Começo essas linhas por um título sem pontuação. Sem saber se a oração acima se trata de uma afirmação necessária, implicada no mundo, ou de uma indagação constante que me atravessa, cá em um dos exercícios indispensáveis à pretensão de horizontalidade – a autocrítica - venho repensando quais as razões determinantes pra me auto-afirmar enquanto defensora dos direitos das mulheres. É imensurável a importância do feminismo na minha vida, como mulher, como indivíduo que direta ou indiretamente já foi e é ainda afetado pela vigência dos padrões hegemônicos de subjugação do feminino. Mas concluo que as razões estão além. Estão no outro. Na verdade, em outras, tão gente/mulheres quanto eu.
E essa conclusão vem
fácil. Ganha corpo no simples estar viva no mundo e se permitir olhar pros
lados. Não consigo mais empreender um passo que seja nas ruas sem observar os
movimentos das pessoas, suas manifestações, perfeitamente encaixadas na
dinâmica social excludente que nos é sobreposta. Explico-me. Na última segunda
feira, dia 12, quando assistia à mesa redonda que deu início à V Semana Social
Brasileira, com debate sobre participação popular na construção do Estado
Democrático e sobre a Campanha em defesa das Terras, Águas e Povos do Piauí,
debate esse conduzido por duas aguerridas professoras piauienses, diga-se de
passagem, não pude deixar de observar a quantidade de mulheres que daquele
espaço tomavam assento, como expectadoras. Eram trabalhadoras rurais do
assentamento Salitre Chileno I, que há cinco anos ocupa uma propriedade privada
localizada no km 25 da BR 316, entre
Teresina e Demerval Lobão, região da Grande Teresina, em
condições subumanas de existência. Faziam-se presentes para mais uma luta
travada em nome de direitos que provavelmente sequer conheçam o nome, mas
primariamente a necessidade. Eram muitas: senhoras e jovens, as primeiras
pensando no bem estar dos filhos adultos e netos, as segundas, acompanhadas de
seus rebentos. Sabem-se lá quantos afazeres domésticos deixaram para trás a fim
de ocupar um espaço político tão vital pros dias que ainda estão por nascer.
O que mais me chamou
atenção, entretanto, foi o esvaziamento constante do auditório por essas
mulheres. Os cuidados com as crianças ou a preocupação com seus esposos lhes
tiravam recorrentemente o foco do debate. Estavam ali desde cedo, com sede, com
fome. Aos poucos, o ato de hastear a bandeira do movimento, inicialmente em
punhos femininos, passou a ser realizado por homens. As vozes entoadas nos
gritos de luta já não eram mais tão agudas. O grave masculino tomava de conta.
Como não identificar que se trata de clara evidência da exclusão, gradativa ou
não, da mulher nos espaços de diálogo, de construção intelectual, de
desenvolvimento enquanto individuo político/social?
O que me leva a parir esse texto e observar a
gritante necessidade de um olhar mais profundo para as mulheres em uma
sociedade patriarcal é que fica uma certeza de estarmos vivendo eternamente em
um ciclo de dependência, de submissão e pobreza desses indivíduos. Para mim é
fácil falar/pensar/lutar em/por emancipação. Ou pelo menos, é um processo bem
menos dificultado do que para essas assentadas ou para tantas outras mulheres em
condições precárias de vida. A despeito das críticas, tive acesso aos meios de
produção, de vida e à educação formal, ainda que reprodutora de desigualdades.
Com todas as suas limitações, foi esse privilégio a mim dado que me permitiu
sentar à frente de um notebook, ter acesso às informações de que preciso,
escrever essas linhas. Sem contar com toda uma estrutura (que devo admitir)
mais do que básica no meu âmbito familiar, que me propicia ter tempo, energia e
foco para produzir. Para essas mulheres, sujeitos de uma realidade social
distinta da minha, parece impossível expressar-se como o faço agora.
É mais do que poder (a
mim concedido, em contraposição ao direito, delas tolhido) de expressão. Eu
quero tratar aqui do direito de sonhar e ter meios efetivos de concretizar seus
desejos. Quero falar da oportunidade de enxergar um horizonte de transformação,
que tenha também como objeto desenhado, além da construção de uma vida com
dignidade, a superação de tantas outras desigualdades estruturadas a partir da
desigualdade de gênero. Pautas históricas dos movimentos feministas como a
legalização do aborto, a liberdade sexual das mulheres, o direito de decisão
sobre seus corpos e vidas, a ocupação dos espaços políticos, penso, devem
parecer idioma estrangeiro, linguagem indecifrável para essas trabalhadoras e
outras tantas companheiras de gênero oriundas das classes populares.
O que chega a doer,
tamanha a indignação que causa, é essa determinação tão certa, absoluta, do
lugar da mulher na sociedade. Estamos tão submersos nessa compreensão torta de
mundo e de vida, tão vendados, que é quase improvável perceber o quanto a
lógica dominante nos afeta nas mínimas práticas, nos nossos sentimentos, até no
que acabamos por entender por felicidade e realização. Não tenho dúvidas de que
essas trabalhadoras encontram suas satisfações servindo à família. Não me atrevo
a questionar a certeza da não marginalização e a segurança que mulheres vítimas
de violência doméstica devem carregar ao não abandonar o lar, com seus filhos
por criar (o lar que, segundo dados recentes, ainda é objeto de posse dos
maridos agressores). Essa definição do papel feminino, tão irracionalmente
absorvida, é a principal responsável por usurpar de tantas mulheres a chance de
construção de um pensamento novo, de politização. Quem pode questionar a ordem
se desdobrando entre conquistar o pão dos filhos e seus cuidados?
Pesquisando um pouco
mais, me deparo com falas de mulheres que se envolveram com o tráfico no
intuito de dar sustento aos filhos, abandonadas que já foram pelos
companheiros. Dando um passeio despretensioso no centro comercial da cidade, é
impossível não notar como as mulheres dominam os setores de empregabilidade
informal, ganhando salários irrisórios. Tomando um ônibus, não consigo deixar de
pensar que logo estarei fazendo parte de um diálogo político, com homens e
mulheres, planejando o que fazer do futuro, lendo um livro, repensando o mundo
e a mim mesma. Mas nesse mesmo ônibus, disputo apertadamente espaço com outras
mulheres, tão diferentes de mim, cansadas e de olheiras alarmantes, marcadas
pela jornada diária dividida entre trabalho, filhos e marido, prontas para mais
uma rotina de trabalho, despreocupadas com maquiagem e saltos altos. Às vezes
feridas na pele, pelo homem que amam, outras vezes, feridas na alma, pela vida.
Todas, sem perspectivas de emancipação efetiva.
É diante desse quadro e
da constatação de que a pobreza, além de cor, também tem gênero, que preciso (e
de outro jeito não poderia ser) me entender feminista. Penso, na verdade, que
ser feminista deveria ser pressuposto de qualquer pessoa que lute por
transformação da realidade posta. Como falar em superação das desigualdades
sem, contudo, combater as opressões de gênero que aprofundam o ciclo de
exclusão de seres humanos da participação da vida livre, desamarrada?
Chego ao fim desse
texto querendo mesmo é fazer uma observação. Ao longo do tempo, pude perceber
que as discussões de gênero ainda são tímidas em muitos espaços ocupados por
assessores e educadores populares. Não raro, as reações de estranhamento ao
tema são bem visíveis. Longe de querer apontar o dedo para as pessoas,
entendendo que esse debate é de fato dificultoso, porque mesmo nós, defensores
de seres humanos, também somos frutos da cultura política posta, fica aqui o
desejo de contribuir, de alguma forma, para o despertar para a importância
dessa luta que não é minha só, mas de todos nós, homens e mulheres. Porque ser
feminista é uma necessidade. Sem mais interrogações. Ponto final.
Ju, nosso curso de Direito E Gênero tá gritando já.
ResponderExcluirUma oficinoteca com um espaço pra discussão de gênero, feminismos tb!
Vamos arregacar as mangas, soltar as saias e os cabelos e fazer a roda da história rodar a todo vapor!
Ju, nosso curso de Direito E Gênero tá gritando já.
ResponderExcluirUma oficinoteca com um espaço pra discussão de gênero, feminismos tb!
Vamos arregacar as mangas, soltar as saias e os cabelos e fazer a roda da história rodar a todo vapor!
Nossa bom demais seu texto.
ResponderExcluirGostei das observações, Ju
ResponderExcluirTambém ando pelo centro da nossa cidade com esses questionamentos ( e outros sobre temáticas que atravessam este e outros temas caros a este blogue que, acredito, você também pensa)...
É sempre algo interessante levantar a questão do feminismo e se dar conta das reações das pessoas. Um pouco menos de duas semanas atrás, apresentei uma comunicação na jornada do mestrado que faço e nela tratei de um diálogo que ocorreu no início da década de 1990 entre o pragmatista estadunidense Richard Rorty e a filósofa feminista (também estadunidense) Nancy Fraser. Depois da minha fala, as perguntas se dividiram em: apoio à escolha da temática, curiosidade a respeito e...um certo preconceito. Uma pessoa na plateia me sugeriu Peter Singer para "resolver" meu problema. Fiquei pensando se ele realmente ouviu que eu estava falando de gênero, que é um corte bem claro na idéia de sujeito moral humano (não vou entrar nas discussões que tratam disso), que é a opção da minha pesquisa atualmente. O outro, talvez até com boa intenção, acusou a filósofa e o filósofo de não fazer filosofia, mas de serem metodólogos (mas a pessoa sendo filósofo analítico, até entendo esta observação) e de que o diálogo tinha um quê de panfletagem. (momento para respirar fundo aqui).
O que posso dizer disto? Já sinto fortemente as amarras da academia em vários outros aspectos.Sei que enfrentarei mais resistência por parte de colegas, professores, mas realmente acredito neste tema e não acho que seja panfletagem e nem acho que meu trabalho se reduzirá a isto. Se a questão da mulher, de gênero, não é uma questão ética, ou algo a ser alvo de estudo mesmo na filosofia política, então, é o quê? Por que falar de uma série de outros temas tão polêmicos quanto e não tocar neste? Tudo foi resolvido no Brasil com a lei Maria da Penha? É um tema "démodé"? As políticas públicas mundo afora (redistribuição e reconhecimento) exauriram a questão moral e todos os desdobramentos dela (inclusive o direito) que envolve a diferença entre gêneros? Eu acho que não. Além de ter uma lista razoável de filósofas feministas discutindo o tema, minha gente...a realidade grita ao meu redor!Ao meu redor e dentro de mim.
Isso foi um desabafo. Não me deixo intimidar, apesar dessas coisas, prefiro usá-las para tentar melhorar e aprimorar a blindagem a minha pesquisa. Fico feliz em dizer que também tem outros tantos colegas e professores pesquisadores que se interessam e respeitam o tema que, por estas bandas, é novo na filosofia.
Abraço, queridos e queridas!