segunda-feira, 14 de março de 2011

"E todo pranto forma a imagem do homem": rápidas notas sobre Japão, Haiti, MAD e MAB


Uma semana se inicia e outra começa, mas uma velha canção me vem à cabeça. "E todas as formas da natureza/ Mostravam/ A grandeza do mundo/ Em lágrimas". A grave e rouca voz de Zé Ramalho entoa uma das imagens de nosso tempo. Mesmo que devamos ser otimistas na ação, a razão dá seus mais claros sinais de que é o pessimismo seu princípio reitor.

Em breves palavras, gostaria de relembrar quatro acontecimentos, puxados pelo primeiro deles, palpitante nas últimas horas. No Japão, alardeia a mídia, um tsunâmi atinge a costa nordeste e oferece aos olhos dos meios de comunicação de massa um trágico espetáculo. O imponderável assumiu o timão desta navegação de cabotagem e, a nós, o que resta fazer? A princípio, nada. Será isto mesmo? A Liga Bolchevique Internacionalista denuncia: "Governo imperialista tenta esconder acidente nuclear". Para alguns, a terminologia e a base teórica são ultrapassadas; para outros, não só o imperialismo esconde suas mazelas (ver discussão na página do CMI - Centro de Mídia Indepente). Independentemente disso, porém, o fato natural impresível chocou-se, e com grandes ondas, em uma usina nuclear. Nessa medida, já não é mais o incalculável que rege os fatos, mas a razão humana.

A tragédia japonesa, por outro lado, faz lembrar que mesmo um país com grandes recursos tecnológicos e alto desenvolvimento econômico pode sofrer sérios reveses, como se vê em qualquer noticiário dos últimos dias. Se assim é lá, imaginem, leitores, a situação do Haiti! No número 42, de janeiro de 2011, Le Monde Diplomatique Brasil publicou um artigo sobre a situação do país após o terremoto de um ano atrás, em janeiro de 2010. Intitulado "Entre Deus e as ONGs", nele se lê:

Campo de golfe de Pétionville, um lugar outrora bastante frequentado por alguns. Trinta mil pessoas encontraram refúgio ali. A vantagem sobre os outros campos de desabrigados: os paisagistas, preocupados com o conforto dos golfistas, adornaram soberbas áreas de sombra – muito eficazes para proteger os novos usuários do sol escaldante que lancina entre uma pancada de chuva e outra – e amplas alamedas que facilitam o deslocamento, enquanto o caos reina em outras partes. As trilhas são margeadas por muros de sacos de areia para guiar a água das chuvas devastadoras. Em Pétionville, foram montadas algumas salas de aula improvisadas, uma clínica médica para crianças, pontos de acesso à água suficientes para todos e um cibercafé que funciona alguns dias em um dos espaços de convivência. Os refugiados ali realojados não estão muito longe dos bairros de origem.


E assim o velho local de divertimento das elites nacionais e estrangeiras acaba sendo o campo de "concentração" da lancinante miséria haitiana, tão constrastante com a riqueza de seu povo e com o pioneirismo de sua luta de libertação nacional, já que, historicamente, foi a primeira e única nação a proclamar sua independência pelas espadas e vozes dos escravos negros para ali levados pela mão do colonialismo francês e mundial, em 1804. O campo de golfe, desse modo, reproduz o Haiti do pré-terremoto e o agrava:

No tempo seco, as fezes formam o essencial das partículas em suspensão. Assim como a água suja, transportam o bacilo do cólera, que acaba de voltar à ilha depois de uma ausência de quase um século. Doença de fácil prevenção – ter acesso à água limpa e lavar as mãos com frequência reduz o risco –, ela faz estragos aqui. Em meados de dezembro, quase cem mil pessoas foram contaminadas, 34 mil hospitalizadas. Mais de 200 mil mortes foram contabilizadas. Até esse período, Tomas, o ciclone que atingiu a ilha em 5 de novembro, ajudou na propagação da bactéria. Por todos os lados, fossas sépticas transbordam e misturam oconteúdo às imundices trazidas pelas tempestades. Receptáculo de águas furiosas e lixo que elas levam, os campos de desabrigados se transformaram em imensas fossas infestadas de vibriões coléricos.


Mas outros predadores também os rodeiam: os proprietários de terras. Os terrenos vazios agora valem ouro e a especulação imobiliária vai de vento em popa. A destruição de muitos arquivos oficiais após o terremoto, a incerteza quanto aos títulos de propriedade e a ausência de um cadastro nacional prometem ensejar inúmeros conflitos.


E eis que, uma vez mais, o que é totalmente imprevisível acaba acionando as turbinas "nucleares" e "essenciais" do que é mais do que sabido: o modo de produzir a vida continua o mesmo, em suas explorações e resistências.


O Japão e o Haiti nos fazem lembrar o Brasil também. Por quê? Em nosso país, todo ano próximo ao verão, grandes enchentes vêm assolando o território nacional. Mais uma vez, o imponderável se assenhoreia das interpretações e estas, mui ciosamente, esquecem de suas conseqüências demasiadamente humanas. As intensas chuvas disseminadas pela televisão que atingiram o Rio de Janeiro quase nos fazem deixar de observar que, em 2008, em Blumenau, no estado de Santa Catarina, o desastre "natural" mobilizou a população local que construiu o seu movimento, o MAD - Movimento dos Atingidos pelo Desastre. Ir a Blumenau, hoje, e ver que muito pouco se resolveu é racionalmente assustador.

Mais do que os desastres midiáticos (que, apesar de midiáticos, não deixam de ser desastres), porém, vem à tona, também, a luta que se comemora nesse dia 14 de março: o dia de luta contra as barragens. A partir da organização popular, o MAB - Movimento dos Atingidos por Barragens completa 20 anos com toda a pujança e continua levantando sua bandeira, em especial nos dias de hoje em que Belo Monte desponta como usina hidrelétrica em plena bacia amazônica, às margens do rio Xingu. Será a terceira maior do mundo e se apresentará como a consolidação do modelo energético brasileiro, o qual, aliás, venceu as últimas eleições presidenciais. Os militantes do MAB, hoje mesmo, estão organizando encontros e manifestações, como a grande pesacaria, em Altamira, no Pará, na beira do Xingu (conferir informe na página do MST: "14 de março é o dia de luta contra as barragens"). Além disso, para abril já está se preparando o 1º Encontro Nacional das Mulheres Atingidas por Barragens, o que dá uma demonstração da necessidade de pensarmos as lutas sociais a partir dos três cortes estruturais do sistema-mundo colonial, moderno e capitalista, como viemos empreendendo nas últimas postagens (ver: "As mulheres, sua resistência e a totalidade: ou quando as compositoras femininas compõem a sua própria história" e "O giro descolonial e o direito: os três cortes estruturais da colonialidade do poder"; ver também a mais recente postagem de Assis Oliveira, aqui no blogue: "Notícias do front (ou da fronteira)".

Com tudo isso, continua a soar a canção, confirmando o pessimismo da razão ao qual se deve acompanhar o otimismo da ação, ante o imprevisível da natureza e o mais que esperado do humano: "No momento em que a lua ia se elevando/ E todo pranto/ Forma a imagem do homem".

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