movimentos populares ao produzirem sua vida:


"[...] em 12 de junho de 2003 os trabalhadores da Flaskô ocuparam a fábrica como única forma de garantir seus postos de trabalho. Desde então, é de conhecimento público a luta do Movimento das Fábricas Ocupadas. Para os capitalistas é inaceitável uma gestão democrática dos trabalhadores, na qual a prevalência é de implementar as conquistas históricas da classe operária, como a redução da jornada de trabalho para 30 horas semanais (sem redução de salários) e solidariedade com todos os movimentos sociais e sindicais, questionando a propriedade privada dos meios de produção, lutando abertamente pela estatização sob controle operário.


A decisão deste juiz possui o mesmo “pano de fundo” da decisão judicial que decretou a intervenção na Cipla e Interfibra, em Joinville, em 31 de maio de 2005. Lá, o juiz disse que “não seria um bem social a manutenção das fábricas”, concluindo com a pergunta que explica toda a preocupação dos capitalistas: “imagine se a moda pega?”. Aqui a situação é bem parecida. Fica claro o papel de classe que exerce o Poder Judiciário. Mas, como sempre, mesmo nos marcos jurídicos burgueses, rasgam-se os direitos historicamente conquistados pelos trabalhadores, especialmente os garantidos na Constituição Federal.


O ataque é frontal e direto contra a organização da classe trabalhadora, tanto é que no ano passado, ao tratar de uma ocupação do MTST em Sumaré, este mesmo Juiz tinha dito que o MTST, junto com o MST e a FARC, “fazem parte da Via Campesina, uma organização terrorista internacional”. Ou seja, sabemos que se trata de um conflito de classe, com trabalhadores e proprietários se enfrentando, e o Juiz, como representante do Estado Burguês, possui claramente um lado”.



Veja também:
- antigo blogue Em Defesa da Flaskô!

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Niilismo e movimento popular (ou: Entre céticos e cínicos, eu fico com o povo)

Dando espaço para a necessária radicalidade da assessoria jurídica popular, trago aos leitores do blogue um texto do advogado e militante do movimento popular em Curitiba, Felipe Rigon Spack, que com as luvas próprias do pugilato abre os supercílios dos céticos e, a um só tempo, sai-se exitoso do pancrácio contra os cínicos. Entre céticos e cínicos, a classe média; para além de a inanição ou de a justificação do que sempre foi, o movimento popular.



Niilismo e movimento popular

Por Felipe Rigon Spack



Pense globalmente, sofra localmente

Uma atitude realmente perturbadora no capitalismo contemporâneo é oferecer uma solução individual para um problema global. Após assistirmos a vídeos chocantes sobre o derretimento das geleiras, sobre o trabalho escravo na China e sobre o crescimento dos lixões das nossas cidades, somos apresentados a uma solução simples: separar o lixo, votar consciente nas próximas eleições ou parar de comer carne. É como se nossa relação com a natureza e a sociedade não tivesse nenhum intermediário: desaparecem os Estados, as indústrias, as grandes fazendas, as plataformas de petróleo, as redes de supermercado etc. Somos nós, aqui e agora, os únicos responsáveis pelo destino dos Pandas, das crianças etíopes ou do próprio Universo. Assim, a Shell e a Halliburton são tão culpadas quanto nós pelas desgraças da humanidade, e deveríamos nos engajar em alguma espécie de “ativismo cidadão” para “conscientizar” o próximo rumo a um mundo mais democrático.

É claro que essa denúncia histérica de problemas gigantescos acompanhada por uma alternativa medíocre de ação só pode levar, com o tempo, a duas atitudes: o cinismo completo ou o niilismo. Os cínicos simplesmente rejeitam a denúncia dos problemas: isso não existe ou não importa, o que vale é viver o aqui e o agora. Carpe diem! Os niilistas, mais interessantes, aderem a algum tipo de escapismo e vivem seus dias com uma espécie de auto-lamentação irônica, em que repetem o mecanismo ensinado desde a escola: o problema existe e é terrível; temos responsabilidade, mas não há nada que possamos fazer que realmente funcione.


A atitude niilista está mais correta do que a cínica. Realmente, os problemas existem. E, realmente, doar dinheiro para os pandas ou para a Legião da Boa Vontade não vai acabar com a extinção dos seres humanos ou dos animais queridinhos da mídia. Contudo, existe muita vida para fora do niilismo, e ela quer ser escutada.


Privilégio da classe média

Em primeiro lugar, é preciso lembrar que a educação liberal de esquerda baseada na Folha de São Paulo – um exemplo perfeito do estilo “pense globalmente, aja localmente” - atinge apenas uma pequena parcela da população: a classe média. Embora filmes como Cidade de Deus digam o contrário, para os moradores da periferia das grandes cidades não resta, neste mundo, apenas o papel de aparadores de balas e vítimas de estupro. Há, nos bairros proletários, uma grande necessidade diária de luta, e portanto uma vida sofrida e difícil, mas nem um pouco entediante. O trabalho, a moradia, o transporte e a saúde são problemas diários, que só podem ser resolvidos coletivamente. Na luta proletária, somem os subjetivismos lamentadores e ganha espaço a prática objetiva e revigorante. Não faz sentido para um trabalhador se preocupar com o sofrimento dos pandas e lamentar o fim do Joy Division, se a ordem do dia é queimar pneus para evitar mais atropelamentos em seu bairro.


Bairro proletário, de Curitiba.



Essa realidade de luta é bastante diferente do “ativismo” puramente de classe média. A atuação de grupos ongueiros, vegetarianos, virtuais etc. facilmente esquece que há inimigos intermediários entre a “devastação da humanidade” e o “consumo de carne”, pois lida com problemas que raramente afligem de maneira imediata alguma potência econômica. A luta dos moradores das periferias ou dos empregados das fábricas por melhores condições de vida, porém, é logo acompanhada por ameaças de prefeituras e patrões incomodados. Essas ameaças, por sua vez, demandam uma organização ainda mais elevada dos moradores ou dos trabalhadores, que trará novas ameaças e assim por diante. Conforme a luta avança, todo o sistema intermediário entre a devastação da humanidade e nossa vida cotidiana dá as caras – e ele é muito mais brutal do que o departamento de propaganda do Greenpeace é capaz de conceber.

Pá de cal no niilismo

Como ex-integrante niilista da classe média crescido em um ambiente “Folha de São Paulo”, posso seguramente afirmar que a participação no movimento popular é capaz de pôr um fim ao niilismo. A responsabilidade com a luta popular redefine o gozo sem limites que o sistema impõe à classe média das grandes cidades. Os sábados de manhã deixam de ser o momento da ressaca para serem o momento da reunião na associação de moradores ou de outras atividades importantes. Por sua vez, o contato com a história pessoal dos trabalhadores e a amizade que surge durante a luta lançam uma pá de cal sobre a visão cínica ou niilista da vida.

Com a absoluta certeza, a participação no movimento popular afastaria grande parte das depressões, das dores de cotovelo e das náuseas com o “absurdo da vida”, já que todos esses sofrimentos são pequenos privilégios de classe, que tendem a se dissolver com o contato regular com a luta das classes mais exploradas. Da mesma maneira, ajudaria a recuperar um sentido histórico para a vida, para além do fukuyamismo hoje dominante, em que o nada é louvado de maneira incessante como a única certeza possível. Deixar as baladas “anos 80” e o eletrorock pode parecer um grande sacrifício para alguns, mas certamente será recompensado por uma grande releitura da realidade – maior ainda do que aquela que Foucault e Deleuze são capazes de proporcionar.

Mas é claro que a militância no movimento popular não deve ser encarada com fins “terapêuticos”, isto é, uma nova “moda” da classe média. Pelo contrário: os trabalhadores e moradores das periferias têm grande necessidade do conhecimento acumulado pela classe média, o que traz grande importância e responsabilidade para os apoiadores de sua luta. Os advogados, jornalistas, médicos, psicólogos, engenheiros etc. tiveram a oportunidade de se apossar de conhecimentos técnicos sistematicamente proibidos aos moradores da periferia ao longo de seus dezesseis ou mais anos de estudo, financiados pelo trabalho de toda a sociedade. Esse conhecimento deve ser instrumentalizado em benefício da luta.

Organizações maiores, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, têm uma clareza tão grande dessa necessidade que, além de criarem uma Universidade para seus próprios militantes, a Escola Florestan Fernandes, ainda promovem sistematicamente os Estágios Interdisciplinares de Vivência (EIVs), mostrando aos jovens de classe média que existem alternativas ao nada democrático-liberal que impera nas páginas dos periódicos nacionais.

Para finalizar, gostaria de lembrar que o niilismo pode ser o sinal de um intelecto vigoroso, que através dele se defende dos convencionalismos da pátria, da religião, da família e do politicamente correto. Contudo, como toda defesa, se não for rompida rumo a um estágio mais avançado de atuação, tende a causar estagnação e sofrimento. A maior contribuição do movimento popular à classe média, portanto é a de dar um sentido à sua existência, baseado em uma necessidade que, em certos contextos, é de compreensão imediata: a necessidade de libertação.



"Morro da favela", de Tarsila do Amaral






Conferir o blogue do Felipe Spack: Direito de Esquerda

sábado, 3 de julho de 2010

Imbituba: crônica de um mandado de despejo



Leitores do blogue Assessoria Jurídica Popular,

Gostaria de compartilhar com todos vocês os episódios que vêm ocorrendo no litoral catarinense, município de Imbituba, em que camponeses de uma comunidade tradicional vêm sofrendo com as ameaças de despejo das terras onde moram e trabalham. Estas ameaças vêm acompanhadas do sinistro sabor da criminalização dos movimentos populares, do que já foi palco Imbituba com a prisão de alguns militantes da ACORDI (Associação Comunitária Rural de Imbituba) e de movimentos apoiadores - algo que já foi divulgado aqui neste espaço virtual.

Eu estive neste último final de semana em Imbituba, durante a realização da 7ª Feira da Mandioca de Imbituba/SC. Conheci seu Antero, dona Aurina e todos os demais agricultores empenhados em resistir no local onde produzem suas vidas. Comi bijajica, bolo e pão de mandioca, pinhão e quentão. É difícil entender como podem os interesses econômicos falar mais alto que as necessidades humanas.


Seu Antero, nas terras de Imbituba.


Para melhor relatar o clima que se está vivendo naqueles areais catarinetas, prefiro repoduzir um depoimento de testemunhas oculares da história:


Crônica de um Mandado de Despejo
Por Pepe Pereira dos Santos, Leandro Monteiro Dal Bó e o grupo de solidariedade às comunidades tradicionais de Imbituba

Tarde de uma quinta-feira, véspera de jogo do Brasil na copa da África. Em Imbituba, sul de Santa Catarina, sul do Brasil, o que está em campo no sítio do Sr. Antero Francisco Cardoso na Volta da Taboa, nos Areais da Ribanceira, entrada da cidade, é outra escalação. Peru,
cabras, bois, cavalos, galinhas, jegues, cachorros, universitários, sindicalistas, amigos, parentes, ativistas do MST, todos contra o dilúvio de uma ordem de despejo requerida pela [juíza Tal da vara Tal].

A ordem judicial é contra agricultores tradicionais de uma área de 240 hectares. Aqui existe a ACORDI, Associação Comunitária Rural de Imbituba. Essa verdadeira Arca de Noé, que é a pequena propriedade do Seu Antero, de 3 hectares, já sobreviveu a outra tentativa de despejo 4 anos atrás, quando a família teve a casa queimada por jagunços do que se dizia proprietário destas terras [Fulano de Tal]. Terras há décadas cultivadas por cerca de 50 famílias que têm como principal atividade, o plantio e o beneficiamento da mandioca.

Portanto, a resistência a esta nova tentativa de despejo faz com que a Dona Aurina Abreu, esposa de Seu Antero, esteja com os nervos bastante abalados. Temerosa dos desfechos dos acontecimentos, ela saúda e cumprimenta com certo alívio a chegada de cada um que vem para se somar ao pequeno grupo de solidariedade. Entre estes está Rui, ex-sindicalista, militante da brigada urbana Mitico do MST, morador da região. Preso arbitrariamente enquanto ajudava na organização da ACORDI, juntamente com a atual presidente da associação Marlene Borges e o advogado e agricultor Altair Lavratti, membro da direção estadual do MST.

Foram presos e algemados acusados de formação de quadrilha e de estarem organizando invasão das terras que já são ocupadas por esses moradores há décadas. Essa prisão, na época, foi contestada por todos, inclusive por setores da própria polícia de SC e Federal em notas oficiais, publicadas nos veículos de comunicação, com repercussão nacional e mobilizações de várias organizações em defesa do direito dos presos e da comunidade tradicional local. Depois a justiça veio a questionar as prisões. Hoje todos os presos abriram processos contra o Estado, pedindo reparação. Vale frisar que Marlene, a presidente da ACORDI, está grávida; gravidez de risco, sabidamente. Foi presa em sua residência às 5 da madrugada em uma operação de guerra montada pela polícia que cercou sua casa acompanhada por uma equipe da RBS.

Difícil reparar os traumas de um evento dessa natureza, magnitude e violência. Os presos ficaram incomunicáveis durante 12 horas em locais não sabidos pelos familiares e advogados, violando flagrantemente as leis criminais e a própria Constituição.

É, portanto, explicável a expectativa desse pequeno grupo que se reúne em solidariedade ao Seu Antero nessa véspera de dia de jogo da Seleção de futebol Brasileira na copa do mundo. Aqui o jogo dos adversários é duro. E pelos comentários, está prestes a acontecer.

O mandado de despejo já foi expedido. Os moradores temem que tais mandados sejam executados após a Sétima Feira da Mandioca realizada em Imbituba na sede da ACORDI nos dias 24 a 27 de junho de 2010, no fim de semana último. Evento que reuniu milhares de visitantes vindos da região de Imbituba, de outros municípios, de outros estados e até de outros países. Autoridades estaduais e federais. Não vieram as autoridades locais. Parece que estas estão no time dos adversários. A elite local pretende que no espaço onde vivem os agricultores, que dali tiram seu sustento, seja construída uma fábrica de cimento da Votorantim. Além de empreendimentos imobiliários de alto padrão.

As terras, que são originalmente da União, foram negociadas de formas suspeitas. Localizam-se entre o mar e a BR-101. O que atiça a cobiça e a pressão legal e ilegal para que os moradores e agricultores abandonem suas terras.

Final de tarde, quase noite. A expectativa continua no grupo de solidariedade. A noite vai ser longa na casa do Seu Antero. Muitos convidados ficarão para dormir.

O temor é que o despejo ocorra enquanto todos estão com a atenção voltada para a copa. Amanhã às 11 horas, horário local, a Seleção Brasileira entra em campo. Aqui nas Areias da Ribanceira, Seu Antero já está há muito tempo neste campo, neste jogo e para ele e a Dona Aurina, essa é mais uma jogada, mas a expectativa é grande. A diferença é que ela traz o medo da perda do seu espaço de vida.

Enquanto todos os olhares do mundo se voltam para a copa do mundo na África do Sul, em Imbituba, Santa Catarina, sul do Brasil, o mundo de dezenas de famílias pode acabar. Aqui o resultado do jogo é mais arriscado. É tudo ou nada. Como final de campeonato, para uma linda região, uma comunidade tradicional, expulsa do campo, fica fora de jogo como milhões de excluídos da terra. A terra sem estes guardiões tem o seu meio ambiente ameaçado. O cartão do juiz não é o vermelho. Parece mais o verde dos dólares que move os interesses nesta região portuária. A “arca de noé” de Seu Antero é todo um modo de vida que pode ser levado pelo dilúvio dos interesses do mercado.

O grupo está na expectativa de que o caso se resolva em favor da maioria comunitária não dos interesses da minoria especulativa. A Seleção Brasileira foi derrotada e volta para casa, mas o povo continua em luta e permanece em resistência.

Eu sou Pepe Pereira dos Santos juntamente com Leandro Monteiro Dal Bó e o grupo de solidariedade em mais uma partida decisiva para as comunidades tradicionais de agricultores do sul de Santa Catarina e do Brasil.




Ainda, convido a todos para acessarem o blogue Imbituba-Urgente que traz informações mais detalhadas sobre este "atentado contra a história do povo catarinense".

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Hélio Bicudo sobre o MST

Recomendamos a leitura crítica do artigo "MST em busca de um desenvolvimento sustentável", escrito por Hélio Bicudo no seu blogue "Direitos Humanos".
Ele trata da contribuição do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) como o principal movimento social brasileiro, na luta contra o latifúndio e a monocultura poluidora.
Um conceito utilizado pelo autor que pode ser criticado é o de desenvolvimento sustentável, bandeira que está longe de significar algo.
Destaque para o comentário de que a luta está concentrada no direito e que a perseguição ocorre inclusive pelo Estado brasileiro.
A discussão está lançada!

Leia também:
Página do MST
Blogue do Hélio Bicudo
Texto "MST em busca de um desenvolvimento sustentável"