segunda-feira, 25 de julho de 2011

Rosas vermelhas à intensidade de Lyra Filho



Humberto Góes/Betinho Góes


Fotos: Humberto Góes/Betinho Góes e Luiz Otávio Ribas


Certa vez, uma amiga dada a coisas exotéricas me disse que o número nove, com o qual sempre dizia me identificar, traz consigo o símbolo do recomeço, na dialética constante da vida.
Embora não creia nesse tipo de conhecimento, há instantes em que não posso deixar de reconhecer a coincidência de situações de plena dialética que carregam consigo o número nove. Esta que relato me parece envolta e carregada da capacidade de geração/regeneração/transformação/produção/reprodução/re-produção de tudo o que se renova renovando e renova sendo renovado.



Passava das duas da tarde de uma terça-feira, dia 12 de julho de 2011, quando encontramos a professora Eloette no centro de uma Curitiba quente para este período. Segundo a informação transmitida por Diego Diehl complementada por Luiz Otávio, era ela uma das três pessoas que, sob a sombra de um pinheiro do Paraná, fizeram repousar, há 25 anos, o mentor de tantos sonhos transformadores, e era também ela que nos levaria a seis jovens pesquisadores e pesquisadoras em Direito (Ricardo Pazello, Luiz Otávio Ribas, Diana Melo, Carolina Vestena, Tchena Mazo e eu) a realizar um reencontro com uma memória, com uma obra, cujo sentido dava àquele instante a conotação de tarefa revolucionária.




Digo revolucionária por sua capacidade de renovar a esperança, de alimentar o desejo de ver, na Filosofia do Direito, com reflexos no fazer jurídico hegemônico, ressurgirem, como irmãs siamesas, justiça social e prática jurídica cotidiana, institucionalizada ou não institucionalizada. Mas, como toda autêntica obra dessa natureza, era, ademais de um dever, uma prazerosa e sonhada atividade; era um fazer carregado de emoção e sensibilidade, através de que podíamos reafirmar o nosso compromisso com o mundo, com as transformações necessárias à dignidade e à justiça dos povos oprimidos.




Nossa missão era encontrar com Roberto Lyra Filho no lugar em que fora semeado o seu corpo para alimentar o desejo de, seguir fazendo florescer suas ideias. Nossa guia parecia conhecê-lo bem.




Divididos em dois grupos, tocou-nos a Ricardo Pazello e a mim o prazer de escutar suas estórias durante o trajeto do centro até a rua Padre João Wislinski, 755, no Bairro de Santa Cândida, em que se situava o Cemitério Paroquial de mesmo nome. De sua boca, revelavam-se, junto com a amizade e o profundo respeito, porquês, senões, ideais, amigos, buscas e traços de vida que marcaram a obra poética e filosófica lyriana. Em mim, crônicas dissolvidas em tanto carinho me provocavam lágrimas e reflexões, que, como no percurso marolar sobre a areia de uma praia serena, intercalavam-se em idas e vindas sem alarde.




De Roberto Lyra Filho, podíamos saber da amizade com José Geraldo de Sousa Júnior, com Marilena Chauí; emergiam informações sobre como surgiu a decisão de adotar um filho e de constituir o Paraná como lugar de sepultamento após a morte, ambas coincidentes com o desejo de seguir caminhos sem pré-julgamentos e sem que importasse, primeiro, quem era, qual a sua importância social e intelectual, se tinha bens.




Neste momento, fica a sensação, Roberto queria ser apenas Roberto, um homem entregue ao mundo na simples complexidade de sua existência. E, é o que parece ter-se traduzido também no rito fúnebre que se empreendeu na presença de apenas três pessoas conhecidas, entre elas a professora Eloette, ademais de dezenas de crianças de uma escola que surgiram, minutos antes do sepultamento, na missa de corpo presente. Talvez, estas fossem o símbolo do olhar curioso e igualmente despretensioso que Roberto procurava encontrar nas pessoas, segundo o que podíamos compreender das palavras que se lançavam acerca dele.




No cemitério Santa Cândida, nossa intensidade se aninha a outras intensidades na reunião do grupo para o encontro com a intensidade de Lyra Filho, aquela que nos ligava ali. Tomados todos e todas pela emoção de estar ao lado do ser que em nós se transformava no motor consciencial de nossas ações, pusemo-nos a buscar a sombra da araucária em que deveria repousar Lyra Filho. Era o jazigo 1017, conforme nos indicou em um envelope a funcionária da secretaria paroquial.


À parte exoterismos de todo gênero, não é possível deixar de observar a coincidência de, após uma noite de boas música e companhia num círculo constituído na calçada de uma rua do centro de Curitiba sob o número 359, cuja soma dá 8 (símbolo do infinito), encontrar Lyra Filho no número 1017. A soma deste perfazia um nove, o último dos números “naturais” e, por conseguinte, símbolo que, após sua pronúncia, demanda o recomeço; denota em si a dialética da iminência do fim e de um novo porvir.


Diante da intensidade de Lyra Filho, não podia ser outra a sensação de quem estuda a sua obra, senão a de uma permanência que só faz sentido à medida que se mescla ao gosto pela aventura experiencial e novidadeira da incerteza, que se faz contínua pela capacidade de se transformar e de transformar.

De igual forma, não podia ser outra a nossa homenagem senão com a intensidade das rosas vermelhas. Buscamos rosas fulgurantemente vermelhas porque brancas não seriam apropriadas. Lyra não as aceitaria, sobretudo se precisasse rega-las à poesia de um Noel Delamare ou àquela gerada na confluência de um Ricardo Pazello com um Luiz Otávio pseudonimamente representados, ou ainda, na amorosidade de uma Diana indignadamente sensível. Todos e todas estavam encharcados de palavras emanadas e refletidas desde corações cristãos, ateus, agnósticos, que se comungavam diante de um homem que se fazia presente naquele instante e se faz inspirador de tantas gentes porque, sem ter morrido, jamais morrerá.

De minha parte, depositei uma rosa vermelha à intensidade de Noel Delamare, de Roberto Delamare, Noel DelaLyra, de Roberto Lyra Filho, aqueles que inspiram minhas reflexões e minha luta. Da parte dos demais e das demais, em silêncio ou materializado em palavras, mais sentimentos, tanto quanto aqueles que se esboçam em seu epitáfio:


Roberto Lyra Filho parte e não se ausenta. Para nós que ainda vivemos, nos resta lembrar na memória os gestos, a voz, a grandeza, o amor à terra e ao povo, a confiança no futuro, a fome de justiça e de liberdade, através das lutas sociais.
Não sacrificaremos um só traço, pois em tudo nós o amamos com saudade.
O homem extraordinário também é composto de força e de fraqueza, de acertos e de equívocos, de claridade e sombras.
Hegel dizia: “a luz, afirmam, é ausência de trevas, mas, na pura luz se vê tão pouco, quanto na pura escuridão”.
Descansa em paz, ROBERTO, às sombras dos pinheirais deste teu adotivo Paraná.



Apesar de tão lindas palavras, não é o cheiro de morte que nos fica, quando nos encontramos com Lyra Filho, é o desejo de vida com dignidade esboçado na poesia de Noel Delamare que se arrasta e se arrisca na aventura do tempo:
Envio

Não me lamento, porque canto,
Faço do canto manifesto.
Sequei as águas do meu pranto
Nos bronzes fortes do protesto.

Acuso a puta sociedade,
Com seus patrões, seus preconceitos.
O teto, o pão, a liberdade
Não são favores, são direitos.

9 comentários:

  1. Olá Betinho, que beleza!
    Também não acredito em numerologia. Somente em astrologia. Nosso amigo Arruda que o diga.
    Nossa tarefa histórica agora é retomar as publicações do homem, principalmente ir atrás das inéditas, como a mitológica obra-prima, que ninguém sabe se foi ou não terminada.
    Tenho boas notícias, o Sérgio Antonio Fabris disse pra mim que pode reeditar o "Para um direito sem dogmas" e "Karl, meu amigo", basta que o herdeiro abra mão da remuneração dos direitos autorais. Vamos tentar, mais uma vez contatar o homem.
    Temos nosso plano revolucionário de divulgação, que também será colocado em prática em breve, em muitos dos recantos perdidos do gigante território Brasil.
    Abraços

    ResponderExcluir
  2. Betinho,

    Absurdamente sensível e efusivo o seu relato. Sinto-me contemplado por sua narrativa. Acrescentaria, talvez, nosso excurso: buscamos as rosas e teriam de ser vermelhas mesmas! Lira não aceitaria rosas brancas!

    Quanto a nossa tarefa histórica, Luiz, lembraria que, na SAFE, o Lirão publicou outros títulos. Além de:

    - "Para um direito sem dogmas"; e
    - "Karl, meu amigo: diálogo com Marx sobre o direito";

    também há:

    - "A filosofia jurídica nos Estados Unidos da América: revisão crítica";
    - "Direito do capital e direito do trabalho"; e
    - e um importante posfácio de 70 páginas ao livro "Desordem e processo: estudos sobre direito em homenagem a Roberto Lyra Filho".

    Abraços

    ResponderExcluir
  3. Pazello, sabe que eu até pensei em inserir isso no texto, mas achei que ficaria detalhista por demais. Padeço do detalhismo, sabe?
    Inicialmente, queria apenas falar do que se podia construir como reflexão a partir do momento vivido, mas acabei caindo no detalhismo de novo. Pelo menos, apesar da falta importante, vc e o Luiz gostaram do texto.
    Luiz, como vc falou, nossa missão revolucionária é conseguir a publicação da obra completa e buscar a grande obra da vida de Lyra Filho. Se não der pra fazer isso, seguimos divulgando o pensamento de outra maneira.
    um abraço a vcs, admirados amigos e companheiros.

    ResponderExcluir
  4. Pazello, depois de pensar um bocado de como ficaria melhor, promovi as alterações que sugeriu pra incluir a busca das rosas.
    Abraço

    ResponderExcluir
  5. Grande Betinho,

    Os detalhistas são etnógrafos, sua missão é encontrar a filosofia nos passantes, nas arestas, nas esquinas, nas paredes, nos jardinas e nos céus. Seu poético diário de campo, aqui tornado público, encontrou a merecida reflexão e uma reflexão achada na rua e nas vielas e jazigos de um campo santo.

    Parabéns, estimado amigo; e que as palavras de Hêgel, a pudicamente esconder o hálito de Marx, nos sejam leves!

    ResponderExcluir
  6. Oi pessoal,
    Linda narrativa "etnográfica" do Betinho, em relação ao encontro carnal e espiritual com Lyra Filho, ou simplesmente Roberto.
    A sensibilidade a flor da pele dos detalhes nada exacerbados me fez perceber, entre tantas sensações, a admiração que tenho por vocês e por tantos outros que, por este Brasil afora, seguem lutando junto do povo e por outra educação/prática jurídica.
    Além disso, ressalto este "lugar estranho" que é ver os ídolos como pessoas normais. Não falo da morte em si, mas dos assuntos revelados nas conversas com Eloette, sobre a adoção e o desejo de enterro no Paraná. Sem dúvida, isto nos deixa mais próximo do ser humano que foi Lyra Filho.
    Abraços saudosos diretos da (também quente, hehehe) Altamira.

    ResponderExcluir
  7. Amigos queridos, Assis e Pazello, suas palavras lindas me deixaram sem palavras...

    Por isso, sigo admirando vcs.

    ResponderExcluir
  8. Oi!

    Só para deixar registrado que estou com os olhos marejados...
    Obrigada pelo relato sensível, Betinho!

    Abraço forte em td@s!

    ResponderExcluir
  9. Boa noite,esse epitáfio,ao qual se refere o autor do texto, está realmente fixado no túmulo do professor Roberto Lyra Filho.

    ResponderExcluir