domingo, 30 de outubro de 2011

Mulheres encarceradas pelo tráfico: a modernização do arcaico.

O tráfico de drogas vem se constituindo, na visão de estudiosos do tema, como uma economia criminal urbana, gerando, longe do alcance da lei, a comercialização de mercadorias e serviços às trevas da clandestinidade e das regras de “mercado”. Nessa dinâmica, o Estado desenvolve função dúbia, quando por um lado realiza atos coercitivos amparado por seus instrumentos legais penais e por outro, recolhe lucros de práticas de extorsão, corrupção e retenção de excedentes advindos dos vultosos investimentos na segurança dos negócios (como contrabando de armas, por exemplo). Verifica-se que o Estado Brasileiro, em sua ambigüidade funcional, quando do enquadramento de substâncias psicotrópicas à ilegalidade, pune grupos seletos envolvidos com a atividade criminosa e obtém lucro ilícito por meio desses “mercados negros”, mostrando claros interesses da máquina burocrática na manutenção dessa “ordem”.

No tocante a esses grupos a quem a punição é direcionada, a despeito das cifras indizíveis que fomentam esta economia, importante observar que tal atividade, vestida pelo manto da ilegalidade, é conduzida por indivíduos que vem a ser alvo da repressão estabelecida pelas ingerências estatais. Quem são esses indivíduos? Porque se envolvem/envolveram com o tráfico de drogas?

Trata-se de indivíduos pobres, principalmente mulheres - duplamente vulneráveis - que se converteram na principal mão de obra destes procedimentos ilegais. Nos últimos anos, houve intenso recrutamento de mulheres, jovens, a maioria de mães solteiras, para o desempenho de atividades de baixo-escalão na cadeia do tráfico de drogas. Nessa dinâmica, as mulheres raramente ocupam um papel administrativo, concentrando-se nos pólos mais atingíveis, encarregando-se de tarefas mecânicas como embrulhar e armazenar, estabelecendo-se em ambientes mais privados ou assumindo o papel de “mula”, personagem incumbida do transporte de drogas para dentro de presídios ou outros lugares.

Embora a lei de drogas (Nº 11.343/06) estabeleça em seu artigo 33 uma série de atos tipificados como criminosos, são os setores de ação na cadeia do tráfico ocupados por pessoas pobres e, mais diretamente, por mulheres - colocadas na ponta dessas atividades, como reflexo de sua fragilidade econômica e social – os que mais sofrem os efeitos da coerção estatal. Denota-se, assim, que o recrutamento para o tráfico e o encarceramento de mulheres encontram suas convergências sociais, materializando-se em expressão das forças econômicas e das relações patriarcais vigentes em nossos dias.

Importa ressaltar que as situações de vulnerabilidade econômica e social a que as mulheres historicamente estão submetidas são reproduzidas na micro-realidade do tráfico de drogas. A lógica aí desenvolvida é verdadeira vitrine das relações sociais postas, baseadas na centralidade do poder masculino. Não há coincidência no aumento significativo do aprisionamento de mulheres com a intensificação da repressão às drogas, mas uma resultante da divisão sexual do trabalho que reverencia o homem e sua posição social privilegiada e que obriga milhares de mulheres à sujeição a atividades precárias, degradantes e repreensíveis, inclusive do ponto de vista penal.

Isso porque a categorização de uma conduta como crime é uma decisão política, fundamentada pelos interesses dos grupos investidos de poder para tal decisão, visando o extermínio de determinadas pessoas do convívio social. Assim, direito e sistema penais, como instrumentos de controle social, são a materialização dessas decisões políticas, revestindo-se de legitimidade a barbárie derivada do jus puniendi estatal. Frise-se que, ideologicamente, o Estado garantidor da ordem e da paz social precisa dar resultados eficazes da sua atuação. Assim, por meio da polícia, intensifica a repressão às substâncias ilícitas agindo com maior incidência no momento de maior exposição do tráfico: o transporte. Ter-se-ia, assim, respostas concretas e positivas à política de combate às drogas, a “garota-propaganda” da efetividade estatal.

Diante da estreita relação entre machismo/patriarcado e criminalização da pobreza através da ilegalidade atribuída às drogas, visíveis são as raízes criminológicas, históricas e sociais que explicam a natureza de grande porcentagem das mulheres presas, fundadas no machismo reinante e na promiscuidade estatal de comprometimento com o capital sócio-cultural hegemônico.

imagem: muher presa na Penintenciária Feminina de Santana, São Paulo.

3 comentários:

  1. Em minha opnião, o tráfico constitui um claro exemplo ilustrativo de como opera a seleção secundária no processo de criminalização. Em nível executivo, o sistema penal ocupa-se dos delitos dotados de maior visibilidade, normalmente praticados por indivíduos pertencentes as camadas sociais de maior carência econômica. Por outro lado, as ilegalidades mais obscuras conexas ao tráfico (ou antes, essenciais a ele), a exemplo da corrpção, permanecem na dita cifra negra da criminalidade. A seleção operada aí pelas agências policiais não atende a uma maior ou menor danosidade dos delitos ou contrariedade à lei, antes disso, responde as relações estruturais de poder econômico e político da sociedade.Isso porque o moderno sistema penal consolidou-se simultanea e harmonicamente com a ascenção do capitalismo, tornando-se um mecanismo de reprodução, conservação e, até mesmo, legitimação das multiplas desigualdades que servem de fundamento àquele.

    Não é, pois, de se espantar que a classe proprietária se alimente impunemente do tráfico; ao passo em que os indivíduos pobres que executam suas perigosas e notórias funções (muitas vezes iludidos com uma promessa de enriquecimento)sejam o alvo certo do processo de criminalização.

    Essa é a principal razão do tráfico ser tão forte no Brasil. O sistema penal entra aí mais como uma balança política do que como efetiva solução ao problema.

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  2. Cada vez mais tenho me convencido da necessidade de articularmos nossos estudos de classe com as interfaces gênero e raça.

    Para além de uma discussão que interessa às mulheres de forma particular, porque permite uma compreensão da sua própria história e da construção da solidariedade para enfrentar o patriarcado; o entendimento de como o patriarcado articula-se com o capitalismo é fundamental para que possamos desenhar nossa práxis.
    Olhar a situação prisional, por exemplo, e entender como as mulheres chegamaté ali e como elas são tratadas naquele espaço.
    A generalização no enfrentamento de violações contra o direito de ser gente somente serviu historicamente para garantir a manutenção das opressões. A compreensão a fundo das questões de gênero, raça e etnia, geração e sexualidade estão entre as nossas muitas tarefas... Vamos caminhando, cada uma/um contribuindo no que já conseguiu acumular.

    Para contribuir com a questão: relatório de 2007 sobre a situação das mulheres nas prisões: asbrad.com.br/conteúdo/relatório_oea.pdf
    Já tinha lido um relatório mais atual da Justiça Global, mas não consegui encontrá-lo...

    Vou dar mais uma pesquisada e ver o que encontro.

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  3. Oi Juliana! Aqui é Juliana também! Só que de Brasília. Li um texto muito interessante sobre a substituição de um Estado de Direito por um Estado Penal, onde fica muito claro que o sistema prisional seria a maneira que o governo sustenta as políticas públicas para a população pobre, o que recai imediatamente na parcela das mulheres negras devido à crescente criminalização dessas mulheres em vista dos dois eixos articulados de opressão de raça e de gênero. É uma tristeza. Fico feliz de achar seu texto de excelente escrita que foi indicação de uma amiga de um projeto social que realizamos aqui no Distrito Federal. A pesquisa sobre sistema prisional feminino ainda é muito incipiente no Brasil, que bom que você tá nessa luta! Parabéns!

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