domingo, 24 de julho de 2011

Companheiros haitianos, presente!: relato de um espaço de formação sobre a América Latina

Escola Mílton Santos, no interior do Paraná

Nos dias 4, 5 e 6 de julho de 2011, há três semanas, tivemos a oportunidade de facilitar um espaço de formação da turma de haitianos que estão freqüentando o curso de agroecologia da Escola Milton Santos, em Paiçandu, na região de Maringá, no Paraná. Nesta tarefa, participamos o jornalista e companheiro Pedro Carrano e eu. O tema: "Pensadores latino-americanos".

Diante da convocação para tão importante compromisso, que acarreta forte responsabilidade junto aos haitianos que estão passando uma estada de um ano no Brasil, para retornarem a seu país e reforçarem as organizações sociais das quais participam, decidimos por, Pedro e eu, delinear a estrutura do módulo de três dias ancorados na referência prática e histórica que pôde gestar e dar a luz ao "pensamento latino-americano". Pressuposto de nossa intervenção, portanto, foi a categoria "práxis", orientação decorrente e mais que necessária para visualizar o pensar, já que este nunca está desvinculado de uma prática particular; a incoerência entre discurso e ação não significa que as idéias podem estar descoladas das matérias, mas antes que estas assumem outras formas que não as explicitamente enunciadas.

Na segunda-feira, partimos de uma análise da conjuntura atual da América Latina e pudemos ter um debate franco com os companheiros haitianos sobre o que vem se passando em nosso continente. A nos guiar, o entendimento de que três grandes pólos caracterizam a política latino-americana: os países reprodutores da face mais crua do imperialismo, alinhados sem-mais à cartilha estadunidense; os países de posição intermédia na geopolítica continental, desempenhando ambíguo papel quanto àquelas diretrizes econômicas e políticas, uma vez que caminham para uma conciliação de classes e para um desenvolvimentismo neoliberal; e os países considerados progressistas, articulados em torno da proposta da ALBA e, portanto, do bolivarianismo e do socialismo do século XXI.

Sem dúvida alguma, o maior interesse dos haitianos foi o de problematizar o papel de seu país neste contexto bem como o de, muito curiosamente, compreender as contradições que envolvem o gigante irmão Brasil e suas posições subimperialistas. Cada país da América Latina, porém, merece uma atenção toda especial e, dentro de suas contradições específicas, é preciso reavivar o incômodo de um Darci Ribeiro quando, por conta de seu exílio, construiu uma tipologia política latino-americana, em seu precioso "O dilema da América Latina: estruturas de poder e forças insurgentes", escrito na década de 1980.

Ainda neste primeiro dia, demos os primeiros passos para o estudo do pensamento crítico latino-americano. Como nosso critério foi o das experiências práticas da crítica, adotamos, para afunilar tal critério, a noção dos períodos e ciclos revolucionários que marcaram o continente.

Inegável, pois bem, foi a importância, para esta compreensão, do debate da questão colonial. Tatuados a fórceps pela história da colonização, Nossa América assistiu a mais de trezentos anos de dependência formal das metrópoles européias, dependência esta que tornou possível, para dizer o mínimo, a modernidade. O grande e pujante consenso produzido nesta reflexão é a percepção de que o colonialismo é a "face oculta" da lua chamada modernidade. A lua cheia moderna, tendo desenhado em sua face visível o conflito instaurado pelo modo de produção capitalista (o dragão-capital a lhe caracterizar), não subsistiria sem a face oculta, a qual aliás é a maior, da colonização do que hoje vemos como periferia de nosso sistema-mundo, América, África e Ásia.

A questão colonial põe em foco o fundacional século XIX latino-americano. Simón Bolívar e José Marti se destacam, como colunas libertadoras dos povos misturados e colonizados do continente. Junto a eles, a figura pioneira de Toussaint L'Ouverture, o negro haitiano que simboliza a revolução de São Domingos, em 1804. O período heróico da insurgência latino-americana, portanto, se inicia com L'Ouverture e termina com Marti, fazendo de Haiti e Cuba nações referenciais para todo nosso debate, tendo em seu entretempo o levante de amplo reflexo propiciado pela política de Bolívar.

No entanto, o problema colonial ganha mais força se compreendido no seio da totalidade que o engendra. Assim, a crítica ao colonialismo não pode se desprender da crítica ao próprio capitalismo, seja qual for seu estágio de desenvolvimento. Por isso, o pensamento crítico latino-americano precisa ser relacionado com o conjunto teórico propiciado pelo século XIX europeu. O vigor dos socialismos de toda ordem e, a nosso ver, a especial força do marxismo contribuem para a formação de um pensamento crítico latino-americano mais conseqüente. Daí que o impacto das Internacionais e dos movimentos dos trabalhadores não podem ser negligenciados, assim como não pode sê-lo, igualmente, a revolução russa de 1917. Nesse sentido, se inaugura a possibilidade de descolonizar a leitura renitente que se faz desde um marxismo louva-capital (para brincar com a expressão louva-deus), o qual resta sensivelmente debilitado se comparado às interpretações marxianas acerca da Rússia, da Irlanda, da China e da Índia (mesmo que, neste ponto, o velho Marx tenha operado uma ruptura de entendimento quanto a seus primeiros escritos).

Aberto este panorama, pudemos passar à especificidade do pensamento crítico latino-americano, a partir da chave marxista, já na terça-feira. Marxistas, marxianos e marxistólogos apareceram para aprofundar o debate da criação de uma teoria capaz de explicar e tornar possível a transformação das estruturas do continente. A inventividade, aqui, passa a ser a pedra de toque para se caracterizar a crítica latino-americana. Ocorre que, fundamentalmente, tal criatividade não é parida da pura teoria. É a vida concreta e seus desvãos que a realizam. Por isso, neste momento passamos a resgatar vários momentos da luta insurgente e revolucionária pela qual passou a América Latina.

Podemos reduzir todas as interpretações a este respeito àquela que enfatiza a existência de três grandes períodos, sendo um primeiro ressaltado por revoluções mais espontâneas e menos guiadas pelo ideário marxista mas nem por isso menos potentes; este período se vê encerrado na década de 1930 quando há a vitória do frentismo nas esquerdas, para o qual o importante era propiciar um desenvolvimento capitalista do continente, o que, por conseguinte, implicava tirar o pé do acelerador das agudizações revolucionárias; por fim, um terceiro período novamente marcado pelo ímpeto revolucionário inaugurado com a experiência cubana pós-1959.

Eis que passamos aqui a discutir o ciclo das cinco grandes experiências revolucionárias vivenciadas na América Latina. Na verdade, ciclos revolucionários recheados de contradições e polêmicas, sendo alguns deles inclusive contestados em sua natureza de revolução. Mais importante do que remontar todos os fatos históricos que os caracterizaram, cabe agora denotar que eles representam vias de acesso ao socialismo de formas distintas: Cuba (1959) e a via armada; Chile (1970-1973) e a via institucional-democrática; Nicarágua (1979-1990) e a via intermédia entre violência e democracia; Chiapas (1994) e a via de tomada do poder sem tomar o poder; e Venezuela (1999) - seguida de Bolívia (2006) e Equador (2007) - e a construção do socialismo do século XXI a partir dos limites do estado, das eleições e das constituintes.

Dos ciclos revolucionários, poderíamos extrair várias expressões do pensamento crítico que demonstrassem a potência de cada um daqueles episódios. No entanto, parecem unânimes e icônicos os nomes de José Carlos Mariátegui e Ernesto Che Guevara. Sendo Mariátegui do primeiro período revolucionário e pioneiro na leitura criativa e cruzada do marxismo para a interpretação da realidade do continente (que em sua obra está consubstanciado no Peru) e sendo Che Guevara do segundo período e distinguido por sua construção moral inovadora para o marxismo revolucionário, ambos, na complexidade de suas propostas, permitem uma interessante exemplificação do pensamento crítico latino-americano.

Para além de os ícones, porém, há conceitos-chave que atravessam a análise marxista da América Latina e se radicam em alguns de seus mais cativantes estudiosos. Isto foi o que trabalhamos na quarta-feira. Sem embargo, a revolução é um conceito motriz mas que faz a mediação entre dois pontos de uma estrada teórica: a denúncia e o anúncio. Por um lado, temos a constatação e a crítica à situação de dependência. Logo, uma teoria marxista da dependência pode contribuir e apresentar-se com o condão de mais efetivamente permitir uma compreensão da realidade latino-americana. Por outro lado, a libertação necessária que pode ser auspiciosamente buscada a partir de uma filosofia política da libertação. Assim, Rui Mauro Maríni e Enrique Dússel se apresentam como corpos teóricos que favorecem esta interpretação renovada e continuadora da tradição marxista para a América Latina.

Em resumo:

Módulo com oficinas sobre "Pensamento crítico latino-americano"

Pontos:

1. Conjuntura atual da América Latina
2. O problema colonial
3. O impacto da revolução russa na América Latina
4. Períodos e ciclos revolucionários
5. Ícones do pensamento crítico marxista latino-americano
6. Conceitos-chave para a interpretação do continente

Textos-base:

LÖWY, Michael. “Introdução: pontos de referência para uma história do marxismo na América Latina”. Em: _____ (org.). O marxismo na América Latina: uma antologia de 1909 aos dias atuais. Tradução de Cláudia Schilling e Luís Carlos Borges. 2 ed. ampl. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006, p. 9-64.

PAZELLO, Ricardo Prestes Pazello. "Alguns problemas para uma teoria política marxista em nossa América". Em: Captura críptica: direito, política, atualidade. Florianópolis: CPGD/UFSC, n. 1, vol. 2, janeiro-julho de 2009, p. 268-318.

Por fim, às haitianas e haitianos com quem pudemos compartilhar este espaço e estes dias de convívio, nosso mais forte abraço e ante a situação de espoliação aprofundada pela qual vive este povo irmão, devemos entoar: "companheiros haitianos, presente!"

Companheiros haitianos, presente!

5 comentários:

  1. Olá!Vcs sabem como adquirir livros de Roberto Lyra Filho?Pesquisando na net só encontrei "O que é Direito?", mas vi na wikipedia q existem outros títulos muito interessantes.Por favor, qualquer informação de livraria ou sebo q venda algum livro do autor enviar p o email:lenintierra@gmail.com.Desde já, OBRIGADO!Abraço a todos!

    Lênin Tierra.

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  2. Olá Pazello, que linda oficina com os haitianos!
    Sempre me impressiono com a força deste povo que já resistiu contra muitas invasões, intervenções em sua política, além de catástrofes naturais.
    Tchê, este resgate dos pensadores e lutas latino-americanas feito junto com eles é algo muito estratégico em nossos objetivos como educadores, muito bom!
    Me permito uma crítica e sugestão, que também é auto-crítica: precisamos diferenciar as lutas por conceituações que nos ajudem a pensar o devir, preencher o conteúdo desta revolução a que fazes referência. Para que um dia possamos enfrentar os céticos e cínicos com atos e ideias definitivas.
    Abraços

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  3. Valeu, Luiz!

    Aceito a crítica mesmo sem ter entendido o seu teor exato. Me explique melhor em que as vias (armada, institucional-democrática, intermédia, tomada do poder sem tomar o poder, e a construção do socialismo do século XXI a partir dos limites do estado, das eleições e das constituintes) são insuficientes. Gostaria muito de ouvi-lo/lê-lo!

    Ao Lênin Tierra,

    Infelizmente, a obra de Lira Filho está toda esgoatada, salvo o livro que você citou - "O que é direito". Afora alguns textos pequenos em obras organizadas (especialmente os 4 volumes de "O direito achado na rua"), o resto da obra é alvo do direito das sucessões... De toda forma, nas páginas que reúnem sebos no Brasil é comum encontrar um ou outro livro dele.

    Nós, do blogue, estamos engajados em tentar reverter esta situação. Esperamos convencer os envolvidos nos direitos sucessórios a avançar na popularização da obra de Lira Filho.

    Abraços

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  4. Deve ter sido uma grande experiência!

    Isso me faz pensar se já não começamos a ter condições de expandir as experiências e a rede de contatos de nosso blogue, para uma perspectiva de integração latino-americana. Será que feicebuque e tuíter não nos pode ser útil nessa tarefa, além do blogue?

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  5. Estou de acordo, Diego.

    Podemos e devemos começar a pensar, seriamente, nesta integração. Temos contatos com grupos da Argentina e da Colômbia. Há horizontes para grupos menos específicos da AJP, no México e na Venezuela.

    Acho que as redes sociais podem ser, sem dúvida, muito bem aproveitadas.

    Abraços

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