Fernando
Prioste
coordenador da Terra de Direitos e advogado popular no caso Paiol de
Telha
O debate jurídico sobre a titulação dos territórios quilombolas está polarizado entre os que defendem a aplicação imediata da Constituição e os que exigem a aprovação de mais uma lei para que o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal possa ser aplicado. Mas, sabe-se que o debate jurídico não se limita a questões técnicas de possibilidade de aplicação das leis, pois o princípio da legalidade, tão valorizado pelo positivismo como pressuposto lógico da dita “segurança jurídica”, não está alheio à realidade que o circunda. As decisões do Poder Judiciário, por mais que neguem os tribunais, não são frutos exclusivos da técnica profissional neutra dos magistrados.
Ao levar em conta os aspectos da judicialização da política e da politização da justiça, o debate sobre os direitos constitucionais das comunidades quilombolas desvela os valores políticos e ideológicos, entre outros, que influenciam os posicionamentos jurídicos no tema. O caso da titulação do território quilombola Paiol de Telha, que envolve o julgamento da constitucionalidade do Decreto Federal 4887/03 pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), não foge à regra. Os oito votos proferidos na sessão de julgamento do órgão espacial do TRF4, em 28 de novembro, escancaram as divergências e abrem caminhos para entender as tensões que determinarão o resultado final do julgamento. Seis foram favoráveis e dois contrários à constitucionalidade do Decreto.
Aqueles que defendem a aplicação imediata da Constituição e a constitucionalidade do Decreto Federal 4887/03, em regra, não escondem os fundamentos políticos e ideológicos que influenciam o manejar da técnica jurídica. De modo geral reconhecem o Brasil como um país com forte opressão racial sobre negros e negras, destacam a dívida histórica do Estado e da sociedade para com as comunidades quilombolas e, entre outros fundamentos, valorizam o papel que o povo quilombola tem, hoje, nos campos econômico, cultural e político de nossa sociedade. Essas premissas político-ideológicas orientam a aplicação técnica do direito que eleva o art. 68 do ADCT à categoria de norma de direitos humanos, reconhecendo ainda que a norma constitucional tem aplicação concatenada com a realidade a que veio regular. Nesse sentido, entendem que a Constituição Federal, em sua integralidade, assegurou, às comunidades quilombolas, e à sociedade brasileira, direitos que viabilizem a reprodução física, social, econômica e cultural dessas comunidades.
Por outro lado, aqueles que defendem a inconstitucionalidade do Decreto Federal 4887/03 não expõem de forma explícita os fundamentos políticos e ideológicos que sustentam seus posicionamentos jurídicos. Alegam, em verdade, que não se alinham a uma ou outra posição política, pois a decisão é estritamente técnica. Nesse contexto, argumentam que o texto constitucional do art. 68 do ADCT não é suficientemente nítido para ser aplicado, e que o respeito ao estado democrático de direito impõe que a titulação dos territórios quilombolas esteja necessariamente amparada em lei. Ou seja, não basta o comando constitucional. Sustentam que as alterações havidas entre os Decretos Federais 3912/2001 e 4887/03 demonstram a situação de insegurança jurídica que só poderia ser superada com a aprovação de uma lei que regulasse o art. 68 do ADCT. Nesse sentido, consignou o juiz federal Nicolau Konkel Jr, citado pela Desembargadora Marga Inge, relatora do caso do Paiol de Telha no TRF4:
“Sem se alinhar a uma opção política ou outra, resta evidente que cada governo emprestou ao art. 68 do ADCT o significado que corresponde à linha ideológica de cada partido. Aliás, é natural que assim o seja, sendo inconcebível que as administrações sejam rebeldes com seus compromissos históricos. No entanto, se é verdade que os fatos sejam assim, não é menos verdade que o Direito tenha que ser refém dos fatos. Afinal, o Direito não é a ciência do ser, mas do dever ser, sendo seu papel conter, quando necessário, a rebelião dos fatos.
O quadro que se apresenta é claro: existe uma necessidade premente de discussão sobre os limites e o alcance do art. 68 do ADCT. No entanto, essa discussão deve ocorrer no foro adequado que é o Congresso Nacional. Se é inegável que cabe ao Poder Judiciário Sindicar eventual regulamentação do tema, também não se pode excluir a necessidade de prévio debate político, a partir de um texto legal que reflita a vontade do povo e não a da administração que expede o decreto.” (sem grifos no original)
Como se vê no trecho acima transcrito, as decisões judiciais estão impregnadas de valorações políticas que orientam o pensar e agir jurídico. Afirmar que a vontade popular não está nítida na Constituição Federal, que ainda é necessário fazer um debate político sobre o tema para se afirmar o direito já inscrito na Carta Magna e que o direito deve conter a rebelião dos fatos (no caso, a titulação dos territórios quilombolas), não é um raciocínio lógico matemático que se extrai de uma suposta interpretação neutra da lei.
A posição jurídica daqueles que insistem em negar a constitucionalidade do Decreto Federal 4887/03 se escora em posição política que, via de regra, está associada à negação das políticas raciais afirmativas - por exemplo, o sistema de cotas - e a um suposto agravamento do conflito agrário decorrente da aplicação da política pública de titulação e reconhecimento de direitos às comunidades quilombolas. Também está associada a uma supervalorização do direito de propriedade em detrimento dos direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais daqueles que não são proprietários.
O nazismo e os quilombolas
O processo de titulação do território quilombola Paiol de Telha é questionado pela Cooperativa Agrária Agroindustrial Entre Rios, produtora de commodities. Durante o julgamento do caso do Paiol de Telha, em novembro, o advogado Eduardo Bastos de Barros, que representante de alguns integrantes da Cooperativa Agrária, comparou a origem dos alemães que hoje ocupam o território com a origem dos quilombolas que foram expulsos de suas terras. Disse o advogado que os alemães vieram para o Brasil após o fim da Segunda Guerra Mundial, uma vez que o governo da Suíça comprou terras na região de Guarapuava e doou aos alemães derrotados no conflito. Ainda segundo o representante da cooperativa, os alemães teriam perdido todos seus bens na terra de origem por terem integrado o exército do 3º Reich durante a guerra e, assim, na visão do advogado, teriam uma origem humilde como a dos quilombolas do Paiol de Telha. A terra recebida pelos alemães do governo suíço não é o território quilombola do Paiol de Telha.
Contudo, a afirmação do advogado apenas corrobora o abismo de desigualdade entre os alemães acolhidos pelo Estado brasileiro e a situação de total invisibilidade da comunidade quilombola frente ao Estado. No embate entre a versão dos quilombolas - que afirmam terem sido expulsos à bala de suas terras - e dos alemães - que dizem ter comprado a terra dos quilombolas - fica o desafio de tentar compreender como se deu, e como se dá, a relação de disputas por terras entre descendentes de negros que foram escravizados e ex-militares alemães do regime nazista de Hitler.
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- Artigo "Terras quilombolas, um direito constitucional" (Fernando Prioste)
- Processo eletrônico no TRF4.
"A pena não passará da pessoa do réu". O conflito terminou há 70 anos; para ser suspeito de ter sido um soldado alemão responsável por alguma coisa a pessoa teria que ter hoje pelo menos 88 anos. Como não tem quase nenhum deles vivo com essa idade voces querem é culpar e expropriar os filhos e netos dos alemaes, ou seja, sua raça. Por isso esse texto é racista e o que ele esta incentivando é o ódio racial. Se me apontarem um cara velho o suficiente e mostrarem indicios de que ele era maior de idade e de que ele lutou ao lado nos nazistas por opcao (fora do alistamento obrigatório) vou concordar em que ele seja processado de forma individual (uso a frase "processo individual" para destacar o óbvio) mas sou contra a incriminação de qualquer descendente ou qualquer suposta criança nazista (alguem com por exemplo 80 anos atualmente e que na época poderia ser um nazista mirim de dez anos...). Obs tenho ascendencia judaica (familia vieira de portugal) mas de maneira nenhuma aceito que se incriminem e se roubem as propriedades de pessoas que não foram pessoalmente responsáveis e que aqui são apontadas como nazistas apenas por serem filhos ou netos de nazistas, ou seja, motivo de raça (os humanos sao uma única raça mas tambem chamamos de raça os descenentes ou parentes consanguineos). Repito: TEXTO RACISTA.
ResponderExcluirPrezado Luis Vieira,
ExcluirAcredito que você não leu o texto com a atenção que devia: propus expropriar terras de alemaes ou seus descendentes? Propus processar algum alemão pelo que fez durante a segunda guerra? Você prestou atenção no texto para ver que foi o advogado que atua contra os quilombolas que AFIRMOU que seus clientes são mililtares refugiados da segunda guerra mundial? Não há dúvidas que os quilombolas foram vítimas de racismo, e outras tantas violências, quando foram expulsos a bala de suas terras. Também não há dúvidas que os alemães e seus descendentes hoje ocupam as terras QUE SÃO DOS QUILOMBOLAS. Você, assim como eu, é livre para interpretar. Na minha interpretação dessa história do ROUBO das terras o racismo faz o negro vítima e o branco (inclusive os alemães) opressor. Mas, como disse, você é livre para escolher uma versão, seja ela verdadeira ou não.
Olá, Luis Vieira,
ResponderExcluirA já clássica historiografia do Paraná registra o seguinte sobre o caso:
"Nos campos de Guarapuava, fixou-se também em 1951 um grupo de alemães, refugiados da região do Danúbio. Fundaram a colônia de Entre Rios, com cerca de 350 pessoas, que rapidamente prosperou" (WACHOWICZ, Ruy. História do Paraná. 9 ed. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2001, p. 157 - trata-se de livro lançado pela primeira vez em 1972, o mais conhecido obra sobre a história do estado).
Relacionar o nazismo com os quilombolas é uma operação lógica, especialmente porque levantada pelo advogado de defesa dos próprios alemães para justificar o caso, ou seja, para explicar o porquê deste grupo de imigrantes ter ocupado a região (sendo que não era de seu direito, quando de sua vinda para o Brasil, uma vez que a eles estavam destinadas outras terras). O debate é sobre os seus desdobramentos (como esta situação se configurou?) e sobre o racismo institucional que continua prevalecendo, fazendo valer direitos para os brancos e nunca para os negros
E o debate continua.
Saudações
Luis Vieira, agora que sairam as notas taquigráficas da sustentação oral feita no dia do julgamento você pode conferir o que disse o advogado que atuou contra o direito das comunidades quilombolas. "As pessoas que represento, Excelências, têm uma trajetória de vida tão sofrida quanto a das comunidades quilombolas. São imigrantes europeus de origem alemã que, por sua naturalidade, lutaram na II Guerra Mundial ao lado do exército alemão. Terminada a II Guerra Mundial, essas pessoas, com a Alemanha derrotada, viram-se subitamente privadas de toda a sua propriedade e ficaram como refugiados de guerra. O governo da Suíça, país que ficou neutro na guerra e que tirou um proveito financeiro, infelizmente, do conflito, organizou um programa de realocação de boa parte desses refugiados de guerra. E o governo da Suíça, por meio de fundações, adquiriu terras em vários países do mundo: Austrália, Brasil, Canadá... E uma dessas áreas é a região de Entre Rios, no Município de Guarapuava, no Estado do Paraná. Essas pessoas que aqui vieram - e a própria leitura dos nomes, Excelências, dos nossos clientes revela a sua origem -, elas vieram aqui sem absolutamente nada; tudo tinham perdido em decorrência da II Guerra Mundial. Fundaram a cooperativa representada pelo Dr. Fernão, que me antecedeu, ainda no navio, durante a viagem. E aqui chegaram, nos anos 50, tendo ido para essa área que foi adquirida. Pois muito bem; com o passar do tempo, prosperaram. A região é uma das áreas com maior índice de produtividade mundial, repito, mundial, campeã nacional de produtividade, e essas pessoas, organizadas em cooperativa, ligadas tanto pelo elemento étnico, cultural como pela vontade de viver e superar a tragédia que tinham vivido da II Guerra, adquiriram áreas além daquelas que foram originalmente adquiridas pelo governo Suíço. E uma dessas áreas foi adquirida pela cooperativa no Município de Reserva do Iguaçu, que é a área em comento no processo administrativo do INCRA."
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