quinta-feira, 10 de março de 2016

As AJPs e uma teoria crítica da sociedade

A coluna AJP na Universidade retorna neste ano de 2016 com uma seleção de textos produzidos para a disciplina tópica (equivalente às disciplinas eletivas de outras instituições) Assessoria Jurídica Popular, ministrada por Ricardo Prestes Pazello, na Universidade Federal Paraná, durante o primeiro semestre de 2014. Como primeiro tema, trazemos a discussão sobre a relação da Assessoria Jurídica Popular com uma teoria crítica da sociedade – no caso, especificamente o marxismo – e quais contribuições esses construtos teóricos oferecem à prática das AJPs. O autor, Pedro Pompeo Pistelli Ferreira, é graduando em direito na Universidade Federal do Paraná e participou do MAJUP – Isabel da Silva.

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As AJPs e uma teoria crítica da sociedade

Pedro Pompeo Pistelli Ferreira

Entre várias questões que são necessárias para fundamentar uma boa prática de educação popular e, portanto, da própria assessoria jurídica popular, uma das mais basilares é a construção de uma concepção crítica da sociedade, que, se bem realizada, permitirá desde uma satisfatória crítica ao direito à possibilidade mesma de formular alternativas à realidade atual.
Isso é importante porque, na prática de assessoria junto ao povo, não basta convalidar-se com o sofrimento deste; urge, se se pretende um compromisso real com os esfarrapados e as esfarrapadas do mundo, uma explicação lógica e rigorosa da realidade, que permita compreender o porquê da situação de opressão e que, então, propicie a possibilidade de pensar alternativas à sociedade vigente.
Nenhum caminho, até hoje, parece melhor explicar a situação de pauperismo presente na nossa sociedade do que o marxismo. Marx, n’O Capital, faz uma cirúrgica análise da construção da riqueza capitalista: em aparência, ela parece relacionada à mercadoria e à sua esfera de distribuição (gera riqueza quem compra barato e vende caro); em essência, descobre-se que a geração de riqueza é impossível sem a compra da força de trabalho alheia, que produz mais valor do que recebe em salário. Assim, o trabalho, essa capacidade humana de transformar a natureza humanizando-a e transformar-se a si mesmo humanizando-se, torna-se atividade repetitiva, alienada, feita tendo em vista um mísero salário e não a plena realização do ser humano. Os setores burgueses, para lucrar, precisam utilizar meios diretos (reduções de salários, aumento da jornada de trabalho, etc.) e indiretos (aumento da tecnologia capitalista e, portanto, da produção e de suas forças produtivas) de exploração. A sociedade, dessa forma, deixa de ser controlada por homens e mulheres que buscam humanizar-se, mas sim por pequenos grupos que, cegados pela busca do aumento da produção e das riquezas, constroem uma sociedade com prioridades invertidas: o ser humano passa a ser governado pelo ímpeto do capital de acumular-se infinitamente, insaciavelmente.
Contudo, o rigoroso método usado por Marx para a apreensão da realidade não serve apenas para a denúncia dos problemas da sociedade; ele nos sugere a busca de alternativas para a construção de uma humanidade emancipada.
Sua atuação política e teórica esteve estreitamente ligada à organização do operariado: participou em reuniões de seitas socialistas de trabalhadores franceses, defendeu as revoltas dos tecelões da Silésia em 1844 contra as opiniões de antigos companheiros, participou da Liga dos Comunistas, atuou durante as insurreições de 1848, teve estreitos laços com o movimento cartista na Inglaterra, teve parte protagonista na Primeira Internacional dos Trabalhadores, acompanhou ativamente o breve governo da Comuna de Paris e fez-se importante interlocutor para os populistas russos em sua luta contra o tsarismo – para citar apenas alguns casos. Sempre teve tais condutas almejando aprender com a luta dos trabalhadores e das trabalhadoras e, dela, extrair alternativas ao capitalismo.
Lenin, por exemplo, captou com muita propriedade essa tendência, ao comentar a relação de Marx com a Comuna de Paris:
“Alguns meses antes da Comuna, no outono de 1870, Marx, pondo de sobreaviso os operários parisienses contra o perigo, demonstrava-lhes que qualquer tentativa para derrubar o governo era uma tolice ditada pelo desespero. Mas quando, em março de 1871, a batalha decisiva foi imposta aos operários e estes a aceitaram, quando a insurreição se tornou um fato consumado, Marx saudou com entusiasmo a revolução proletária. Apesar dos seus sinistros prognósticos, Marx não teimou em condenar por pedantismo um movimento ‘prematuro’ [...]. Muito embora o movimento revolucionário das massas falhasse ao seu objetivo, Marx viu nele uma experiência histórica de enorme importância, um passo para a frente na revolução proletária universal, uma tentativa prática mais importante do que centenas de programas e argumentos. Analisar essa experiência, colher nela lições de tática e submeter à prova a sua teoria, eis a tarefa que Marx se impôs” [1].
Não é à toa que Marx, após ser influenciado pela Comuna de Paris, reescreve O Capital, criando sua edição francesa – que ele próprio recomendou ser lida mesmo por quem já conhecia a versão alemã –, quando é, por exemplo, desenvolvida e estendida a parte sobre o fetichismo da mercadoria: esse fenômeno que só terá o fim de seu misticismo quando a denominada “figura do processo social da vida”, enfim, “como produto de homens livremente socializados, [...] ficar sob seu controle consciente e planejado” [2].
Logo, a construção teórica de Karl Marx é imprescindível para a consecução de uma atuação concreta e realmente libertadora das AJPs, porque, primeiro, explica de forma rigorosa a construção desigual e exploradora da sociedade capitalista; depois, dá indicações de como construir uma alternativa ao modo de produção vigente: com um estreito vínculo ao lado dos movimentos emancipatórios dos trabalhadores e das trabalhadoras, dos oprimidos e das oprimidas. Uma teoria crítica da sociedade que explique as razões da exploração e da opressão, como a propiciada pelo materialismo histórico – que, certamente, nunca deve isolar-se do diálogo com outros pensamentos críticos –, então, é um fundamental ponto de partida para pensar em temas caros à assessoria jurídica popular, como uma crítica ao direito, o estudo da completa marginalização de grande parte da sociedade e a reflexão incessante sobre a árdua execução de ações libertadoras que rumam para a construção “da felicidade que segue caminhando” [3].

[1] LENIN, Vladimir Ilitich. O estado e a revolução. Campinas-SP: FE/UNICAMP, 2011, p. 72, grifos nossos.
[2] MARX, Karl. O Capital: Crítica da economia política. t. I. Livro Primeiro. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996, p. 205.
[3] Trata-se do final de poema de Roque Dalton sobre Marx, com “tradução” nossa. Ver: DALTON, Roque. Karl Marx. Em: CHERICIÁN, David (comp.). Asalto al cielo: antología poética. 2. ed. Caracas: El perro y la rana, 2010, p. 445.


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