sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Porque ser feminista



Começo essas linhas por um título sem pontuação. Sem saber se a oração acima se trata de uma afirmação necessária, implicada no mundo, ou de uma indagação constante que me atravessa, cá em um dos exercícios indispensáveis à pretensão de horizontalidade – a autocrítica - venho repensando quais as razões determinantes pra me auto-afirmar enquanto defensora dos direitos das mulheres. É imensurável a importância do feminismo na minha vida, como mulher, como indivíduo que direta ou indiretamente já foi e é ainda afetado pela vigência dos padrões hegemônicos de subjugação do feminino. Mas concluo que as razões estão além. Estão no outro. Na verdade, em outras, tão gente/mulheres quanto eu.

E essa conclusão vem fácil. Ganha corpo no simples estar viva no mundo e se permitir olhar pros lados. Não consigo mais empreender um passo que seja nas ruas sem observar os movimentos das pessoas, suas manifestações, perfeitamente encaixadas na dinâmica social excludente que nos é sobreposta. Explico-me. Na última segunda feira, dia 12, quando assistia à mesa redonda que deu início à V Semana Social Brasileira, com debate sobre participação popular na construção do Estado Democrático e sobre a Campanha em defesa das Terras, Águas e Povos do Piauí, debate esse conduzido por duas aguerridas professoras piauienses, diga-se de passagem, não pude deixar de observar a quantidade de mulheres que daquele espaço tomavam assento, como expectadoras. Eram trabalhadoras rurais do assentamento Salitre Chileno I, que há cinco anos ocupa uma propriedade privada localizada no km 25 da BR 316, entre Teresina e Demerval Lobão, região da Grande Teresina, em condições subumanas de existência. Faziam-se presentes para mais uma luta travada em nome de direitos que provavelmente sequer conheçam o nome, mas primariamente a necessidade. Eram muitas: senhoras e jovens, as primeiras pensando no bem estar dos filhos adultos e netos, as segundas, acompanhadas de seus rebentos. Sabem-se lá quantos afazeres domésticos deixaram para trás a fim de ocupar um espaço político tão vital pros dias que ainda estão por nascer.

O que mais me chamou atenção, entretanto, foi o esvaziamento constante do auditório por essas mulheres. Os cuidados com as crianças ou a preocupação com seus esposos lhes tiravam recorrentemente o foco do debate. Estavam ali desde cedo, com sede, com fome. Aos poucos, o ato de hastear a bandeira do movimento, inicialmente em punhos femininos, passou a ser realizado por homens. As vozes entoadas nos gritos de luta já não eram mais tão agudas. O grave masculino tomava de conta. Como não identificar que se trata de clara evidência da exclusão, gradativa ou não, da mulher nos espaços de diálogo, de construção intelectual, de desenvolvimento enquanto individuo político/social?

O que me leva a parir esse texto e observar a gritante necessidade de um olhar mais profundo para as mulheres em uma sociedade patriarcal é que fica uma certeza de estarmos vivendo eternamente em um ciclo de dependência, de submissão e pobreza desses indivíduos. Para mim é fácil falar/pensar/lutar em/por emancipação. Ou pelo menos, é um processo bem menos dificultado do que para essas assentadas ou para tantas outras mulheres em condições precárias de vida. A despeito das críticas, tive acesso aos meios de produção, de vida e à educação formal, ainda que reprodutora de desigualdades. Com todas as suas limitações, foi esse privilégio a mim dado que me permitiu sentar à frente de um notebook, ter acesso às informações de que preciso, escrever essas linhas. Sem contar com toda uma estrutura (que devo admitir) mais do que básica no meu âmbito familiar, que me propicia ter tempo, energia e foco para produzir. Para essas mulheres, sujeitos de uma realidade social distinta da minha, parece impossível expressar-se como o faço agora.

É mais do que poder (a mim concedido, em contraposição ao direito, delas tolhido) de expressão. Eu quero tratar aqui do direito de sonhar e ter meios efetivos de concretizar seus desejos. Quero falar da oportunidade de enxergar um horizonte de transformação, que tenha também como objeto desenhado, além da construção de uma vida com dignidade, a superação de tantas outras desigualdades estruturadas a partir da desigualdade de gênero. Pautas históricas dos movimentos feministas como a legalização do aborto, a liberdade sexual das mulheres, o direito de decisão sobre seus corpos e vidas, a ocupação dos espaços políticos, penso, devem parecer idioma estrangeiro, linguagem indecifrável para essas trabalhadoras e outras tantas companheiras de gênero oriundas das classes populares.

O que chega a doer, tamanha a indignação que causa, é essa determinação tão certa, absoluta, do lugar da mulher na sociedade. Estamos tão submersos nessa compreensão torta de mundo e de vida, tão vendados, que é quase improvável perceber o quanto a lógica dominante nos afeta nas mínimas práticas, nos nossos sentimentos, até no que acabamos por entender por felicidade e realização. Não tenho dúvidas de que essas trabalhadoras encontram suas satisfações servindo à família. Não me atrevo a questionar a certeza da não marginalização e a segurança que mulheres vítimas de violência doméstica devem carregar ao não abandonar o lar, com seus filhos por criar (o lar que, segundo dados recentes, ainda é objeto de posse dos maridos agressores). Essa definição do papel feminino, tão irracionalmente absorvida, é a principal responsável por usurpar de tantas mulheres a chance de construção de um pensamento novo, de politização. Quem pode questionar a ordem se desdobrando entre conquistar o pão dos filhos e seus cuidados?

Pesquisando um pouco mais, me deparo com falas de mulheres que se envolveram com o tráfico no intuito de dar sustento aos filhos, abandonadas que já foram pelos companheiros. Dando um passeio despretensioso no centro comercial da cidade, é impossível não notar como as mulheres dominam os setores de empregabilidade informal, ganhando salários irrisórios. Tomando um ônibus, não consigo deixar de pensar que logo estarei fazendo parte de um diálogo político, com homens e mulheres, planejando o que fazer do futuro, lendo um livro, repensando o mundo e a mim mesma. Mas nesse mesmo ônibus, disputo apertadamente espaço com outras mulheres, tão diferentes de mim, cansadas e de olheiras alarmantes, marcadas pela jornada diária dividida entre trabalho, filhos e marido, prontas para mais uma rotina de trabalho, despreocupadas com maquiagem e saltos altos. Às vezes feridas na pele, pelo homem que amam, outras vezes, feridas na alma, pela vida. Todas, sem perspectivas de emancipação efetiva.

É diante desse quadro e da constatação de que a pobreza, além de cor, também tem gênero, que preciso (e de outro jeito não poderia ser) me entender feminista. Penso, na verdade, que ser feminista deveria ser pressuposto de qualquer pessoa que lute por transformação da realidade posta. Como falar em superação das desigualdades sem, contudo, combater as opressões de gênero que aprofundam o ciclo de exclusão de seres humanos da participação da vida livre, desamarrada?

Chego ao fim desse texto querendo mesmo é fazer uma observação. Ao longo do tempo, pude perceber que as discussões de gênero ainda são tímidas em muitos espaços ocupados por assessores e educadores populares. Não raro, as reações de estranhamento ao tema são bem visíveis. Longe de querer apontar o dedo para as pessoas, entendendo que esse debate é de fato dificultoso, porque mesmo nós, defensores de seres humanos, também somos frutos da cultura política posta, fica aqui o desejo de contribuir, de alguma forma, para o despertar para a importância dessa luta que não é minha só, mas de todos nós, homens e mulheres. Porque ser feminista é uma necessidade. Sem mais interrogações. Ponto final.

4 comentários:

  1. Ju, nosso curso de Direito E Gênero tá gritando já.
    Uma oficinoteca com um espaço pra discussão de gênero, feminismos tb!
    Vamos arregacar as mangas, soltar as saias e os cabelos e fazer a roda da história rodar a todo vapor!

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  2. Ju, nosso curso de Direito E Gênero tá gritando já.
    Uma oficinoteca com um espaço pra discussão de gênero, feminismos tb!
    Vamos arregacar as mangas, soltar as saias e os cabelos e fazer a roda da história rodar a todo vapor!

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  3. Gostei das observações, Ju

    Também ando pelo centro da nossa cidade com esses questionamentos ( e outros sobre temáticas que atravessam este e outros temas caros a este blogue que, acredito, você também pensa)...

    É sempre algo interessante levantar a questão do feminismo e se dar conta das reações das pessoas. Um pouco menos de duas semanas atrás, apresentei uma comunicação na jornada do mestrado que faço e nela tratei de um diálogo que ocorreu no início da década de 1990 entre o pragmatista estadunidense Richard Rorty e a filósofa feminista (também estadunidense) Nancy Fraser. Depois da minha fala, as perguntas se dividiram em: apoio à escolha da temática, curiosidade a respeito e...um certo preconceito. Uma pessoa na plateia me sugeriu Peter Singer para "resolver" meu problema. Fiquei pensando se ele realmente ouviu que eu estava falando de gênero, que é um corte bem claro na idéia de sujeito moral humano (não vou entrar nas discussões que tratam disso), que é a opção da minha pesquisa atualmente. O outro, talvez até com boa intenção, acusou a filósofa e o filósofo de não fazer filosofia, mas de serem metodólogos (mas a pessoa sendo filósofo analítico, até entendo esta observação) e de que o diálogo tinha um quê de panfletagem. (momento para respirar fundo aqui).

    O que posso dizer disto? Já sinto fortemente as amarras da academia em vários outros aspectos.Sei que enfrentarei mais resistência por parte de colegas, professores, mas realmente acredito neste tema e não acho que seja panfletagem e nem acho que meu trabalho se reduzirá a isto. Se a questão da mulher, de gênero, não é uma questão ética, ou algo a ser alvo de estudo mesmo na filosofia política, então, é o quê? Por que falar de uma série de outros temas tão polêmicos quanto e não tocar neste? Tudo foi resolvido no Brasil com a lei Maria da Penha? É um tema "démodé"? As políticas públicas mundo afora (redistribuição e reconhecimento) exauriram a questão moral e todos os desdobramentos dela (inclusive o direito) que envolve a diferença entre gêneros? Eu acho que não. Além de ter uma lista razoável de filósofas feministas discutindo o tema, minha gente...a realidade grita ao meu redor!Ao meu redor e dentro de mim.

    Isso foi um desabafo. Não me deixo intimidar, apesar dessas coisas, prefiro usá-las para tentar melhorar e aprimorar a blindagem a minha pesquisa. Fico feliz em dizer que também tem outros tantos colegas e professores pesquisadores que se interessam e respeitam o tema que, por estas bandas, é novo na filosofia.

    Abraço, queridos e queridas!

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