domingo, 13 de fevereiro de 2011

A questão agrária na América Latina: questionamentos iniciais


"O lavrador de café" (1934), de Cândido Portinári


Há muito, os movimentos sociais populares vêm aumentando sua atenção para a construção de uma teoria que realmente consiga explicar a realidade na qual vivemos, em conformidade com os aspectos estruturais que nos condicionam e com as necessidades subjetivas que nos acometem. Neste sentido, o resgate das mais variadas interpretações do materialismo histórico é algo bastante compreensível e, aliás, não poderia ser diferente.

No entanto, este resgate não pode esquecer-se de seu contexto. O entorno no qual se insere a interpretação marxista na América Latina é fundamental para situarmos bem o nosso problema histórico em seu conjunto complexo de articulações. Apenas e tão somente desta forma é que poderemos avançar rumo a uma teoria que respalde nossa prática, ainda mais se propusermos que se trate de uma práxis atrelada aos movimentos populares.

Tanto o método quanto a crítica da economia política empreendida por Marx e a tradição que o seguiu não podem ser vistos distanciadamente com relação aos problemas históricos que nos afligem, desde o lado de cá do Atlântico.

Dessa forma é que se torna fundamental para nós, latino-americanos, a questão agrária e as implicações deste questionamento dentro do rol de problematizações oferecidas pela crítica marxista. E daí fazer muito sentido, também, a construção de um marxismo latino-americano, não com a intenção de isolá-lo do debate europeu, por exemplo, mas antes com o fito de criar uma mediação geopolítica, concreta e necessária, para a interpretação de nossa realidade.

Assim, se a questão agrária é muito mais que um problema voltado para índices de produtividade ou preços de itens produzidos no campo (o que se costumou chamar de “questão agrícola”), ela implica uma análise qualitativa que não pode descurar de um instrumental teórico potente. A questão agrária se volta para problemas da ordem das relações de produção, o que faz com que tenhamos de nos preocupar com a organização do trabalho efetivado no meio campesino, assim como a inserção deste problema dentro do quadro maior da organização da produção em toda nossa sociedade, a qual tem o signo histórico do capitalismo.

O modo de produção capitalista é regido pela junção de relações de produção com o desdobramento das forças produtivas, as quais se denotam por um critério básico quanto aos agentes nelas envolvidos: a propriedade ou não dos meios de produção. A não propriedade dos meios de produção representa a propriedade apenas da força de trabalho individual, a qual pode ser livremente vendida no mercado de trabalho com as garantias do direito moderno e suas formas jurídicas, em especial as contratuais.

Eis que, desse jeito, chegamos ao encontro do conceito universal-abstrato do modo de produção com a questão agrária, já que esta envolve justamente relações de produção no campo. E é a partir deste encontro que o debate se amplia e se complexifica, já que, na América Latina, a forma histórica da acumulação primitiva do capital se deu de um modo distinto daquele empreendido no capitalismo central.

Na verdade, em torno disso houve - e há ainda - toda uma discussão exegética para se saber qual o papel desempenhado pelo continente conquistado e colonizado ao tempo do expansionismo marítimo europeu. Se, por um lado, a acumulação primitiva do capital se deu de modo a operar uma ruptura com a feudalidade e suas características laborais peculiares, tais quais as relações de servidão, pertença à terra e integração do trabalhador com seus meios de produção; por outro lado, ela só se tornou possível com as riquezas metálicas e mercantis propiciadas pela exploração do chamado novo mundo. A colonização das Américas é o outro lado da moeda do nascedouro do modo de produção capitalista. Outro lado da moeda, outro lado da moenda... de gente.

É o que, então, se coloca como grande problema para interpretação de nossa realidade: diante da impossibilidade de se aceitar o caráter feudal ou semi-feudal de nosso continente (ainda que muitos de nossos bons intérpretes, e não só os maus, tenham lançado mão desta concepção eurocêntrica), como caracterizar o nosso modo de produção a partir da questão agrária que sempre nos acompanhou e continua a nos acompanhar?

A teoria da dependência, seguindo uma série de reflexões críticas e marxistas do continente feitas até então, preferiram designar o nosso modo de produção como sendo capitalista, sim. Mas com a peculiaridade do colonialismo. Um capitalismo colonial, portanto. O que deveria ser o óbvio, em verdade, foi o ponto de chegada de todo um embate que ficaria sendo conhecido como o “estéril debate sobre o caráter feudal da América Latina”.

Decorrência das interpretações “feudalizantes” da formação histórica da América Latina foram, dentre outras, a compreensão de que para ultrapassar a situação do subdesenvolvimento seria necessário conspirar para o avanço das forças produtivas da burguesia nacional, frente ao semi-feudalismo imperante; a visualização de sociedades duais no continente, em que, em uma banda, estariam regiões modernas e, em outra, regiões atrasadas e primitivas que deveriam ser absorvidas pelas modernas; e, ainda, a conjuração do caráter revolucionário do campesinato, em seus setores populares.

O problema do campesinato é central para se compreender a América Latina, em especial sua força revolucionária. E mais: não sendo, as nossas, sociedades duais, trabalhadores do campo e da cidade têm uma relação inextricável. Sem desprezar, logicamente, suas diferenças, é preciso notar que todas as lutas do continente não puderam passar ao largo das guerras camponesas, inseridas ululantemente na conflito de classes que move nossas sociedades periféricas. Se, entre os soviéticos, os termos da discussão de davam em volta de se saber se os camponeses formavam parte de um modo de produção próprio (Chaianov) ou se eram uma transição para o capitalismo a partir dos resquícios do modo de produção feudal (Lênin), entre nós este debate deve se renovar a um ponto tal que possamos estabelecer as relações entre o camponês e a organização do trabalho, especialmente se aqui não grassam as massas campesinas de proprietários de terra e meios de produção em geral. Afinal de contas, cabe o questonamento (como tentativa de esclarecimento a partir do debate empreendido em torno do texto postado há duas semanas, “A ‘classe-que-vive-do-trabalho’: e o que a AJP tem a ver com isso?”, por Diego Augusto Diehl, aqui no blogue): qual o conceito de campesinato que devemos utilizar e o que nos deve fazer concluir que não se tratam de setores das classes populares que integram a “classe-que-vive-do-trabalho”?

5 comentários:

  1. Camarada Prestes,

    Não sei se teve oportunidade de ler o artigo sobre o marxismo de Mariátegui, na página do pêssol, segue o "vínculo":
    http://socialismo.org.br/portal/filosofia/157-livro/1878-nem-decalque-nem-copia-o-marxismo-romantico-de-jose-carlos-mariategui

    Abraço,
    Marcelo

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  2. Caro Marcelo,

    Mariátegui é fundamental para este debate. E Michel Lovi é um grande conhecedor de sua obra - por isso, agradeço a indicação do texto.

    A única coisa que acrescentaria é que, apesar de Mariátegui propor a revolução socialista como saída para o Peru e para o continente, ele manteve a utilização da idéia da "feudalidade" ou semifeudalismo para a realidade colonial (de antes e depois do século XIX) latino-americana. Quiçá, apenas uma controvérsia terminológica, já que propunha concepções que levaram ao debate criativo da teoria da dependência, décadas após.

    Um grande abraço

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  3. Acredito que um bom aporte a esse debate, ainda que não seja latinoamericano, é o texto sobre a questão agrária de Samir Amin. Analisando a situação concreta do campesinato em face do avanço da economia de mercado e do modo de produção capitalista na agricultura, ele chega à conclusão de que nem todo pequeno proprietário de terra pode ser considerado camponês, pois há casos em que o domínio sobre este é tão grande, que o que há de fato é uma proletarização sem a apropriação da terra pelo capitalista. Me parece que é esse o caso do projeto de "agricultura familiar" que o Estado e a Vale estão a implantar na produção de biodiesel no nordeste paraense, só para dar um exemplo.

    Então me parece que a definição de quem faz parte da "classe-que-vive-do-trabalho" (cujo papel é estratégico, mas que não deve ser superdimensionado) não se dá pelo aspecto puramente "jurídico" da propriedade dos meios de produção, mas do controle real desses meios. O campesinato, então, seria aquela parcela de trabalhadores do campo que têm o controle real de seu processo de produção e de troca, baseado na produção de valores de uso (o chamado circuito M-D-M), e não em valores de troca (circuito D-M-D').

    Há ainda o aspecto da consciência de classe que é essencial, pois assim como um proletário pode pensar com a cabeça de um pequeno-burguês, muitos proletários/semiproletários rurais têm ainda uma visão de mundo autenticamente camponesa. E isso não é um puro produto da "alienação", mas faz parte da própria dinâmica social, que segue em desenvolvimento!

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  4. Diego,

    A lembrança de Samir Amin vem muitíssimo a calhar. Autor fundamental para as atuais discussões de descolonização do poder e do saber (tendo o escrito o livro já clássico "O eurocentrismo: crítica de uma ideologia"), empreende tal debate pela via socialista.

    Só para facilitar o acesso ao texto citado, indico uma tradução: "Pobreza mundial, pauperização e acumulação do capital" - http://resistir.info/samir/pobreza_mundial.html

    Além de este, sugiro outro, do descolonialista e geógrafo brasileiro Carlos Porto-Gonçalves: http://alainet.org/active/9564&lang=es

    Creio que os termos do debate que você encaminou são muito bons: o problema não é jurídico, mas produtivo. Trata-se do real controle dos meios de produção.

    Agora, isto continua a causar um desconforto teórico: camponeses seriam, se a analogia fosse possível, as "classes médias e altas" do campo? Se sim, afora o essencialíssimo aspecto da consciência de classe, o campesinato não seguiria sequer a conceituação clássica européia, pois se converteria nos médios e grandes proprietários de terras.

    Em todos os casos, penso seja interssante a conclusão de Porto-Gonçalves:

    "a questão agrária se urbaniza e faz sentido uma internacional camponesa, como a Via Campesina, da qual o MST é um dos principais protagonistas. Há, assim, um linha que aproxima tanto a Monsanto ao McDonald como, contraditoriamente, os agricultores franceses ao MST, aos camponeses e indígenas hondurenhos, aos zapatistas, aos cocaleros, aos mapuche, aos indigenatos equatorianos, mexicanos, aos piqueteros, aos sem-tetos..."

    Boa discussão, Diego. Abraços!

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  5. Têm uma obra interessante do José de Souza Martins, tratando especificamente do Brasil: " Os Camponeses e a política no Brasil". Nele, ele tenta desenvolver a problemática do campesinato a partir de um referêncial amplo, abrangendo tanto os pequenos proprietários, quanto posseiros, foreiros e arrendatários. Ele parte do princípio que estes podem ser interpretados como uma classe do capitalismo, não tendente ao desaparecimento, mas, ao contrário, formado a partir dela, pela a lógica produtiva que esta impõe no campo. Isso se dá, dentre outros fatores, por que o agronegócio, voltado para as monoculturas, cria a necessidade de produção de alimentos básicos, os quais não são de interesse a este ramo pela pouca rentalibilidade em relação aos gêneros mais cotados, e ainda, os ciclos da renda capitalista da terra, em que o latifundiário-capitalísta lhe extrai o valor através da sua negociação, seja arrendando ou vendendo terras.
    Para o autor, embora este conceito tenha sido "importado" pelos partidos e intelectuais para a nossa realidade, este funciona aqui de maneira diversa.

    Cabe lembrar ainda, que não se dá pra ver essa questão do campesinato como algo absoluto. É comum haver um ciclo onde o camponês revesa o seu tempo entre trabalho na sua propria terra e períodos em que trabalha assalariado. A verdade, é que este camponês está sempre em trânsito.

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