quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Ode ao povo

Por Priscilla Mello, do NAJUP Luiza Mahin, Rio de Janeiro


Vivemos um momento histórico em que fica cada vez mais clara a insuficiência de práticas institucionais e burocráticas à construção de uma sociedade verdadeiramente popular. No Brasil vivemos hoje o desfecho de um ciclo. Ciclo este que criou sonhos e expectativas e que formou uma geração de militantes.

O que ocorria mundialmente no início da década de 90, o fim da Guerra Fria, da União Soviética e a ascensão do neoliberalismo, era uma ferida marcada no seio de milhões de sonhos de lutadoras e lutadores do povo pelo mundo.

No Brasil, na contramão mundial, com o fim da ditadura militar, o que vimos foi nascer uma chama de esperança no povo e na juventude que então vai ás ruas clamar por uma nova ordem política, por um novo Brasil. Porém, a conjuntura mundial aliada aos problemas sociais complexos que foram enraizados no país ao longo destes 500 anos e às medidas recuadas daqueles que detêm o poder, algemou os anseios do povo brasileiro e daqueles que lutam por ele à lógica do possível, longe dos sonhos de libertação do século XX, presos às regras e aos espaços permitidos pelo pensamento dominante, da utopia ao conformismo.

No campo ideológico aprofundaram-se os hábitos de consumo capitalista em detrimento à solidariedade, instigou-se a competição econômica baseada em carreiras individuais em detrimento à cooperação social, ataram-se as mãos do povo, não lhe sendo permitido criar um poder seu. No discurso talvez, mas não de fato.


Um povo historicamente explorado sob as bases de um país colonial e dependente, que não enxerga em si o sujeito da mudança. Não vê que é em si que está o poder para se libertar. Onde está o poder popular brasileiro? Não existe? Foi amputado de seu corpo, emergido em ilusões econômicas sem que lhe seja dito que o sistema não permite que todos tenham tudo isso, e qual o real valor disso tudo.

Afirmarão: "Mas nos países desenvolvidos a socialdemocracia funciona muito bem. É só fazermos como eles." Não se esqueça que eles lá só são assim por causa de nós. O patrão e o trabalhador na forma de nações. Sem o suor do sul, não há a riqueza do norte. Isso pode soar ultrapassado para alguns. Porém, não se esqueça, que dizer que algo está ultrapassado é a forma mais fácil de fazer o outro deixar de dizê-lo, mesmo que ainda seja verdade.

Os problemas estruturais da sociedade não são meros problemas administrativos, e o povo não deve ser um mero agente passivo a votar em quem fará a política em seu lugar ou que ouvirá aqueles que construirão o conhecimento científico em seu lugar.

A falta de protagonismo das massas não ocorre só no Brasil, mas, no restante da América Latina também, com exceção, talvez, da Venezuela e da Bolívia. Prova disso foi o recente Golpe de Estado no Paraguai que levou para as ruas militantes e integrantes de movimentos sociais, mas não a grande massa paraguaia, não tendo sido suficiente para devolver ao país a democracia.

Dentro desse contexto, urge a união daqueles que apesar das diferenças ainda buscam esse mesmo objetivo, criar poder popular. Nesse sentido, devemos construir espaços de aglutinação, e não de separação. Devemos estar baseados por um sentimento de construção e não de luta interna entre indivíduos movidos pelo ressentimento. Nos unir no compromisso com a classe trabalhadora e com os movimentos populares, e reforço: apesar das diferenças.

Nesse desafio, a produção de um outro conhecimento científico aliado às lutas populares se torna importante e indispensável. Não é da teoria que se faz a matéria, mas entre eles existe sim uma relação dialética complexa.

Defendemos então o uso da ciência, do conhecimento como um todo, como instrumento de luta a fazer uma contenção dentro e fora da academia àqueles que insistem em reagir contra o conhecimento emancipatório. Conhecimento emancipatório este que não é mero reprodutor de velhas ideologias de exploração, mas que vem do povo mostrar a real face do mundo. Aprendemos: o verdadeiro conhecimento não aceita pressupostos. Volta, volta e volta até o início do início para achar o x da questão. Contesta tudo o que lhe é dado de bandeja por figurões estranhos, gananciosos ou prepotentes, estrelinhas do saber, para construir algo novo e emancipador. Emancipador não só em conteúdo mas principalmente em método. Um método que garanta dar voz àqueles sem microfone.

Uma pesquisa-participante, uma pesquisa-ação, uma educação popular. Gostaria de lembrar-lhes que por mais radical e revolucionário que lhe pareça seu conhecimento, de nada ele serve se não for passada adiante a forma de construí-lo, se ele fica enclausurado aos muros da universidade e não pode ser instrumentalizado pelo povo na sua luta pela libertação de si e de todos nós.

Paulo Freire, educador brasileiro, nos disse bem que ninguém educa ninguém, ninguém se educa sozinho. os homens se educam mutuamente, em comunidade, numa relação dialética. Ele diz isso e parte dos mesmos princípios que outro autor, Orlando Fals Borda ao dizer "não pode haver valores absolutos no conhecimento científico porque este irá variar conforme os interesses objetivos das classes envolvidas (...) na sua produção". E mais, que "o conhecimento popular também possui sua própria racionalidade e sua própria estrutura de causalidade, isto é, pode-se demonstrar que tem mérito.e validade por si".

Ou seja não há conhecimento científico neutro e absoluto ele sempre virá a serviço de alguém, e por não ser absoluto, não há porque negar o valor da "ciência" popular, afinal, repito, ninguém educa ninguém, todos nos educamos mutuamente. 

O que queremos então é um conhecimento que vem do povo e vai ao povo. Que vem do povo pois deverá ser construído a partir deste que é o subjugado pelo sistema, e que pode e deve construir um outro saber. Que também vai ao povo pois que serve a sua luta por emancipação, a nossa luta.

Que não sejamos acadêmicos, mas sim pensadores revolucionários. O acadêmico tende a considerar-se importante, quando na verdade nada ou quase nada fez, a não ser escrever uma tese com uma boa nota na CAPES. O pensador revolucionário faz muito, mas sempre considera insuficiente o que fez. O acadêmico busca o máximo de visibilidade individual, pontua sua trajetória em torno de títulos e bajulações, pela extensão do seu Lattes; constrói relações verticais com seus pares e com seus alunos; não precisa viver o que diz. O revolucionário busca a transformação não a conformação. Vê seus pares e alunos como parceiros de uma mesma luta, não seus adversários na disputa por um edital ou um pedestal. Ele vive o que diz, vive sua obra, pois ela vem da parte mais íntima dele, dos seus sonhos.

E o Direito nisso tudo?

Diga-se de passagem que a faculdade de Direito não me deu instrumento algum para analisar a sociedade, "A sociedade é o Direito", e o mais curioso é como os instrumentos jurídicos que teoricamente me auxiliariam numa advocacia engajada eram quase sempre utilizados em exemplos contra o povo! 

Há vida no Direito? Há sim, meio escondida mas há. Se remexe e incomoda. O Direito está cercado por todos os lados pela burocracia, pelo conservadorismo, pelo vício às instituições e às carreiras individuais e principalmente, imerso em poder. Poder de controle e repressão. Cercada por tudo isso, a vida que há no Direito quando se remexe incomoda, e muito, e quase sempre é sufocada. Ainda assim, deve existir e se fortalecer nesse mundo cada vez mais judicializado. Isso porque sob o manto do Direito se legitima de forma mais fácil as violações do Estado e do capital, afinal, tais violações passam a ser legais.

Nesse campo é preciso coragem. Devemos saber que é preciso remar contra corrente. O que é duro e cansa. Corremos o risco de derrotas, porém mesmo quando perdemos ajudamos a acumular forças para um projeto maior.

Digo isso principalmente à juventude. A história comprova que somos nós a juventude, os principais atores das grandes mudanças que ocorrem. Um clichê cai bem: "o futuro está nas mãos dos jovens". Cabe a nós nos conformarmos ou não diante do sofrimento, mesmo que velado por prazeres fugazes que o sistema nos dá como brinde e não como essência da vida. 

Protagonismo da juventude sim, sempre. Por que não? 

Quando falamos de juventude, não falamos somente da juventude estudantil mas, juntas a esta, a juventude pobre do campo e da cidade que todos os dias é exterminada em nosso país. Exterminado não só fisicamente, mas também psicologicamente quando lhe é privado o acesso a cultura e a educação, quando lhe é negado o direito a projetar seu futuro.

Frei Betto descreve três recursos utilizados pelo capitalismo para neutralizar as motivações utópicas da juventude.

O primeiro é a desistorização do tempo. O capitalismo tira o caráter histórico do tempo e propagandeia o projeto do prazer imediato. Segundo ele, o jovem perde a dimensão biográfica da vida, que é então reduzida à esfera biológica.

O segundo é a redução da cultura ao mero entretenimento. Nada de programas televisivos que despertem a consciência. Valem o apelo sensitivo, o jogo de imagens, o voyerismo e a violência. Nada de fazer pensar e muito menos, ter senso crítico.

O terceiro recurso é o consumo como fonte de valor humano. Em si, a pessoa nada vale. É a mercadoria que imprime valor às pessoas e não o contrário.

Juventude, não se acanhe.

Que não fiquemos parados diante de tamanha lavagem cerebral. Cabe a nós junto aos professores construir uma outra educação. Não vê que nossa geração é órfã? Órfã de sonhos, de heróis, de crítica, de luta, e principalmente, órfã de conhecimento crítico. Que possamos construir um sentido a nossa geração. Não podemos permanecer sem armas. Queremos conhecimento, não qualquer um, mas um que nos transforme, que nos permita ver a estrutura velada do mundo. Que nos explique porque sentimos esse vazio, que tentamos preencher com amores, consumo, drogas, remédios, religião, entretenimento insosso, mas que continua lá.

Que possamos arrumar um jeito de acabarmos com esse divórcio entre a teoria e a vida prática. Não nos ensinem a sermos bons e úteis servidores à acumulação de capital (sem perturbar o sossego deles), a sermos mais uns no exército de funcionários padronizados.

Não nos deixemos ao marasmo, à desilusão, à reprodução de práticas burocratizadas e descoladas das necessidades do povo, ou ligadas a sentimentos rancorosos e destrutivos, que não se propõem ao efetivo rejuvenescimento da aliança entre povo e juventude. 

Não nos deixemos permanecer sendo "bravos consumidores".

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