Júlio Picon Alt[1]
Camila Bitencourt Martins[2]
No mês de maio do corrente ano, completou um ano da remoção de mais de setecentos moradores do Centro para a Zona Nordeste[3] da cidade de Porto Alegre, mais especificamente para a Avenida Protásio Alves, nº 9099, próximo a outros terrenos irregulares e em processo de regularização, com equipamentos públicos saturados em vista do descaso da prefeitura com os cidadãos mais pobres. Nada disso é de se estranhar quando estamos a contar mais uma história de remoção de uma vila no Brasil, ocorre que tal projeto de remoção[4] é considerado modelo internacionalmente[5] e vendido aos olhos da sociedade como a solução quando falamos em habitação popular. A promessa de inclusão social pregada pelos defensores e realizadores dessa remoção, que viam na construção de moradias a inserção daquele povo, não ocorreu, pelo contrário, o que vemos na prática são retrocessos no que diz respeito aos direitos anteriormente adquiridos.
Aos doze de maio de 2011 a última casa da Vila Chocolatão destruída para que aquela área central da cidade fosse feita de estacionamento[6] à veículos dos prédios do Judiciário Federal. O projeto de remoção, fruto de parceria inusitada entre Tribunal Regional Federal-TRF4 e Prefeitura Municipal de Porto Alegre[7], não inovou aos olhos de urbanistas atentos às diretrizes do Estatuto da Cidade, MP 2220 e demais legislações sobre o tema a nível municipal, estadual e federal. A fraca equipe de arquitetos e urbanistas que construiu o projeto de remoção juntamente com a “rede”[8] não se dispôs a pensar no projeto arquitetônico de forma dialogada com a comunidade ou que propiciasse a interação real entre os moradores dentro do seu próprio projeto habitacional. Uma das consequências disso, por exemplo, é a falta de proporcionalidade entre o tamanho das casas e o tamanho das famílias. Na semana de aniversário da remoção, os jornais de maior circulação de Porto Alegre noticiam a situação da Comunidade[9]entre rachaduras e alagamentos, o que evidentemente é conseqüência do serviço mal prestado por aquela equipe.
Para convencer os moradores da Vila localizada no centro da cidade o diretor do Departamento Municipal de Habitação – DEMHAB, afirmava[10]: “os nossos arquitetos e engenheiros prepararam uma sede social onde vocês vão fazer os aniversários, fazer os casamentos – não há mais quase casamentos, mas às vezes há! -, onde vocês vão fazer as festas de 15 anos, onde vocês vão fazer as formaturas dos filhos de vocês, que hão de se formar engenheiros, assistente sociais, enfim, muitas coisas boas que o porvir há de nos trazer com a nova residência”. Ocorre que até agora a Comunidade não possui a referida sede nem para o trabalho da Associação de Moradores - mesmo com a Associação existindo desde 2008 -, tampouco para eventos comemorativos da qual se referia o Diretor; esquecimento esse que nos leva a crer incompetência ou má fé.
A Chocolatão tratava-se de uma Comunidade que vivia espalhada em área plana e que hoje se conforma a viver em área estreita morro a cima. Além disso, conforme o jornal Metro[11], quatro moradores já foram assassinados em decorrência do tráfico de drogas naquela nova região. Por estes, entre outros motivos, estima-se que muitas famílias não se adaptaram a vida na Avenida Protásio Alves e voltaram às ruas, colaborando com os números do déficit habitacional brasileiro. A dificuldade de adaptação e também a falta de soluções efetivas para todas as famílias da antiga Chocolatão, são fatos que colaboraram para o retorno das famílias às ruas, pois das 225 famílias, 181 foram contempladas no novo projeto[12], sendo as outras encaminhadas para aluguel social, sem nenhuma alternativa eficaz ao fim deste.
Planta do projeto de reassentamento (Fonte: DEMHAB) |
Conforme Termo de Compromisso, as famílias não contempladas na realocação, receberiam aluguel social e após, quando pronto, seriam incluídas no empreendimento habitacional Jardim Paraíso no Bairro Restinga. Seguindo, novamente, a mesma lógica de retirada do pobre do Centro em condições incertas. Mais uma medida sem sucesso prático, pois muitos moradores estão nas ruas e outros já deixaram de receber o aluguel social sem a tal transferência para o bairro Restinga.
O Termo de Compromisso[13] tratou-se de um acordo entre prefeitura e MPF, finalizado três dias antes do inicio da retirada dos moradores e derrubada imediata das casas do local. Tal pacto motivou na Comunidade esperanças em obter suas demandas atendidas, servindo também como um instrumento de contenção de ânimos dos moradores que naquela área se encontravam para que o despejo de todos pudesse ser realizado com sucesso. Porém, é no mínimo questionável essa necessidade de recorrer à produção de um documento para estabelecer compromissos essenciais que, obviamente, deveriam estar contidos, pensados e planejados desde o início neste projeto considerado uma iniciativa modelo de efetivação de reassentamentos.
As promessas daquele projeto tido como modelo faz com que moradores ironizem: “Projeto modelo? Projeto pesadelo”[14]. Nem a prefeitura nem a Justiça Federal se incomodaram com as provocações feitas pela comunidade e sociedade civil organizada, quanto à remoção ocorrer no meio do ano letivo, resultado: grande evasão escolar e rejeição das crianças da Vila Chocolatão em relação às crianças daquele bairro.
A antiga comunidade, quando localizada no centro da cidade, tinha como principal fonte de renda a catação de lixo. Diferentemente das promessas da “Rede[15]”, a dificuldade para garantir a renda mínima na atual Chocolatão ainda é um problema que está longe de ser solucionado. A possibilidade de emprego para um membro de cada família no galpão de triagem de material reciclável, conforme comprometimento[16], nunca existiu efetivamente. Hoje, trabalham no galpão cerca de 40 pessoas de toda a Comunidade, onde muitos ainda lembram-se do melhor rendimento quando tinham acesso facilitado ao material reciclável no centro da cidade.
Além do mais no projeto de realocação havia previsão de alternativas de geração de renda para os moradores que não optassem por trabalhar no galpão, com explicações detalhadas das propostas de atividades, inclusive com os gastos previstos. Essa proposta foi ratificada no Termo de Compromisso, onde consta que em até doze meses após o reassentamento essas atividades seriam realizadas, o que não ocorreu de forma efetiva e de acordo com as necessidades específicas da Comunidade.
Fotos do primeiro dia da remoção Grafite no antigo Cine Avenida |
Os moradores reclamam do atendimento do posto de saúde, pois em vista do elevado índice populacional[17] da região a qualidade do serviço básico não supre as carências e necessidades daquela comunidade bem como, as carências das comunidades do entorno. Todos esses impactos foram alertados por inúmeras entidades e cidadãos de Porto Alegre, mas a prefeitura e tampouco a justiça federal aventou a hipótese de aqueles moradores continuarem onde já estavam, no centro da cidade, em manifesto corporativismo federal aliado a uma prefeitura notoriamente conservadora.
Em meados de fevereiro de 2011 - antes da malfadada remoção dos moradores da Vila Chocolatão - foi entregue ao Ministério Público Federal por lideranças da Comunidade, o laudo feito pela Associação dos Geógrafos Brasileiros-AGB e Serviço de Assessoria Jurídica Universitária-SAJU, junto com a Comunidade evidenciando todos estes possíveis impactos se a remoção fosse feita de forma precipitada. Em março a Acesso- Cidadania e Direitos Humanos ingressou com ação jurídica em defesa dos moradores da comunidade[18], evidenciando diversas irregularidades e ilegalidades no processo de reintegração de posse do TRF4 contra os moradores. Apesar dos esforços da comunidade e dos defensores de Direitos Humanos, nem a ação jurídica e nem o MPF conseguiu conter a avidez e violência deste processo, que hoje afirmamos: mais uma Comunidade pobre foi removida do centro para uma área periférica com diversas violações dos seus direitos. Lamenta-se o fim de uma das primeiras ocupações feitas por moradores de rua no Brasil em um grande centro urbano.
[1] Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUC-RS, integrante da Acesso- Cidadania e Direitos Humanos, integrante do GAJUP- SAJU/UFRGS e do NAJUP-RS.
[2] Graduanda em Ciências Sociais na UFRGS e integrante do GAJUP-SAJU/UFRGS.
[3] Projeto de Trabalho Técnico Social – PTTS, DEMHAB, 2010.
[4] Projeto de Trabalho Técnico Social – PTTS, DEMHAB, 2010.
http://citiesprogramme.org/index.php/projects/details/social_inclusion_project_for_vila_chocolatao/;
[6] Notícia veiculada no site da JFRS, no dia 10/04/2012, dizendo que a área estava sendo estudada como uma opção para estacionamento, podendo ser facilmente evidenciado que tal fato já ocorre.
[7] Grupo com a intenção de retirar a comunidade do centro da cidade, autonomeado como “Rede de Sustentabilidade da comunidade do Chocolatão”.
[8] “Rede”: Abreviação do nome utilizado nas reuniões a respeito da Remoção da Comunidade. Mesma citação acima, de nº6.
[10] Humberto Ciulla Goulart, “evento da presidência” ocorrido na Câmara de Vereadores em 06 de outubro de 2010. Candidato a vereador das eleições de 2012 pelo PDT.
[11] Reportagem sobre a Chocolatão no Jornal Metro do dia 11/05/2012, sobre um ano da remoção.http://issuu.com/metro_brazil/docs/20120511_br_portoalegre.
[12] Dados disponíveis no Laudo Técnico sócio-econômico feito pela Associação de Geógrafos Brasileiro - AGB e Serviço de Assessoria Jurídica Universitária - SAJU, junto com a Comunidade, disponível emhttp://viladochocolatao.blogspot.com - visitado no dia 12/06/2012.
[13] Termo de Compromisso – TC firmado nos mesmos moldes de um Termo de Ajustamento de Conduta - TAC, de acordo com a lei 7347/85, art. 5º e 6º.
[15] Rede criada para remoção da comunidade - vide nota de rodapé nº 6.
[16] Afirmação do TRF feita aos moradores e noticia veiculada no Site do TRF4 em 31/01/2011 http://www.trf4.jus.br/trf4/noticias/noticia_detalhes.php?id=7155.
[17] De acordo com o Projeto de Trabalho Técnico-Social – PTTS, (DEMHAB, 2010), o bairro Mario Quintana possui 28.518 habitantes, densidade demográfica de 4.206,19 habitantes por km², e 25 ocupações irregulares de médio porte (de 100 a 500 domicílios).
[18] Embargos de Terceiros, processo nº 2000.7100.000973-1, Justiça Federal da 4ª Região.
* As fotos são provenientes do arquivo do GAJUP/SAJU-UFRGS ou estão disponibilizadas na internet.
Nenhum comentário:
Postar um comentário