domingo, 27 de março de 2011

Justiça e política capturadas pelo direito: um rapto moderno


Os capitalistas, de Diego Rivera

Um inegável mal-estar nos acompanha a todos os assessores jurídicos populares: o referencial crítico do direito passa por Marx e este passa pela negação do direito. Daí a reincidente disputa em torno do momento jurídico da realidade – afinal, o direito deve ser buscado desde um uso tático, o que significa acentuar uma postura negativa quanto a ele ou, ao inverso, ele deve se apresentar desde um horizonte estratégico?


A discussão entre o uso tático do jurídico e o horizonte estratégico do direito leva a perceber, exatamente, duas grandes capturas levadas a termo pelo modo de produção moderno (atente-se para a proposital redundância: modo e moderno têm a mesma referência etimológica). Tais operações se apresentam como sendo a via de mão-dupla que a fenomenologia do direito moderno costurou como seu grande rapto: o sufocamento da justiça ao âmbito do estado e a neutralização da política na esfera da verdade aparente do extrajurídico.


Em uma reflexão de 1842, o jornalista Carlos Marx se acercava do problema do direito na Alemanha oitocentista quando das proibições ao povo direcionadas ao seu costume de recolher madeiras soltas nas propriedades privadas renanas. Diz o articulista Marx:


“para a pobreza, reivindicamos o Direito Consuetudinário e, em verdade, um Direito Consuetudinário que não é um Direito local, um Direito Consuetudinário que é, em todos os países, o Direito Consuetudinário da pobreza. Vamos ainda mais longe, para afirmarmos que o Direito Consuetudinário, por sua própria natureza, pode ser apenas o Direito dessas massas mais inferiores, desapossadas e elementares. Os assim chamados costumes dos privilegiados são concebidos como costumes contrários ao Direito. A data do seu nascimento remonta ao período em que a história da humanidade constituía uma parte da História Natural e, tal como o comprova a saga egípcia, todos os Deuses escondiam-se em formas de animais. A humanidade surgia decomposta em raças determinadas de animais selvagens cujo inter-relacionamento não era a igualdade, mas sim a desigualdade, uma desigualdade que as leis positivavam”. (ver Debates acerda da lei sobre furto de madeira).

Marx, em seus primeiros escritos, claramente já rejeitava as tendências positivistas do direito no qual se formara, mas também se afastava do jusnaturalismo hegemônico. Ainda assim, porém, sua obra inicial não se ressentia de apelar para um certo sentido de justiça, extraído – como se pode perceber – de um direito consuetudinário da pobreza.


Mais do que isso, contudo, logo depois a problemática do direito seria vista como uma questão política, que não se poderia universalizar, já que umbilicalmente ligada ao âmbito material da produção da vida. Daí não fazer sentido deslocar o direito do âmbito das relações políticas, ainda que isto não signifique, necessariamente, deixar de reconhecer a especificidade moderna do direito em termos de relações jurídicas e forma particular.


De toda forma, o mais interessante para nossa discussão é perceber que o uso tático do jurídico nunca esteve obstado do pensamento marxiano; já o horizonte estratégico do direito é a controvérsia-mor entre os críticos marxistas do jurídico. Até que ponto se pode desvencilhar, portanto, da afirmação de que o direito pode ser um universal para além de o modo de produção capitalista?


Por isso, a clausura da política na institucionalidade e a da justiça na estatalidade mantém-se deveras adstrita ao não-direito. Mas, em sentido reverso, o direito raptou historicamente o sentido da justiça para sua internalidade e, ao mesmo tempo, expulsou a política, para uma outra especialização da prática e do conhecimento.


Resta-nos, assessores jurídicos populares, ultrapassar os limites da justiça como direito posto, sem recair em jusnaturalismos de base metafísica, e superar a política como um além-direito, sem se valer de uma teologia política. Daí a afirmação de algo de justiça e de política como direito, mesmo sabendo-se que há que se negar a juridicidade específica da modernidade.

2 comentários:

  1. Pazello, fiquei a refletir como pode ser lida, pela ótica marxista, a estratégia dos movimentos sociais de pressionarem com que suas reivindicações políticas sejam "formalizadas" como direitos positivos, ou seja, de ação política para ingresso no direito estatal?
    Outra coisa, parece que a questão da universalização ou não do direito se coloca também como questão estratégica, e, como na reflexão que coloquei acima, é muitas vezes o não-direito (ou o que está para além da lei, como direito consuetudinário, sistemas jurídicos diferenciados ou mesmo pluralismo jurídico) que reclama universalização no direito, como ocorreu com o movimento feminista na década de 60/70, com o movimento negro, quase no mesmo período, e com diversos movimentos sociais pós-redemocratização do país.
    Por fim, fica a sensação de que a possibilidade de superação dos limites da justiça ao direito posto e da política ao além-direito, não se encontra apenas numa certa "nova teoria do direito", o que envolve mesmo a disputa pela concepção de direito, mas uma certa observação etnográfica - para falar em termos antropológicos - das práticas jurídico-judiciais, o que revelaria (como já revela) que justiça, política e direito fundem-se e emergem no cotidiano das questões e das relações desenvolvidas, mesmo que não se negue teoricamente.
    Enfim, algumas reflexões...

    ResponderExcluir
  2. Assis,

    Concordo que há necessidade de, hoje, nos preocuparmos com a positivação de direitos, afinal ela é reivindicada pelos movimentos sociais e populares. O próprio Marx abriu brechas nesse sentido quando avaliou, com um certo tom de apoio, que os "avanços" na legislação trabalhista deveriam ser buscados sempre, expressão das lutas da classe trabalhadora (no capítulo sobre esta legislação, que se encontra no volume I de "O capital"). Isto, porém, não significa enclausurar a discussão do direito positivo à esfera da "necessidade histórica", mas antes reconhecer sua historicidade.

    Nesse sentido, eu diria que o nó górdio de nossa problemática é saber se devemos apostar todas as nossas fichas organizativas, políticas e de justiça no fenômeno "direito" moderno, tal qual nós o conhecemos. Os movimentos citados por você (feminista, negro e os da pós-"democratização"), é certo, reclamaram o "reconhecimento" de suas pautas ao âmbito do jurídico. E o fizeram lançando mão de uma profunda capacidade prática: a percepção de que há uma assimetria de PODER entre o não-direito (dos movimentos sociais e populares, por exemplo) e o direito (do estado e do capital). Daí entramos no terreno da política, novamente, que neste jogo assimétrico tem no direito uma grande ancoragem. Minha questão é: tornar-se-á possível, em algum momento, superar essa assimetria de poder e desvincular a organização política da sociedade e sua concepção de justça do direito moderno?

    Estou absolutamente de acordo de que não se trata de uma tarefa para uma "nova teoria do direito". Certamente que não. E ainda que ela possa ajudar, caso in-surja!, seus limites históricos frente à divisão do trabalho intelectual tal qual está colocada contemporaneamente é inegável. Agora, tampouco acho que seja um exercício de empiria pura ou de "recolhimento" das prática sociais. Não quero dizer, obviamente, que sua referência a uma "etnografia das práticas jurídico-judiciais" signifique esta empiria. Não. Entendi como um apelo seu, com o qual me afino, de que necessitamos olhar para as táticas/estratégias concretas das organizações sociais e populares no sentido de perceber sua perspectiva do que seja o direito. Mas, mesmo considerando isto tudo, penso que a superação das capturas modernas da justiça e da política passam mais por uma nova práxis de organização política do que pela mera constatação e reconhecimento de "normatividades" "alternativas" (se é que podemos usar estas duas expressões...). Enfim, mesmo que tarefa gigantesca, devemos nos preocupar com ela. E uma preocupação que vá para além de a canonização teórica (novos paradigmas, novas teorias...), já que necessidade prática. E daí a postura de um Mariátegui ser pedagógica e analógica: os incas são nosso exemplo, mas não fundaremos uma sociedade inca; faremos, isto sim, algo novo (na práxis) com seu exemplo e reorganizaremos nossa realidade.

    Espero que possamos continuar dialogando sobre este espinhoso, necessário e gostoso tema.

    Grande abraço!

    ResponderExcluir