Sueli, Vânia e Maria Aparecida,
três mulheres pobres, pele escura ou parda, desempregadas que, a despeito de
suas trajetórias individuais, protagonizam um triste episódio comum em suas
vidas: o encarceramento pelo furto de bens irrelevantes ou tabelados com
valores de pouca monta, ação delituosa alcançada pelo princípio da
insignificância (ou bagatela), há muito consagrado pelo Direito Penal
brasileiro.
Em seus históricos, casos banais da prática delinquente não violenta, pouco ou nada atentória ao patrimônio de outrem, e a restrição de suas liberdades em regimes fechados. Maria Aparecida, por exemplo, carrega no próprio corpo a marca de seu cárcere e a prova cabal da total ineficiência do sistema prisional de nosso país, assim como a distorção de qualquer mínima concepção do que seja ressocialização de seres humanos: ela perdeu a visão do olho direito, após ‘silenciosas’ torturas e tratamentos degradantes durante sua prisão de um ano e alguns meses, por furto de um xampu e um condicionador calculados no valor de 24 reais.
Em seus históricos, casos banais da prática delinquente não violenta, pouco ou nada atentória ao patrimônio de outrem, e a restrição de suas liberdades em regimes fechados. Maria Aparecida, por exemplo, carrega no próprio corpo a marca de seu cárcere e a prova cabal da total ineficiência do sistema prisional de nosso país, assim como a distorção de qualquer mínima concepção do que seja ressocialização de seres humanos: ela perdeu a visão do olho direito, após ‘silenciosas’ torturas e tratamentos degradantes durante sua prisão de um ano e alguns meses, por furto de um xampu e um condicionador calculados no valor de 24 reais.
Seria reconfortante, em que pese
a lamentável história de vida dessas mulheres, saber que esses são casos
isolados desse tipo de violência perpetrada por agentes do Estado Penal Máximo,
sob cuja égide vivemos. Mas não são. Ao contrário, são a tônica de um sistema
maquinalmente pensado, articulado e com funcionalidade a pleno vapor que tem
por intuito a exclusão de populações pobres urbanas da participação de uma vida
social ‘saudável’.
O Estado Democrático de Direito
encontra um de seus maiores simulacros nos sistemas de Justiça criminais, onde,
embora lance mão de técnicas hermenêuticas e dogmáticas para a defesa de
indiciados/as sob a perspectiva da não restauração de estado de exceção,
carrega em seu espírito o fundamento da pena (ou penitência) como prática
pedagógica de ressocialização de indivíduos ‘desviantes’, bem como se utiliza
de tal compreensão como verdadeira arma em uma política de trancafiamento de grupos
seletos em uma sociedade desigual.
Assim, se por um lado estabelece-se
que é indispensável um juízo proporcional entre a lesividade ao bem jurídico e
a drasticidade da pena que se pretende aplicar ao ato antijurídico (principio
da bagatela/proporcionalidade), por outro lado, e na prática, arrastam-se aos
confins das cadeias (desumanas e degradantes), indivíduos que, sem uso de
força, violência ou grave ameaça, se apropriam de queijinhos, xampus, leite e
outros bens dessa relevância material. Se de uma banda, prevê-se o livramento
para pessoas que não representam ameaça à segurança da sociedade, de outra, aprisiona-se
e mantém em regime fechado mulheres cujo delito se resume a subtração de bens
com valores irrisórios, que nada ofendem o patrimônio alheio e que, portanto não
podem configurar risco de dano ao corpo social. Não seria exagero aproximar a
atuação estatal nesses casos às execuções sumárias próprias dos regimes
autoritários.
Tratar a prática do furto de
bagatelas como espetáculo de uma sociedade punitiva e incriminadora é,
frise-se, trazer para a tutela ineficiente e precária do sistema carcerário
brasileiro seres pertencentes às classes populares que, desamparados por um
Estado Social, terminam por cair nas garras de um Estado Penal, cuja função política
se consubstancia, infalivelmente, na guerra e no extermínio à/da pobreza.
Entretanto, não basta ser pobre.
Tem de ser mulher e, geralmente, negra ou parda. Aqui não há coincidências e
sim convergências. As três personagens do filme da vida real em comento são
pessoas do sexo feminino, histórica e socialmente excluídas do gozo de direitos
mínimos e herdeiras de um legado patriarcal ainda vigente que determina, de
forma padrão, seu lugar e conduta por serem, simplesmente, mulheres. As massas
urbanas pobres e/ou faveladas têm na figura da mulher negra a sua identidade
majoritária, fenômeno social explicado pelo processo de feminização da mão de
obra precarizada e, por consequência, da pobreza. Dentre as principais razões
para tal fenômeno, estão: a desvalorização e não remuneração do trabalho
doméstico; a baixa escolaridade feminina derivada da dupla/tripla jornada de
trabalho - que lhes impossibilita o acesso e permanência às/nas escolas - e o
crescimento vertiginoso de famílias monoparentais de baixa renda sob a chefia
de mulheres, onde grande parte delas desempenha atividades informais ou
precárias, não deixando de mencionar as que se encontram desempregadas.
Diante desse quadro, como não
reconhecer o estado de necessidade (em um sentido político e social) dessas
mulheres que, como Sueli, cogita a possibilidade de voltar a furtar na falta de
condições para comprar o leite do neto recém-nascido? Condenam-se à morte
social, por meio das prisões, vidas humanas exploradas, negligenciadas e
marginalizadas, em um esforço perverso de eliminação do que é feio, sujo e
aviltante à ordem neoliberal. Não servem para o trabalho nem têm poder de
compra, no entanto, são pessoas que tem seu desejo de posse moldado, estimulado
e alimentado pela lógica do consumo. Some-se a isso, a apropriação capitalista
dos valores machistas, que faz mulheres sonharem com corpos e cabelos
perfeitos, tratados pelos produtos oferecidos pela indústria da estética.
Furtar da drogaria um xampu ou um creme que se sabe não ter condições de
adquirir torna-se um sintoma irrefutável da máquina de ilusões lubrificada a
crime e castigo pelo sistema político-econômico posto.
São mulheres desejantes impedidas
de desejar, fruto de sua contemporaneidade nefasta e injusta, revestida de uma
pretensa moralidade imposta pela criminalização de condutas mais realizadas por
componentes das classes marginalizadas, como consequência de sua condição
social e humana. São alcançadas tão somente pelos braços fortes e repressores
do Estado, que materializa em seu sistema criminal, integralmente, sua carga valorativa
machista na medida em que pune não apenas pessoas desviantes, mas mulheres
pobres, que deveriam estar zelando pela proteção e manutenção dos bons costumes
da família e que, ao contrário, ousaram ocupar o espaço da rua onde coexiste a
criminalidade. Seus estigmas multifacetados lhes valem uma vida pós-cárcere de
miséria e condenação social perpétua, rendendo-lhes maiores obstáculos a
qualquer tentativa de emancipação.
Essas são mulheres encarceradas
por furto de coisa alguma, como mostra o Documentário Bagatela.
Por Juliana de Andrade.
Por Juliana de Andrade.
Linque para o documentário: http://vimeo.com/46332547
Revoltante estas histórias! Que bom Juliana ver esta coluna em curso, viva, vibrante, parabéns!
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