domingo, 27 de fevereiro de 2011

Rui Mauro Maríni, a teoria marxista da dependência e a função pedagógica do direito

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Em tempos atuais, muito se ouve falar, e até mesmo se diz, acerca de uma teoria da dependência, desenvolvida na América Latina, justamente nos tempos das trevas ditatoriais por que passou o continente. Tristemente, porém, pouca apropriação há do debate em sua totalidade, o que se verifica pela canonização do texto de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faleto, "Dependência e desenvolvimento na América Latina".

O texto de Cardoso e Faleto tem sua importância, mas como um dos possíveis aportes sobre o problema. Na tradição teórica brasileira, outra visão se concretizaria e traria interpretações originalíssimas a partir de outras bases de análise. De fato, a teoria marxista da dependência não pode se confundir com os teóricos da dependência em geral. E, neste ponto, convém resgatar dos mais importantes nomes da análise marxista sobre a dependência, o do brasileiro Rui Mauro Maríni.
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Maríni é daqueles intelectuais que, desgraçadamente, encontra-se exilado, até hoje, das principais discussões em torno da interpretação do Brasil e da América Latina, apesar de ter retornado a sua terra natal após o processo de "anistia" (vindo a falecer no Brasil em 1997). Sua história vai da graduação em direito (que não concluiu) e da graduação em administração até a atividade docente na UnB, ao mesmo tempo em que, por decorrência da intensa militância estudantil, funda a POLOP - Política Operária. A partir do grupo da POLOP é que se originariam vários importantes nomes da teoria marxista da dependência brasileira, como Teotônio dos Santos e Vânia Bambirra, dentre outros. Além de a POLOP, de crucial importância foi o grupo de estudos sobre "O capital", na Universidade de Brasília. Toda esta militância, na prática e na teoria, renderia a Maríni a prisão e a tortura em 1965, já que a POLOP tentaria efetuar a resistência armada, por meio de uma guerrilha rural, e seria descoberta pelos órgãos de inteligência e segurança nacional da ditadura de 1964. Seu exílio se passaria quase todo no México, onde viria a ser professor da UNAM - Universidade Nacional Autônoma do México, à exceção do período do governo de Salvador Alende em que Maríni viveria no Chile. Diga-se, desde logo, que quase toda a obra de Rui Mauro Maríni está disponível em uma página da UNAM destinada a seus escritos, em espanhol.

Sua produção teórica se articula ao debate do dependentismo de autores da periferia do capitalismo, em especial André Gúnder Franque e Aníbal Quijano, dentre outros, além de os já citados Teotônio e Vânia. E neste contexto é que formula vários conceitos bastante fecundos para a análise da realidade do subdesenvolvimento capitalista. Assim é que surgem as teorizações sobre a dialética da dependência, a superexploração do trabalho, o subimperialismo e a noção de classe operária.

Ao contrário das vertentes veberianas, a teoria da dependência de um Maríni centrava-se no motor histórico da luta de classes e não acreditava em um desenvolvimento possível e com bem-estar a partir dos avanços tecnológicos do capitalismo, pois se fazia necessária uma ruptura cabal com este modo de produção, o que se anunciava pela necessidade da revolução socialista no continente. Em boa medida, esta é a briga que envolve os teóricos da dependência, em que, de um lado, estavam os marxistas como Maríni e Tetônio dos Santos e, de outro, os antimarxistas como FHC e José Serra (ver o texto "As razões do neodesenvolvimentismo", de Maríni, polemizando abertamente com Cardoso e Serra).

Sendo suas grandes contribuições para a teoria da dependência a continuação da interpretação do materialismo histórico para a América Latina, a partir não só de Marx mas de todo o debate aberto após as teses sobre o imperialismo, de Lênin e Rosa Luxemburgo, ou das concepções de desenvolvimento e subdesenvolvimento em Trótsqui, Paul Baran e Paul Sweezy, ademais de as críticas históricas ao desenvolvimentismo da CEPAL e ao etapismo dos partidos comunistas influenciados pela III Internacional; sendo assim, caberia empreender alguma aproximação de seu pensamento com o que nos toca a todos neste blogue: a contribuição da teoria crítica para o direito em sua inter (ou, em alguns momentos, até trans) disciplinaridade.

Sem dúvida, os temas da superexploração do trabalho e do subimperialismo rendem muitas discussões e polêmicas até hoje (onde se conserva a discussão sobre o pensamento de Maríni) e, por isso mesmo, colocam pontos de apoio importantes para se pensar a dependência dos países subdesenvolvidos sob o signo do capital.

Para Maríni, "o fundamento da dependência é a superexploração do trabalho" e esta, em último caso, se dá a partir do aprofundamento de relações sociais que levem o trabalho subordinado das periferias a serem regidos segundo a lei da extração da mais-valia em seu sentido absoluto, ou seja, em conformidade com a contra-mão da história de avanços e conquistas das classes trabalhadoras por maiores salários e menores cargas horárias de trabalho. No centro do capitalismo, a mais-valia relativa poderia, assim, grassar sem problemas. Na dialética da dependância, portanto, a submissão das periferias ao(s) centro(s) se faz pela aliança das burguesias nacionais com as forças imperialistas e, desta forma, o trabalhador resta superexplorado (ver livro "Dialética da dependência").

Mais do que isso, porém, a contribuição de Maríni também se constata no plano da complexificação das relações de poder no âmbito internacional. Daí a forte crítica ao papel do Brasil neste campo, cuja figura resplandesceria com seu subimperialismo. Eis que "nações de composição orgânica intermediária" passam também a se beneficiar da concentração e centralização tendencial do capital, de acordo com a nova divisão internacional do trabalho e com as características básicas das economias nacionais dependentes, a destacar-se a superexploração do capital, ainda que não só (ver o prefácio a "Subdesenvolvimento e revolução").

Pois bem, para além de tais desenvolvimentos teóricos, Maríni também indicou o alargamento do conceito de classe operária a partir das realidades dependentes, a fim de oxigenar esta reflexão e estabelecer novas mediações para a luta de classes (como já discutido aqui no blogue, em: "Os sujeitos históricos da transformação: organização político-jurídica e antropologia"; de Maríni, ver: "O conceito de trabalho produtivo").

Por fim, cabe aduzir estas construções teóricas ao âmbito jurídico-político. Ao tempo das discussões sobre a nova constituição brasileira, Maríni escreveu um texto colocando seu ponto de vista sobre o assunto, embotado que estava, como todos (ou quase todos!) os intelectuais e políticos brasileiros à época, pela necessidade da nova constituição. Como se sabe, uma constituição é sempre política mas nem por isso determina o ser de uma sociedade. Por isso é que Maríni indicava a necessidade dela mas não deixava de fazer suas críticas e propostas: continuava a deblaterar contra o estatismo político (ainda que isto não significasse anti-estatismo econômico), com o intuito de que as organizações populares, do campo e da cidade, ganhassem autonomia para poderem realizar um grande passo: "o que se impõe não é suprimir a regulação estatal, mas submetê-la mais diretamente à influência das massas". Talvez seja justamente neste sentido que se justifique a "função pedagógica do direito" atribuída por Maríni no momento preparatório da assembléia constituinte. Para seu tempo, uma necessidade; e, para o nosso, um uso tático, ainda que isto não possa corroborar uma tese universalista para a existência do direito. Com esta ressalva, terminemos com as palavras de nosso teórico marxista da dependência:

"brotando da vida real, do húmus fecundo da economia e da luta de classes, o direito é algo mais que o reconhecimento dos fatos; ele é também a previsão ou o desejo de que estes evoluam neste ou naquele sentido e contém, por isto mesmo, em semente, a visão do que pode ser o desenvolvimento futuro da sociedade. Neste sentido, o direito tem um caráter educativo, que, mais que qualquer outra lei, a Constituição deve captar e expressar" (do artigo "Possibilidades e limites da assembléia constituinte", não disponível na internet).
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4 comentários:

  1. Grande texto, companheiro Pazello. Uma leitura instigante para reforçar os caminhos da assessoria popular. Como Marini, devemos construir alternativas reais que "deblaterem" contra o comodismo das "conquistas" do campo formal da Constituição.
    Abraços,
    Carol

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  2. Bueno, bom saber desta afirmação do Marini.
    No momento da constituinte de 1987 muitos grupos políticos e intelectuais apostaram na alternativa de mobilizar os movimentos para a construção de uma outra sociedade a partir do direito, também.
    Por mais que por vezes carreguemos uma crítica contundente ao direito e a sua possibilidade de transformação, precisamos reconhecer sua função pedagógica naquele momento histórico.
    Só fico pensando nos episódios funestos que envolveram as discussões da Assembléia Nacional Constituinte. Como no subgrupo de Reforma Agrária, em que o deputado federal Benedito Costa sumiu no momento principal da votação final. Além também da violência toda que envolveu os muitos meses de debates. Que terminou com a vitória da União Democrática Ruralista - UDR.
    Estou citando este exemplo para que possamos avaliar juntos: perdemos porque não fomos eficientes ou por que acreditamos na função pedagógica do direito?

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  3. Valeu pelos comentários Carol. Maríni pode nos inspirar bastante para construir das ruínas uma teoria crítica do direito renovada.

    E, Luiz, eu concordo com você: o direito assumiu, historicamente por via da constituição, uma aposta, não desprezível aprioristicamente. No entanto, não creio que "perdemos" por um dos dois motivos da sua pergunta (ineficiência ou crença na função pedagógica do direito), mas sim porque as massas não se "presentificaram" (para lembrar o Baldez), só foram representadas (e olhe lá!).

    Abraços

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  4. De fato. A mobilização e "presentificação" das massas é amplamente coibida pelos regimes ditos "democráticos" justamente pelo estabelecimento do representativismo, o qual assegura o papel dominante das oligarquias estabelecidas. Trata-se de um dos artifícios que melhor demonstra a ideologia do "dividir para conquistar". O povo, retirado de seu papel direto, interventivo e fiscalizador, passa a ter o direito e o dever de assistir aos seus "representantes" tomarem as rédeas da nação. No tocante à Constituinte, pode-se atribuir falha aos grupos mais mobilizados, como a iníqüa e inoperante OAB e outros mais progressistas, mas jamais ao povo como um todo. Este, mesmo que não alijado da possibilidade de participar com propostas à Constituinte de 88, teve, como é de praxe, o "filtro legislativo" dos representantes, contra o qual nada podia. Este filtro tornou nossa constituição um monstro, um frankenstein de artigos díspares que se anulam, pois embora exista progresso principiológico no texto como um todo, em partes específicas se abrem contradições que favorecem a interpretação mais reacionária. Exemplos não faltam: da função social da terra maculada pelo requisito da produtividade aos juros bancários e aos muitos outros artigos que se mumificam no argumento da necessidade de legislação ordinária. Pudesse a constituição trazer espaço para a descentralização do poder, com autonomia aos Estados, municípios, organizações de classe e movimentos populares, aí sim efetivaria uma "aposta" rumo à democracia.

    De resto, excelente retrospectiva da vida&obra marinianas.

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