domingo, 9 de setembro de 2012

As ninguéns e a prisão por nada



                                               
Sueli, Vânia e Maria Aparecida, três mulheres pobres, pele escura ou parda, desempregadas que, a despeito de suas trajetórias individuais, protagonizam um triste episódio comum em suas vidas: o encarceramento pelo furto de bens irrelevantes ou tabelados com valores de pouca monta, ação delituosa alcançada pelo princípio da insignificância (ou bagatela), há muito consagrado pelo Direito Penal brasileiro.

Em seus históricos, casos banais da prática delinquente não violenta, pouco ou nada atentória ao patrimônio de outrem, e a restrição de suas liberdades em regimes fechados.  Maria Aparecida, por exemplo, carrega no próprio corpo a marca de seu cárcere e a prova cabal da total ineficiência do sistema prisional de nosso país, assim como a distorção de qualquer mínima concepção do que seja ressocialização de seres humanos: ela perdeu a visão do olho direito, após ‘silenciosas’ torturas e tratamentos degradantes durante sua prisão de um ano e alguns meses, por furto de um xampu e um condicionador calculados no valor de 24 reais.

Seria reconfortante, em que pese a lamentável história de vida dessas mulheres, saber que esses são casos isolados desse tipo de violência perpetrada por agentes do Estado Penal Máximo, sob cuja égide vivemos. Mas não são. Ao contrário, são a tônica de um sistema maquinalmente pensado, articulado e com funcionalidade a pleno vapor que tem por intuito a exclusão de populações pobres urbanas da participação de uma vida social ‘saudável’.

O Estado Democrático de Direito encontra um de seus maiores simulacros nos sistemas de Justiça criminais, onde, embora lance mão de técnicas hermenêuticas e dogmáticas para a defesa de indiciados/as sob a perspectiva da não restauração de estado de exceção, carrega em seu espírito o fundamento da pena (ou penitência) como prática pedagógica de ressocialização de indivíduos ‘desviantes’, bem como se utiliza de tal compreensão como verdadeira arma em uma política de trancafiamento de grupos seletos em uma sociedade desigual.

Assim, se por um lado estabelece-se que é indispensável um juízo proporcional entre a lesividade ao bem jurídico e a drasticidade da pena que se pretende aplicar ao ato antijurídico (principio da bagatela/proporcionalidade), por outro lado, e na prática, arrastam-se aos confins das cadeias (desumanas e degradantes), indivíduos que, sem uso de força, violência ou grave ameaça, se apropriam de queijinhos, xampus, leite e outros bens dessa relevância material. Se de uma banda, prevê-se o livramento para pessoas que não representam ameaça à segurança da sociedade, de outra, aprisiona-se e mantém em regime fechado mulheres cujo delito se resume a subtração de bens com valores irrisórios, que nada ofendem o patrimônio alheio e que, portanto não podem configurar risco de dano ao corpo social. Não seria exagero aproximar a atuação estatal nesses casos às execuções sumárias próprias dos regimes autoritários.

Tratar a prática do furto de bagatelas como espetáculo de uma sociedade punitiva e incriminadora é, frise-se, trazer para a tutela ineficiente e precária do sistema carcerário brasileiro seres pertencentes às classes populares que, desamparados por um Estado Social, terminam por cair nas garras de um Estado Penal, cuja função política se consubstancia, infalivelmente, na guerra e no extermínio à/da pobreza.

Entretanto, não basta ser pobre. Tem de ser mulher e, geralmente, negra ou parda. Aqui não há coincidências e sim convergências. As três personagens do filme da vida real em comento são pessoas do sexo feminino, histórica e socialmente excluídas do gozo de direitos mínimos e herdeiras de um legado patriarcal ainda vigente que determina, de forma padrão, seu lugar e conduta por serem, simplesmente, mulheres. As massas urbanas pobres e/ou faveladas têm na figura da mulher negra a sua identidade majoritária, fenômeno social explicado pelo processo de feminização da mão de obra precarizada e, por consequência, da pobreza. Dentre as principais razões para tal fenômeno, estão: a desvalorização e não remuneração do trabalho doméstico; a baixa escolaridade feminina derivada da dupla/tripla jornada de trabalho - que lhes impossibilita o acesso e permanência às/nas escolas - e o crescimento vertiginoso de famílias monoparentais de baixa renda sob a chefia de mulheres, onde grande parte delas desempenha atividades informais ou precárias, não deixando de mencionar as que se encontram desempregadas.

Diante desse quadro, como não reconhecer o estado de necessidade (em um sentido político e social) dessas mulheres que, como Sueli, cogita a possibilidade de voltar a furtar na falta de condições para comprar o leite do neto recém-nascido? Condenam-se à morte social, por meio das prisões, vidas humanas exploradas, negligenciadas e marginalizadas, em um esforço perverso de eliminação do que é feio, sujo e aviltante à ordem neoliberal. Não servem para o trabalho nem têm poder de compra, no entanto, são pessoas que tem seu desejo de posse moldado, estimulado e alimentado pela lógica do consumo. Some-se a isso, a apropriação capitalista dos valores machistas, que faz mulheres sonharem com corpos e cabelos perfeitos, tratados pelos produtos oferecidos pela indústria da estética. Furtar da drogaria um xampu ou um creme que se sabe não ter condições de adquirir torna-se um sintoma irrefutável da máquina de ilusões lubrificada a crime e castigo pelo sistema político-econômico posto.

São mulheres desejantes impedidas de desejar, fruto de sua contemporaneidade nefasta e injusta, revestida de uma pretensa moralidade imposta pela criminalização de condutas mais realizadas por componentes das classes marginalizadas, como consequência de sua condição social e humana. São alcançadas tão somente pelos braços fortes e repressores do Estado, que materializa em seu sistema criminal, integralmente, sua carga valorativa machista na medida em que pune não apenas pessoas desviantes, mas mulheres pobres, que deveriam estar zelando pela proteção e manutenção dos bons costumes da família e que, ao contrário, ousaram ocupar o espaço da rua onde coexiste a criminalidade. Seus estigmas multifacetados lhes valem uma vida pós-cárcere de miséria e condenação social perpétua, rendendo-lhes maiores obstáculos a qualquer tentativa de emancipação.

Essas são mulheres encarceradas por furto de coisa alguma, como mostra o Documentário Bagatela.

Por Juliana de Andrade.

Linque para o documentário: http://vimeo.com/46332547 

Um comentário:

  1. Revoltante estas histórias! Que bom Juliana ver esta coluna em curso, viva, vibrante, parabéns!

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