Na semana que se passou aconteceu a 2ª Semana de Gênero e Direito na Universidade de Brasilia , organizada pelxs estudantes do Curso de Direito, predominantemente pelas mulheres e meninas desse Curso, mas com o trabalho e apoio de outros personagens ligadxs a vários outros grupos, cabendo aqui a menção expressa ao Projeto Promotoras Legais Populares, que, muito felizmente, envolve olhares outros fora do Direito, e de mais um povo bonito que integrou a Marcha das Vadias que aconteceu em Brasilia em 18 de junho.
O evento durou cinco dias, mas só pude estar presente em uma das mesas "Estupro não tem graça: Repensando o Simbolismo do Humor" por estar trilhando pelo Brasil oscilando entre tarefas de trabalho e militância. O Betinho Góes vai ficar devendo um post sobre as outras mesas, principalmente a que discutiu os direitos da comunidade LGBTTT."Estupro não tem graça: Repensando o Simbolismo do Humor", foi um espaço pensado (também, mas não somente), para manifestar repúdio ao dito humorista Rafael Bastos (recuso-me a chamá-lo pelo apelido) do CQC pela piada feita e refeita em relação ao estupro: "Toda mulher que eu vejo na rua reclamando que foi estuprada é feia pra caralho." "Tá reclamando do quê? Deveria dar graças a Deus. Isso pra você não foi um crime, e sim uma oportunidade."
Estar presente e assistir a esta mesa não foi uma escolha somente pelas possibilidades de agenda em uma semana tão atribulada... A discussão que envolve o uso da piada como forma de reforço a preconceitos e de legitimação da violência é tema que me desperta curiosidade e angústia desde que eu comecei a entender as diferenças sociais entre os gêneros e a protestar contra elas e, principalmente a perceber como as piadas eram quase sempre utilizadas como intimidação e um calar do protesto. Custou um certo tempo desde a primeira insurgência dentro de casa contra a imposição de papéis "femininos" pelos meus irmãos a mim até o momento em que me identifiquei publicamente como feminista principalmente porque havia introjetado as pesadas relações e pechas colocadas às mulheres que denunciam as relações de poder baseadas no gênero. Ora, a Zombaria é Utilizada como Arma Anti-Feminista há séculos, vide estudo de Raquel Soihet e não deixa de ser curioso como se assemelham as relações entre as feministas como feias, por exemplo, com a "piada" feita pelo Rafael Bastos em relação às mulheres que se queixam por serem vitimas em potencial de estupro somente pelo sexo que tem.
A mesa contou com a presença da ilustríssima Lola Aronovich, a mesma do blog "Escreva Lola Escreva", além das Profas Bistra e Carolina e do Prof. Luis Felipe (vide cartaz com as apresentações de todxs) que reforçaram a idéia de que piadas não são somente piadas, mas podem estar atuando para reforçar situações de violência historicamente e socialmente construídas, se configurando, elas próprias, também, como forma de violência.
Mas a mesa contou com uma fala especial. Uma fala que traz, em seu âmago, a meu ver, a epistemologia feminista, pela voz da estudante Luna Borges. Luna não só foi a voz que lançou pontuações construídas a várias mãos (discutiu-se e erigiu-se coletivamente sua fala), como assumiu, sem titubear, seu local de discurso e a sua experiência enquanto mulher dentro do Curso de Direito e enquanto Promotora Legal Popular.
Isso desmerece ou deslegitima sua fala? Depende. Segundo o paradigma moderno que separa razão e emoção, que desconsidera o lugar da experiência na construção do conhecimento e que por séculos mesmo vislumbrou as mulheres e sua "natureza" feminina como avessas à racionalidade, sim. Mas de acordo com outra forma de pensar, trazida a baila principalmente a partir da crítica feminista de que não existe elaboração de pensamento objetiva a ponto de estar desconectada do trinônio raça-classe-gênero e de que uma fala pretensamente universal, revela, no fundo, a visão de mundo de uma raça branca, uma classe proprietária e um sexo masculino, sem perder de vista também a orientação sexual heterossexual, não.
Segue a fala da Luna, voz em que nos reconhecemos, nos enxergamos e que aplaudimos de pé. A Semana, a fala construída e os aplausos como estratégia feminista de protesto e de firmação de uma linha forte separando o sexo e o afeto do estupro e violência.
ou estudante do 6 semestre de graduação em Direito, integrante do projeto conhecido como Promotoras Legais Populares, faço parte do CADir e do PET, e sou promotora legal popular formada. Apresento-me pra dizer que a minha fala vem um contexto especifico, que é o de ser graduanda, extensionista, feminista. Este é, portanto, um texto de construção coletiva, posto que formado pelas impressões, criticas e opiniões com os quais entro em contato cotidianamente
Esta II Semana Gênero e Direito, em especial este painel, que visa discutir opressões de gênero, que ocorrem nos espaços públicos, inclusive por meio de “piadas” e “brincadeiras”, problematiza inquietações das próprias estudantes da Universidade de Brasília. Por ser deste lugar de que parte a iniciativa, não seria também de se estranhar que o projeto de extensão Promotoras Legais Populares tenha surgido nesta Faculdade advindo dessa mesma inquietação, tomada de forma mais ampla, por abordar o tema da violência de gênero. Em 2004, um grupo formado por alunas e alunos achava extremamente curioso que as chamadas “questões de gênero” – tão basilares para explicar comportamentos opressores na sociedade, fossem esquecidas pelo Direito. Poder-se-ia dizer até revoltante o fato de os temas em Direito, que, teoricamente, deveriam se preocupar com questões de igualdade, respeito, autonomia e cidadania, simplesmente ignorassem (e ,pior, por vezes, reproduzissem) uma construção de poder tão hierarquizada e tão nefasta como aquela que se materializa em situações de dominação masculina.
O projeto, por ser de extensão universitária, busca até hoje um diálogo com a sociedade, com mulheres de todo o Distrito Federal, especialmente no tocante a questões como violência contra a mulher, cidadania, políticas públicas. Pois acreditamos ser possível contrastar a realidade de diversas mulheres com as situações descritas nos autos, e com as pretensas verdades afirmadas pelo Direito do Trabalho, de Família, Direito Penal, e não só. A partir da interação com esse mundo de fora , percebe-se que a questão é mais séria, pois a própria Epistemologia Jurídica se vê criticada por uma perspectiva feminista, que revela questões de gênero como algo a ser pensado pelo próprio conhecimento em Direito.
Aqui, faço um breve parêntesis para dizer o que entendemos sobre a palavra gênero, que dá título a nosso evento. Para nós, refere-se a uma categoria extremamente explícita e, ao mesmo tempo, aberta para possibilidades – como toda referência à gramática deve ser. Mais do que uma descrição objetiva de traços inerentes, é um meio de classificar fenômenos, um sistema de distinções socialmente acordado. A teórica e militante feminista Joan Scott explica que é uma maneira de afirmar construções exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens e das mulheres. Seria, portanto, uma categoria útil porque oferece meios de distinguir a prática sexual desses corpos, dos papéis atribuídos às mulheres e aos homens.
Como estudante, pude perceber que o gênero, transversalizando as discussões jurídicas no meio acadêmico, tem ganhado alguma visibilidade. Porém, ainda há muito para ser conquistado. Em alguns grupos de estudo, pesquisa e extensão, é possível hoje vislumbrar um conhecimento em Direito que ao menos procure identificar e explicar as continuidades e descontinuidades em relação aos direitos das mulheres e dos homens, com o intuito de tentar eliminar desigualdades de gênero persistentes. Mas, para que isso ocorra, é preciso valorizar experiências sociais radicalmente diferentes dos exemplos pré-fabricados de manuais, das aulas expositivas e herméticas que configuram a maioria das aulas dos cursos de Direito.
É fato que conquistamos alguns espaços de fala, de debate, como seminários, e até uma disciplina sobre o tema..Entretanto, são iniciativas extremamente localizadas e, curiosamente, assim como as atividades da Extensão, partem muito mais do corpo discente que da própria Faculdade. Entendemos que a educação, em especial a educação jurídica, possui um papel precípuo no combate a qualquer forma de inferiorização da mulher.
Então, diante disso, proponho a seguinte reflexão: O que a Universidade tem a ver com isso tudo? Por que estamos hoje aqui neste painel discutindo o que estamos discutindo? Arrisco dizer que a Universidade, como espaço público de construção de conhecimento não pode se esquivar das latentes e explícitas opressões de gênero, raça, classe. Se o papel da Universidade é criticar leis, interpretações e decisões judiciais que possam negar a autonomia de mulheres que se vêem sujeitos de suas próprias histórias, como poderíamos ser passivas em relação a discursos que, por exemplo, culpam estas mulheres de toda desgraça humana? Que atribuem a elas a causa das ações ingênuas, tolas e emocionais de alguns homens? Dizer que “(...) O mundo é masculino!” pode parece uma interpretação coerente para um Direito medieval, mas essas exatas palavras foram proferidas em 2007 pelo juiz Edilson Rodrigues, da 1ª Vara Criminal e da Infância e Juventude de Sete Lagoas – MG.
Quantas mulheres já foram vítimas de violência sexual, moral, patrimonial e posteriormente culpadas pela existência dessa violência?E não só em discursos judiciais. Quantas mulheres aqui deste auditório já se sentiram constrangidas em sala de aula por serem tratadas com condescendências do tipo “meu amor”, “minha querida”, “minha linda”?
Será preciso desenvolver algum tipo de habilidade para entender que esse posicionamento rechaça ainda mais as mulheres de espaços públicos? Que constrói discursos pretensiosamente neutros, inofensivos, mas que se mostram legitimadores de práticas degradantes para a dignidade de mulheres? Este auditório deveria contar com a presença de reitor, decanos, decanas e a maioria de professores e professoras daqui, pois entendemos que este é um momento ótimo para que a Universidade pense em como formar um(a) profissional e cidadão, cidadã? Como construir um conhecimento mínimo que permita identificar a exclusão de tantas subjetividades, de tantos direitos?
Certamente, não será fazendo piadas sobre crime de estupro em aulas de Direito Penal, em uma Faculdade de Direito. Certamente, não seria explicando que cogitar fazer algo não é considerado crime pelo Código Penal, por meio de uma situação do tipo “oras quando você vê uma mulher gostosa passando, mas não faz nada!...Cogitar não é crime”. A Lola, em mais um de seus posts, caracteriza a piada como uma forma de discurso. É verdade. Por isso, piadas e exemplos machistas certamente não integram o tipo de discurso que desejamos em nossa Universidade, neste espaço público que se pretende democrático.
Não é que seja preciso adotar escolhas morais e éticas intemporais. Nem defender o politicamente correto, se é que isso existe. Nesse ponto, a própria teoria política feminista contribui para nos lembrar que não há essências ou verdades em si. Dessa forma, afirmar que estupro é algo sério não significa uma tentativa de moralizar a sociedade, de criar um rol de questões permitidas para serem temas de piadas, enquanto outras são proibidas.
Entender o estupro como coisa séria significa dizer que é preciso analisar o caso concreto, e compreender o sujeito em sua individualidade, cada representação desse sujeito na sociedade, na mídia, e – por que não? – em piadas também. Dizer que uma mulher deve ficar feliz por ser estuprada, por ser a única forma de ela se relacionar sexualmente (aliás, relacionar estupro a sexo e não a poder) representa algo engraçado para quem? O objeto da piada, a vítima de estupro está representada na sociedade como o quê?
O que fazemos ao criticar o uso do humor dessa forma é afirmar que esse comportamento não deixa ver questões estruturantes de desigualdade.
Não deixa ver uma questão de autonomia dos corpos das mulheres, que devem ser respeitadas ao dispor de sua sexualidade como quiserem. Não deixa ver que a mídia muitas vezes utiliza imagens de seus corpos tornando-as meros objetos. Ou seja, é uma visão deturpada, que não consegue ver mulheres como cidadãs em busca de direitos e do reconhecimento destes.
E a cidadania de mulheres é negada por vários motivos. Por exemplo, porque não há transporte público eficiente no DF – o que obriga muitas mulheres a andarem longas distâncias no deserto que pode ser a UnB, Brasília e cidades do entorno, infelizmente, arriscando-se a sofrer algum tipo de violência. Também porque não há seguranças mulheres em número suficiente nos campi. Porque, de acordo com dados da Fundação Perseu Abramo, no Brasil, 10 mulheres são estupradas por dia, sem contar cifras ocultas. No DF, 283 foram estupradas nos primeiros 5 meses de 2011.
Não deixar ver questões sérias como estas, contribui para que futuros profissionais,não só do direito, habituem-se a reproduzir padrões institucionalizados de valoração cultural, sem questionar, naturalizando princípios de visão que estão ajustados às divisões já existentes na sociedade, divisões como razão – emoção; ativo – passivo; forte-fraca; rico-pobre; violento- violentada.
É preciso assumir que há uma forte vinculação entre o mundo social, que inclui os corpos, as ações dos indivíduos, etc., e as possibilidades de conhecimento desse mundo. Perceber uma realidade delineada por opressões de gênero, ainda que nos contextos mais sutis e em lugares inofensivos, como na cultura, no riso, implica em senti. Ter sensibilidade para reconhecer e dialogar. Entendo que a extensão universitária pode proporcionar o exercício dessa habilidade, por nos permitir uma abertura para o diferente, para o novo, para o que ainda não foi pensado. Uma nova educação jurídica, que incorpore essa extensão em disciplinas, pode utilizar categorias como a de gênero para transformar o ambiente universitário, as pesquisas aqui produzidas e, a própria realidade. Não só a extensão universitária, mas também a própria sala de aula pode ser reinventada e transformada de forma a tornar este também um espaço de emancipação.
Não é, de fato, o caminho mais fácil, esse o da sensibilidade. É apenas um dos caminhos... Assim como aquele que opta pelo lúdico, pelo riso como arma política, que pode ser extremamente útil para afirmação de cidadania.Exemplo disso foi a Marcha das Vadias, que ocorreu em Brasília no dia 18 de junho. Essa marcha mostra que é possível utilizar-se do humor para negar opressão, desrespeito. Mas piadas, ainda que ridicularizem o opressor ou a situação de opressão não mudam o mundo por si só. Tomar posições políticas, sim.
E a incorporação política particular de um discurso de alteridade, igualdade de gênero só se dá na prática, na vontade de mudança mesmo. Por isso, não podemos prescindir de nenhum elemento: nem da extensão, nem do Direito, nem do riso, e por isso que estamos aqui hoje. Sem nos despirmos de nossas singularidades, sentimentos, histórias, ou vontades, podemos nos abrir ao debate, para construir um discurso explícito, crítico, claro; mas sempre aberto a possibilidades.
Nós ao final da mesa.
Felizes e orgulhosas por sermos mulheres, estudantes, feministas e livres e estarmos ao lado de companheiros que respeitam e admiram isso.
Parabéns pela postagem, Diana!
ResponderExcluirMe comprometo em também abordar o tema aqui até o final do mês. Não há porque ficarmos caladas...
Grande abraço!