Muito mais do que receita pronta, o que disponibilizo a seguir são onze elementos que acredito serem fundamentais para a formação e manutenção de uma Assessoria Jurídica Universitária Popular (AJUP).
1. Descobrir-se coletivamente: encontrar estudantes e, por vezes, docentes e técnicos que compartilhem dos ideias e da vontade de atuar no ambito da AJUP é tarefa que transcende o próprio curso do Direito. Em muitos casos, a reunião do grupo de sujeitos que dará início ao processo de formação e manutenção da entidade ocorre pelo compartilhamento da crítica às práticas tradicionais dos cursos universitários, voltados para propostas desvinculadas das problemáticas sociais relevantes, o que coloca o referencial da AJUP como contra-proposta ao marasmo acadêmico, e potencializa a inserção da educação popular em direitos humanos enquanto discurso de repercursão e inserção interdisciplinar, de reencontamento com a educação e de fomento ao protagonismo estudantil na formação e politização universitária. Importante frisar que o planejamento do trabalho coletivo deve ser realizado de modo a não sobrecarregar determinadas pessoas, potencializar as práticas educacionais a partir da valorização das diferentes contribuições de cada participante e manejar a passagem das gerações que irão atuar na AJUP.
2. Projeto Político: trata-se da elaboração do projeto para a AJUP e da AJUP para a sociedade e universidade em relação ao conteúdo intrínseco da(s) problemática(s) que a constitui. É fundamental a elaboração escrita deste documento, que se torna a matriz identitária e político-organizacional da proposta ajupiana, onde podem ser encontrados os pressupostos, as reivindicações e as propostas, passíveis de serem reformulados ao longo da atuação. A estrutura do projeto pode conter sistematização similar às encontradas no ambito acadêmico formal – introdução, justificativa, hipóteses, metodologia, objetivos, etc. –, mas deve sinalizar com atenção as bases político-ideológicas e teórico-metodológicas da entidade, de forma a garantir a coerência da ação e a manutenção para além de conjunturas político-institucionais pontuais. O projeto político não pode ser confundido com o projeto extensionista ou de pesquisa, ele é, a meu ver, a carteira de identidade de cada AJUP, sua carta de apresentação e representação que sinaliza a própria razão de existir da entidade e responde, basicamente, a três perguntas: por que formar uma AJUP? para (o) que(m)? e a favor/contra o que?
3. Institucionalização: processo de enraizamento das entidades nos espaços universitários estrategicamente ocupados. A institucionalização ajuda tanto na manutenção financeira da entidade, em especial a partir do ingresso em editais de seleção de bolsas de extensão e pesquisa, como no fortalecimento político, por meio da defesa da valorização da prática ajupiana como modalidade extensionista que necessita de local próprio para operacionalizar as atividades, se possível com a aquisição de sala com materiais de consumo e permanentes, e da oferta de carga-horária anual para os discentes que participam diretamente – algo que pode ser incluído na carga-horária obrigatória de atividades complementares ou como disciplina optativa do percurso acadêmico. Não se pode esquecer de reinvindicar, quando possível, a inclusão da AJUP no Plano Pedagógico do Curso e nos Planos de Gestão, o que reforça o caráter permanente da proposta e instrumentaliza a entidade para posteriores reivindicações político-institucionais pela melhoria das condições da AJUP e do curso universitário.
4. Interdisciplinaridade: o trabalho interdisciplinar envolve o esforço do reconhecimento das incompletudes teóricas dos ramos da ciência moderna e a proposta de articulação solidária e planejada entre diferentes sujeitos de saberes científicos para a potencialização das ações extensionistas desenvolvidas na AJUP. A reivindicação da interdisciplinaridade na AJUP ganha ares de bandeira de luta pela expansão interna na universidade, saindo do gueto tradicional dos cursos de Direito para procurar integrar sujeitos oriundos de outros campos do conhecimento científico, como Pedagogia, Psicologia e Sociologia. O trabalho com a educação popular e com os direitos humanos, além das inserções específicas de cada entidade na realidade local de atuação, são fontes própícias para o fomento do diálogo interdisciplinar, e necessitam serem realizadas de modo a garantir a autonomia de cada sujeito de saber no espaço de atuação e articular engajamentos conjuntos para a melhoria das atividades.
5. Formação interna: a formação interna deve ser contínua, dando enfase ao caráter permanente desta tarefa. De início, é necessária a leitura e discussão de textos, concomitante a problematização de vídeos, poesias, músicas, entre outros recursos didáticos, sobre conteúdos compreendidos como relevantes pelo grupo para o amadurecimento da entidade. Neste caso, as discussões coletivas tem peso fundamental no processo de constituição das marcas identitárias da AJUP, pois possibilitam a determinação de posições majoritárias em relação a determinados assuntos, o que se reflete no modo como a AJUP pode externalizar para outros sujeitos e entidades suas definições. Além disso, é salutar que a formação interna abarque temas – universidade, direitos humanos, educação popular, movimentos sociais, interdisciplinariedade, acesso à justiça, socialismo e assessoria jurídica (universitária) popular – que são cruciais para o diálogo com outras AJUP’s no ambito da Rede Nacional de Assessorias Jurídicas Universitárias (RENAJU) e compreensão do que seja atuar em/como AJUP. Por isso, o ideal seria que a formação interna contínua fosse planejada de modo a acolher assuntos gerais, os mencionados acima, e temas específicos dos grupos de estudantes, sobretudo os voltados para as práticas de extensão, pesquisa e ensino de interesse.
6. Intercâmbio regional e nacional: o início da prática de AJUP num determinado local universitário está quase sempre atrelado ao incentivo desenvolvido em estudantes, isolados ou coletivamente organizados, por meio da participação no Encontro Nacional dos Estudantes de Direito (ENED), onde ocorre o Encontro das Assessorias Jurídicas Universitárias (ENAJU), quando há o primeiro contato com participantes de AJUP’s e a compreensão da maneira de atuação e organização destas entidades. O passo seguinte é a inserção na lista virtual da RENAJU e a participação nos outros eventos nacionais ou regionais que compõe o cronograma de atividades da Rede – o Encontro Nacional das Assessorias Jurídicas Universitárias Populares (ERENAJU), normalmente realizado no mês de abril de cada ano, no feriado da pascoa; e os dois Encontros Regionais, norte-nordeste e sul-centro-oeste-suldeste, que ocorrem no segundo semestre de cada ano. A participação nestes eventos e na lista virtual possibilita o intercambio de idéias, materiais e experiencias fundamentais para o amadurecimento de novas AJUP’s e estratégicos para o fortalecimento da RENAJU. Em muitos casos, como ocorreu durante o período de formação do Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular “Aldeia Kayapó” da UFPA, em 2004, o deslocamento de membros de AJUP’s mais antigas – no nosso caso, do companheiro Igor Almeida do NAJUP “Negro Cosme” da UFMA – para realizarem oficinas com os membros de novas AJUP’s é ação estratégica que possibilita intercambio prolongado sobre o cotidiano, os marcos teóricos e os caminhos a serem traçados.
7. Rede de parceiros: a designação representa o conjunto de atores e instituições sociais, públicas ou privadas, que dialogam com a AJUP e possibilitam a articulação de ações em rede. Os parceiros podem contribuir tanto para a participação em ações internas de cada entidade quanto para o desenvolvimento de atividades coletivamente construídas e organizadas, como os Comites e Fóruns. Sobretudo, é importante pensar a formação da rede de parceiros como medida para ampliar a repercussão e abragencia de ações extensionistas desenvolvidas pela AJUP, principalmente quando ocorre a articulação com instituições estatais e movimentos sociais, pois isto garante a transformação de discussões pontuais em pautas de reivindicações e políticas públicas para a efetivação de determinados direitos humanos que mostram-se ausentes ou violados em outros locais além daquele onde se trabalha mais detidamente.
8. Ação extensionista: historicamente, as AJUP’s garantem a institucionalização e a representação na universidade por meio da tradução de suas ações sociais em projetos de extensão universitária. Por que a extensão? Porque é o espaço acadêmico privilegiado para o diálogo e a interação com a sociedade, materializado, notadamente na AJUP, respeitando a indissiocialibilidade entre extensão, pesquisa e ensino, e promovendo a politização da função social da universidade, e dos saberes científicos engajados, para a articulação democrática com os saberes e sujeitos populares. O que a tradução como extensão universitária garante? Em primeiro lugar, mínimos recursos financeiros, por intermédio da concessão de bolsas que subsidiam as despesas necessárias para a realização das atividades e manutenção da entidade. Em segundo lugar, a formalização da entidade, ou seja, o reconhecimento institucional de sua(s) proposta(s) de intervenção sócio-acadêmica e credibilidade do grupo de participantes. Em terceiro, a inserção no espaço das extensões universitárias, com a possibilidade de intercambio de conhecimentos e sujeitos entre os diferentes projetos que a integram e a divulgação das atividades desenvolvidas e do ideal de AJUP nos eventos institucionais regionais – as Jornadas de Extensão, que ocorrem normalmente no final do ano – e nacional – o Congresso Nacional de Extensão Universitária. No entanto, é necessário haver a construção de projeto escrito e a procura por professor universitário que possa coordená-lo, este último requisito alvo de muita dificuldade, na maioria das AJUP’s, devido a carência de educadores que se comprometam em coordenar atividades extensionistas – haja vista o total descaso com que a extensão universitária é tratada no ambito acadêmico, com disponibilização de parcos recursos e desvalorização em relação a pesquisa e ensino – ou compartilhem dos ideais e forma de atuação da assessoria jurídica – pois a maioria deles (ainda) pensa a extensão univeristária pela ótica da assistencia jurídica, com foco na prestação de serviços esporádicos, paternalistas e conservadores. Ainda assim, e seja qual for o coordenador escolhido, a autonomia e o protagonismo estudantil não podem ser abalados, sob pena de perda de uma das principais marcas identitárias e organizacionais da AJUP.
9. Divulgação e Produção: divulgar a AJUP significa, literalmente, dá-la visibilidade nos espaços sociais e acadêmicos onde atua. Muitas vezes, os estudantes de Direito passam o curso todo sem sequer terem ouvido falar da AJUP que nele existe. A divulgação da AJUP fortalece sua imagem, incentiva a inserção de novos membros e amplia a rede de parceiros. De que modo é possível divulgar a AJUP? De muitos modos, por meio de cartazes, folderes, camisetas, seminários, blog, passagem em salas de aula, entre outras medidas. Em especial, a divulgação também pode ser feita através da produção teórica e publicação decorrente em revistas, anais, livros ou outros meios impressos ou eletrônicos. No entanto, a produção teórica traz consequências maiores do que a divulgação, torna-se mecanismo fundamental de reflexão sobre as ações desenvolvidas, de apropriação de marcos teóricos, de amadurecimento individual e coletivo, e de registro histórico. O engajamento na teorização das práticas necessita ser igual ao da pratica do teorizado, pois esta relação dialética permite a melhoria das ações e o fortalecimento da AJUP.
10. Registro histórico: a produção de banco de dados sobre o passado de cada AJUP garante a oportunização de informações sobre sua história. Muitas vezes, a preocupção apenas com o cotidiano, com o que ocorre no presente, atrelado ao fato de sermos sobrecarregados com múltiplas tarefas diárias, impossibilita que os participantes da entidade tenham a real dimensão da importancia desta ação. A produção e manutenção de registros históricos, seja os de ambito administrativo – as atas de reuniões, os e-mails da lista virtual e os produtos técnicos (cartazes, folderes, informativos, ofícios, gravações, fotografias, estruturas de oficinas, listas de frequências, entre outros) – ou os de cunho acadêmico – os artigos, as monografias, dissertações e teses, os livros e demais materiais bibliográficos que formam a biblioteca de cada AJUP, entre outros – representam medida estratégica para a longevidade das entidades e compreensão dos caminhos a serem tomados no presente e no futuro. Por isso, seria salutar que alguns membros ficassem responsáveis pela organização deste banco de dados e disponibilização para os outros membros ou demais pessoas/entidades interessadas.
11. Fomentar o tesão: o tesão é um princípio ajupiano, ou melhor, é um princípio de todo ato revolucionário que se reconhece como solidário, democrático e emancipatório. Postular o fomento ao tesão é fazer da participação na AJUP momento de diversão, de descontração e de reencontro com sentimentos pouco valorizados pela ciência, educação, mercado e sociedade moderna, como o amor, a amizade e o companheirismo. Por um lado, a inserção de dinâmicas e outras atividades lúdicas ou artisticas (poesias, músicas, brincadeiras, teatro, dança, filmes, etc) fomentam a produção do tesão nas ações desenvolvidas, seja numa simples reunião de final de semana, numa formação interna, ou numa oficina da ação extensionista. Mas isto somente não é o bastante. O tesão também precisa ser fomentado pela oportunização de atividades periódicas de lazer, momento em que os participantes da AJUP se reunem para festajar a vida e compartilharem instantes de alegria e descontração que fortalecem a união entre os membros e a vontade de atuar. A leitura (coletiva) do Estatuto do Tesão (Lei Complementar n. 0.001 de 01 de abril de 2003) também é medida importante, para o entendimento da abragência e potencialidade do tesão, e compreensão de que este representa “... a paixão, o entusiasmo, a alegria, a motivação e a juventude necessárias à construção de um mundo livre e igualitário, onde a felicidade e a beleza sejam experiencias cotidianas...”, como disciplina o art. 2º.
“... a paixão, o entusiasmo, a alegria, a motivação e a juventude necessárias à construção de um mundo livre e igualitário, onde a felicidade e a beleza sejam experiencias cotidianas...”
ResponderExcluirA Felicidade e a Beleza...Muito importante, isso.
Olá leitores do blogue
ResponderExcluirQuero destacar alguns pontos de suma importância, na minha opinião, levantados pelo Assis:
A inter, multidisciplinariedade, nada mais são, para mim, do que tentativas de reaproximação com o conceito de totalidade, que foi dizimado pelas medidas de especialização do conhecimento. Nossa tarefa é juntar os caquinhos e refazer este mosaico.
Outro desafio nosso é largar um pouco a carapuça do direito e assumir mais nosso lado de educadores populares. Tarefa nada fácil, por sinal.
Assis, gostei muito dos pontos da ludicidade, da necessidades dos encontros e da rede de parceiros.
Quero deixar duas questões em aberto, quando à institucionalização e ao socialismo.
Acho que cada um desses pontos vale uma nova postagem, vamos pensar em algo.
Por enquanto, quero dizer que a institucionalização é algo bastante polêmico, inclusive está sendo debatida esta semana na lista de discussão da Renaju no Yahoogrupos. Eu costumo inclusive conceitualizar a assessoria universitária desenvolvida por projetos com maior autonomia de assessoria estudantil. Para mim, o que caracteriza os projetos de assessoria estudantil é esta autonomia em relação à universidade, ao Estado brasileiro, e outros grupos políticos. Não podemos perder isto de vista.
A questão do socialismo sempre é polêmica nos nossos encontros, seja por parte da centro-esquerda, seja por parte dos anarquistas. Assim, vamos manter nosso respeito à diferença, sem deixar de afirmar nossas convicções políticas, de defesa do projeto socialista ou o que mais acreditarmos.
Assis, grande contribuição para ser debatida no próximos encontros da RENAJU!
Ribas,
ResponderExcluirSem dúvida, acredito que a questão da institucionalização é algo que pode ou não ocorrer a partir da escolha estratégica de cada AJUP, tendo em vista o contexto, ou, numa linguagem bem marxista, a correlação de forças, que há em sua universidade. Não adianta institucionalizar se isto significar burocratização excessiva, perda da autonomia estudantil ou da ação política. No entanto, acredito que ele deva ocorrer, sempre que possível.
Concordo plenamente com relação ao socialismo, e a reflexão sobre outras teorias emancipatórias também é bem vinda!
No mais, acredito que as AJUP's, de maneira geral, souberam estabelecer bom diálogo com o saber popular, mas não com os outros saberes científicos, daí a necessidade de encontrarmos medidas para conseguir aprofundar o espaço da interdisciplinaridade, pois isto significaria tornar a AJUP "menos" Jurídica e "mais" Universitária - mesmo com todo o potencial dos direitos humanos de possibilitar esta abertura e negociação.
Logo logo, estas novas reflexões abertas terão que render um artigo, ou muitos...
Abraços.