Guerra dos Palmares, de Manuel VictorÉ Zambi no açoite, ei, ei, é Zambi
É Zambi tui, tui, tui, tui, é Zambi
É Zambi na noite, ei, ei, é Zambi
É Zambi tui, tui, tui, tui, é Zambi
Chega de sofrer, ei!
Zambi gritou
Sangue a correr
É a mesma cor
É o mesmo adeus
É a mesma dor
É Zambi se armando, ei, ei, é Zambi
É Zambi tui, tui, tui, tui, é Zambi
É Zambi lutando, ei, ei, é Zambi
É Zambi tui, tui, tui, tui, é Zambi
Chega de viver, ê
Na escravidão
É o mesmo céu
O mesmo chão
O mesmo amor
Mesma paixão
Ganga-zumba, ei, ei, ei, vai fugir
Vai lutar, tui, tui, tui, tui, com Zambi
E Zambi, gritou ei, ei, meu irmão
Mesmo céu, tui, tui, tui, tui
Mesmo chão
Vem filho meu
Meu capitão
Ganga-zumba
Liberdade
Liberdade
Liberdade
Vem meu filho
É Zambi morrendo, ei, ei, é Zambi
É Zambi, tui, tui, tui, tui, é Zambi
Ganga Zumba, ei, ei, ei, vem aí
Ganga Zumba, tui, tui, tui, é Zambi
(Zambi, de Vinicius de Moraes e Edu Lobo)
Conhecer o Brasil é conhecer a história de suas resistências aliada ao seu quotidiano. E não há como passar ileso por elas, afinal exalam contradições até o último fio de barba em molho do crítico social. Basta conhecer um filho da tribo xavante, que hoje habita o Mato Grosso (mas que, passando por Goiás e Minas Gerais, já esteve no litoral), um agricultor que planta mandioca e butiá no litoral sul de Santa Catarina, um morador de ocupação anarquista do interior do Rio Grande do Sul, uma mulher da federação das favelas do Rio de Janeiro ou um acampado sem-terra dos planaltos do Paraná. É possível sentir algo similar, ainda que com sensíveis diferenças, com um intelectual que defende os direitos humanos na Paraíba ou um estudante universitário engajado nas lutas locais do Piauí.
A
Coluna Prestes de hoje tem a missão de, reflexivamente, trazer à tona um testemunho de sua marcha possível pelo Brasil. De Passo Fundo a Teresina, de Imbituba a Uberaba, do Rio de Janeiro a João Pessoa, tudo mostra com uma crueza incrível o que nos faz Brasil. Um só Brasil, envolto em milhares de Brasis. Aliás, a mesma crueza que nos faz uma América Latina integrada. A luta de classes e a opressão do povo em cada monumento colonial de Buenos Aires, em cada banco de Montevidéo ou em cada supermercado de São Paulo. As marcas do capitalismo fazem jus a seu nome: marcam cada cidade, cada morador, cada história.
Em termos de Brasil, voltando a nosso país-continente, é sempre de tirar o fôlego ouvir falar de Palmares. O reino negro palmarino, lembrado na peça
"Arena conta Zumbi", da década de 1960, pela pena de Guarniéri e Boal, pelos acordes de Edu Lobo e pelas caras e bocas de seus primeiros intérpretes, é uma marca muito grande para ser ofuscada por todas as demais que nos trouxe o capitalismo do século XX.
E que fôlego é este que falta ao se ouvir sobre Palmares? É exatamente o que decorre da ambigüidade de sua história quando contada nos dias de hoje: a briga de Ganga-Zumba com Zumbi, o suicídio de Zumbi ou a sua morte em plena resistência e, dentre outros, os direitos de Domingos Jorge Velho.
Lendo o livro "Piauhy: das origens à nova capital", de Cid de Castro Gomes, vem a perplexidade. Apesar das anotações sobre as atrocidades do bandeirante Domingos Jorge Velho, o autor abre um despretensioso e bastante contraditório subitem no capítulo dedicado ao pacificador de Palmares: "Domingos Jorge Velho luta por seus direitos". O bandeirante paulista ganha tanta importância para a história piauiense porque teria sido o seu primeiro colonizador não autóctone, junto a Domingos Mafrense.
Dedicado a matar a índios - o que era de sua especialidade - ficaria para a história sua fama de assassino e destruidor de Palmares, um reino negro com 9 a 50 mil habitantes, conforme a fonte, muito sincretismo, além de mais de 30 mil quilômetros quadrados de extensão entre os atuais estados de Pernambuco e Alagoas. Após a derrota do grande quilombo, entre 1695 e 1697, teria de haver a partilha dos territórios conquistados em favor de Portugal, para quem a região era muito importante de ser pacificada, já que desde 1678 ingressava com negociações, tendo inclusive recebido uma delegação de Palmares com ares de embaixada para conciliações.
Pois bem, Jorge Velho fora contratado para desbaratar Palmares e, juridicamente, seu contrato previa várias benesses caso resultasse exitosa sua expedição. Diz-nos o historiador moderno:
"nos seus últimos anos de vida, travou uma intensa batalha jurídica para fazer valer os termos do contrato assinado com o governo de Pernambuco, que lhe assegurava muitos títulos e patentes, quando terminada a guerra dos Palmares. Por sua forte personalidade, arranjara vários inimigos, incluisve a igreja e o próprio governador Melo Castro, com quem se desentendera. Outros governos se sucederam sem que fossem reconhecidos seus direitos. O velho bandeirante resolve apelar diretamente ao rei de Portugal".
O bandeirante (palavra que vem de
bandeira e lembra
bando,
bandoleiro e
bandido) pleiteava 1.060 léguas de terra para ele e para os seus oficiais, mas só viria a conseguir 400 delas, além de fundar uma vila. Trocando em miúdos: para assegurar o Brasil-continente de hoje, muito sangue resistente teve de rolar; e para os integradores nacionais, da mesma estirpe de um Duque de Caxias ou de um Raposo Tavares, sobraram-lhes honrarias de todo tipo, terras, cidades, riquezas e algumas pendências jurídicas, é claro (pois como já resgatamos o
comentário da lavra do filósofo Vieira Pinto, o direito colonial, imperial e, por que não?, republicano, sempre serviu, por intermédio de seus bacharéis, para resolver os conflitos intestinos às classes dominantes). E o mais irônico: o futuro democrático lhes reservaria homenagens de todo o gênero, como patronato de forças armadas, nomes de rodovias nacionais e, no caso de Jorge Velho, até nome de escola. E é o óbvio: escola é escola e tem de exaltar os seus heróis; e herói é herói...
Para nossa discussão blogueira, o mais interessante continua sendo explorar a pergunta: o direito pode ser instrumento de emancipação? Mais importante do que responder a questão é aceitá-la ou não. Isto porque aceitar a "instrumentalidade" do direito é aceitar a tecnologização do convívio social: análoga à arma, o direito. Será realmente possível acolher, sem estranheza qualquer, este "universal" deontológico? Ainda que possa restar alguma reticência no fato de se estar colocando este pré-questionamento ("podemos/devemos fazer a questão 'o direito é instrumento?'?"), já que pragmaticamente seus desdobramentos são pouco palpáveis à primeira vista, tomar tal postura nos põe de sobreaviso. A tecnologia jurídica é a cibernética da sociabilidade. E quando assim é, despe-se-a da politicidade. Mas isto nos levaria a outros pagos de questionamentos: os instrumentos civilizacionais são políticos em si ou apenas seu uso o seria?
De todo modo, fica a questão, ilustrada aqui com os termos com que o Marquês de Montebelo contrata Domingos Jorge Velho para sua maior tarefa, heróica e escolar:
"Condições e Capítulos que o Governador João da Cunha Souto Maior concede ao Coronel Domingos Jorge Velho para conquistar, destruir e extinguir totalmente os negros dos Palmares [...]:
5 - Que depois de extinguidos os ditos negros se não poderão servir deles nestas Capitanias e será ele Domingos Jorge obrigado a mandar por nesta praça de Recife todas as presas para dela as mandar vender ao Rio de Janeiro, ou a Buenos Aires; e o Sr. Governador lhe disporá e que conformidades o há de fazer; e só poderão ficar nestas capitanias os negros filhos de Palmares de idade de sete anos até doze; que uns e outros serão vendidos por conta do dito Coronel e de sua gente; porque para eles será a sua valia.
[...]
14 - Que o Sr. Governador e Ouvidor Geral lhes concedem perdão geral dos crimes, que tiverem cometido não tendo parte nem sendo dos da primeira cabeça".
Valia, poder e direito (perdão) se unem aqui de uma maneira assombrosa. E a história das resistências políticas latino-americanas abre mais uma enorme porta para se compreender o direito entre nós, em seu colonialismo e tecnologização.