terça-feira, 7 de setembro de 2010

O bandido que sabia latim também sabia de música

Uma lista realmente imensa de nomes - todos devidamente aportuguesados - poderia ser lembrada: Carlos Marx, Vladimir Ílitch Uliánov, Franz Cafca, Fidel Castro, Sadão Hussein, Nélson Mandela... Dentre os brasileiros, destaque para Gregório de Matos, Tomás Antônio Gonzaga, José de Alencar, Fagundes Varela, Álvares de Azevedo, Castro Alves, Raimundo Correia, Raul Pompéia, Monteiro Lobato, Graça Aranha, Osvaldo de Andrade, José Lins do Rego, Guilherme de Almeida, Vinícius de Moraes, Décio Pignatári, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, Raimundo Faoro, Paulo Freire, Mílton Santos, José Celso Martinez Correa, Nélson Pereira dos Santos, Lígia Fagundes Teles e Ariano Suassuna. Num dos rincões específicos deste mesmo Brasil, o Paraná, mais alguns ilustres: Rio Apa, Dálton Trevisan e, finalmente, Paulo Leminsque.

O que têm em comum todos esses nomes em tal listagem quase patriarcalista? E por que começar pelo mundo e chegar ao pouco visitado Paraná?

Bom, isto tudo não passa de confetes, serpentinas e filigranas para divulgar a obra de um grande poeta curitibano, o qual, como todos os citados, cursou direito e, felizmente para a poesia tupiniquim, não ousou terminar seu curso de graduação. Estou a falar de Paulo Leminque (Leminski, na grafia cartorial), um clássico da chamada geração poética pós-modernista, flertando com o concretismo e com a cultura pop. Detentor de portentosos bigodes, escreveu de tudo: além de poesia, literatura infanto-juvenil; além de romance, canção popular; além de ensaios e crônicas, biografias. Foi biógrafo privilegiado e desautorizado de Cruz e Sousa, Leão Trótsqui, Matsuo Baxô e, pasmem!, Jesus Cristo de Nazaré! Talvez seja dele o romance-ensaio único pós-Guimarães Rosa que consiga se igualar a "Grande sertão" ou "Macunaíma" - refiro-me a "Catatau". Arvoroso escritor antenado com seu tempo, desceu a lenha no "pacote ortográfico" da década de 1980 (um exemplo a ser seguido hoje, com o pacote ortográfico baixado por decreto!), esmerou-se no judô a ponto de ser um faixa-preta e amou a música popular tomando partido pela "guitarra elétrica" de Caetano Veloso contra o "cavaquinho" de Chico Buarque.
É na exata esteira dessa tomada de partido que vale a pena reavivar Leminsque. Admirador do piauiense Torquato Neto, aproximou-se tresloucadamente do tropicalismo de Caetano e Gil, assim como do pós-tropicalismo dos Novos Baianos e de Itamar Assunção. Anti-poeta romântico - ou seja, mesmo que anti-poeta, ainda assim romântico, como nos haicais eróticos que trocou com sua companheira, Alice Ruiz - sua poesia serviu de música a vários malditos da música brasileira contemporânea: de Zé Miguel Visnique a Arnaldo Antunes... Esta paixão se inicia quando investe na musicalidade junto a seu irmão, Pedro Leminsque, e depois se insere no cenário musical paranaense, onde se destacavam Lápis, Paulo Vítola, Marinho Galera e o MAPA - Movimento de Atuação Paiol. Mas nada supera sua irmandade com Ivo Rodrigues e o grupo Blindagem, antiga A Chave (grupo já lembrado neste blogue por ocasião do falecimento de Ivo). Aí, incubado estava o roquenrol das araucárias, em uma mistura que hoje poderia ser chamada, muito ciosamente é claro, de emepebística.

Pois bem, este poeta-judoca, tradutor-poliglota, músico-sem-rota disse uma vez, dando título a uma novela: "minha classe gosta, logo é uma bosta". Lembremos, foi ele um poeta pop curitibano quase-causídico. Quiçá ele estivesse se referindo a cada um dos adjetivos que se lhe podem atribuir. Não se sabe, em realidade. O que se pode dizer é que o estudante de direito que consta em primeiro lugar na lista de devedores de livros junto à biblioteca da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná merece ser lembrado, em sua integralidade, como o poeta musical que fora, denunciando os homens e suas bandeiras que pensavam que podiam fazer xixi nas estrelas e que dizia:

Dois namorados olhando o céu
Chegam a mesma conclusão
Mesmo que a Terra não passe da próxima guerra
Mesmo assim valeu

Valeu encharcar esse planeta de suor
Valeu esquecer das coisas que eu sei de cor
Valeu encarar essa vida que podia ser melhor

Valeu... valeu...

Valeu, Leminsque. É o que posso dizer. E vou dizê-lo difundindo suas canções na voz dos mais renomados intérpretes, conforme compilação divulgada no blogue Poemas de Paulo Leminski. Ali, se deu o nome do disco compilado, e apto para ser baixado por qualquer navegante, de "O bandido que sabia latim", título homônimo à biografia escrita por Toninho Vaz e que merece ser lida por todo estudante de direito insurgente. Não tanto porque vai contar a experiência dele nas arcadas da Santos Andrade, mas porque vai externalizar uma experiência de canalização de rebeldia para a arte, ainda que exageradamente alcoólica e de seqüelas hepáticas inacreditáveis.


Confira:

- blogue Poemas de Paulo Leminski;

- blogue Kamiquase;

- blogue Polaco da Barreirinha.

10 comentários:

  1. Olá, Sr. Ricardo Prestes Pazello!

    Gostaria de deixar registrado meu imenso prazer em ler sua bem construída postagem. O conteúdo então, nem se fala, de primeira: literatura e música.

    Mas devo confessar minha falta: li muito pouco do Leminski, o que pretendo remediar o mais breve possível, ainda mais depois deste comentário: “Talvez seja dele o romance-ensaio único pós-Guimarães Rosa que consiga se igualar a ‘Grande sertão’ ou ‘Macunaíma’ - refiro-me a ‘Catatau’ “. Grande sertão: veredas? Uau!

    E obviamente a menção ao Torquato Neto não passou despercebida. Hehehe!

    E este tema de ex-estudantes de direito dá muito “pano pra manga”. Vamos explorá-lo?

    Grande xeru!

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  2. Olá

    Olha, não conhecer este poeta-judoca até então é algo que lastimo profundamente.

    Abaixo algumas palavras que me cortaram e feriram:

    quando eu tiver setenta anos então
    vai acabar esta adolescência

    vou largar da vida louca
    e terminar minha livre docência

    vou fazer o que meu pai quer
    começar a vida com passo perfeito

    vou fazer o que minha mãe deseja
    aproveitar as oportunidades
    de virar um pilar da sociedade
    e terminar meu curso de direito

    então ver tudo em sã consciência
    quando acabar esta adolescência




    a história faz sentido
    isso li num livro antigo
    que de tão ambíguo
    faz tempo se foi na mão dalgum amigo

    logo chegamos à conclusão
    tudo não passou de um somenos
    e voltaremos
    à costumeira confusão


    Poeta itinerante e peregrino,
    pelas ruas do mundo,
    arrasto o meu destino
    Mundo? Uma aldeia de nome tupi,
    um monstro com nome de santo,
    Curitiba, São Paulo,
    com vocês me deito,
    com algo me levanto.
    Vocês aí parados
    a mesma vida de sempre,
    como vos invejo e vos desprezo,
    voz de nós, voz dos meus avós,
    prazos, prêmios, praças, preços,
    chove sobre mim
    a chuva que eu mereço.
    Invoco forças poderosas.
    Quando vou poder
    transformar minhas ruínas em rosas ?

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  3. Nossa...

    Que escolha, Ribas.
    Vê se não dá vontade de declamar à plenos pulmões? A poesia é de qualidade, logo se nota...

    De que livro é este poema?

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  4. Para quem quer conhecer mais do que a poesia-de-guardanapo do curitibano lendário também pelo hálito de crocodilo: http://portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/catatau.pdf

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  5. Igualar Macunaíma? Vá lá que até pode não ir... mas Grande Sertão:Veredas? Parezce que ecsto non ecziste!!! Catatau é criativo-experimental ao estilo pirogue beatnik. Curtição das melhores, sobretudo com o bom Larousse-Houaiss à cabeceira. Mas Grande Sertão é criativo-definitivo, roçando as portas da genial percepção em termos de mundiais veredas. Sem comparação possível.

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  6. E se não me engano ele era faixa preta de caratê, não de judô...

    E ao caro Otaviano, tenho o ótimo "Jesus A.C.", biografia erudita e honesta do Grande Homem Búdico desfigurado pela "Igreja D.C.".

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  7. Tecendo a margem da vela desta nau perdida dos mares sem fim da tentativa de ter-se em contato com todo o mundo encontramos: Tecelão - o mestre dos mares, aquele que naufragará, por último, junto a todos os navios errantes em busca de portos festivos e multicolores.
    Bem-vindo amigo!
    Salve o empréstimo gratuito e o escambo de obras literárias. Empresta o teu livro que eu empresto o meu, hehe
    A pergunta que não quer calar: Tecelão, qual a tua arte marcial, além da arte ninja das monografias perfurantes?

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  8. Vou responder à personagem saída de um manual de direito penal das sociedades batráquias: Tício-Rã (que matou Mévio-Girino). Sim, judoca! O velho Lema foi faixa-preta em judô. Quanto à incomparabilidade com Mário de Andrade ou Guimarães Rosa, eu não posso deixar de dizer que concordo. Escrevi a postagem inebriado pela obra do poeta experimental. Um certo "ufanismo/bairrismo" curitibano, sem dúvida. Mas não altero o texto porque vale a inflamação: quem sabe jovens causídicos não se interpelam pelo romance-batatóvisque de Leminsque!

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  9. Uau, gostei da discussão e das opiniões. Mas Lema era mesmo do judô e não do karatê.

    abraço

    toninho vaz

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  10. Valeu pela participação, Toninho Vaz! É definitivamente uma honra ter em nosso blogue o comentário do biógrafo do Lema e do Torquato Neto!

    Um grande abraço!

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