Ricardo Prestes Pazello
Provocado positivamente pelo filósofo Euclides André Mance,
trago à tona estas breves notas a respeito da relação entre a teoria do direito
e a categoria “libertação”, com especial ênfase para a produção teórica brasileira. O
debate ocorreu por conseqüência de discussões internas ao Instituto de Filosofia da Libertação, do qual tanto Mance quanto eu fazemos parte.
Ainda
não há, por incrível que pareça, um estudo dentro do direito que identifique o
surgimento da categoria "libertação" nas reflexões jurídicas. O que é
certo, porém, é que a problemática da "libertação" já estava colocada
muito antes da difusão do chamado "direito alternativo".
Talvez
tenha sido o juiz João Batista Herkenhoff o primeiro a utilizar a idéia na
literatura jurídica brasileira, em tese de livre docência apresentada à
Universidade Federal do Espírito Santo. A tese foi publicada no mesmo ano de
sua defesa, 1979, e recebeu o título de “Como aplicar o direito” (com o
subtítulo: “à luz de uma perspectiva axiológica, fenomenológica e
sociológico-política”). No capítulo de conclusão, Herkenhoff abre um subitem,
de quatro parágrafos, denominado “A justiça como instrumento de libertação” (além
disso, o texto apresenta citações de A. Paoli, Paulo Freire e Gustavo
Gutiérrez). Só em 1986, porém, quando da segunda edição da obra, referidas
notas conclusivas seriam ampliadas para quatro páginas, dividindo a temática a
partir do item geral “A justiça, o juiz e a libertação do oprimido” em três seções:
“A justiça como instrumento de libertação” (repetindo a subtitulação da
primeira edição); “A salvação do direito pela arte do juiz”; e “Em busca de um
direito de libertação”.
No entanto, parece ser Roberto Lyra Filho aquele que no
Brasil introduziu a idéia de se poder construir um "direito de
libertação" com mais fôlego. Até por ter se tratado de teórico do direito
de ampla formação, gabaritado não apenas para as questões técnico-jurídicas,
mas também para a reflexão filosófica, sociológica, antropológica e teológica,
deu centralidade para a questão da “libertação” em suas análises. Ainda que
seja o caso de verificar com mais cuidado se não há livros anteriores, em 1980
aparece o tema na obra "O direito que se ensina errado" (ver aqui no blogue vários livros disponíveis na Biblioteca Roberto Lyra Filho).
Na verdade, encontramos uma primeira e rara referência já
em 1974, na revista significativamente denominada “Liberación y derecho”,
publicada na Argentina pela então Universidade Nacional e Popular de Buenos
Aires. No primeiro volume – e único, até onde pudemos apurar –, além do título
do periódico, há pelo menos um artigo, intitulado “Historia del derecho y liberación
nacional”, de Eduardo Luis Duhalde e Rodolfo Ortega Peña, que faz menção explícita à
categoria "libertação". Também, a expressão já aparecia (e junto dela citações de
Dussel e Paulo Freire) no livro de 1977 do jurista católico mexicano Jesús
Antonio de la Torre Rangel – "Hacia una organización jurídica del estado,
solidaria y liberadora". Em 1983 ele seria o primeiro a sistematizar uma
teoria jurídica na perspectiva da libertação com o livro, lançado em 1984,
"El derecho como arma de liberación en América Latina", prefaciado por Arturo Paoli.
A questão da temática da libertação no Brasil só vai ser
sistematizada de fato (ou seja, um estudo inteiro baseado nesta perspectiva)
com a dissertação de mestrado de Celso Luiz Ludwig, “A alternatividade jurídica
na perspectiva da libertação: uma leitura a partir da filosofia de Enrique
Dussel". Escrita entre 1988 e 1993, e defendida na Universidade Federal do
Paraná, esta dissertação viria a se tornar o livro "Para uma filosofia
jurídica da libertação", lançado em 2006.
Entre 1988 e 1993, porém, surgem outros estudos que
recepcionam Dussel e/ou a perspectiva de libertação para o direito no Brasil. O
próprio Celso Ludwig teria proferido palestra sobre esta temática já em 1984
(na Cúria Metropolitana de Curitiba), mas também em 1988 (no Instituto Vicentinos) e
1989 (na PUC/PR). Outro que lança estudos com esta base é Antonio Carlos
Wolkmer (por exemplo, o artigo de 1991, "Pluralismo jurídico, movimientos sociales y práctivas alternativas" citando Dussel e Zea;
depois, sua tese de doutorado, terminada em 1992, "Pluralismo
jurídico" que já abordava a filosofia de Dussel). Há alguns pontos fora da
curva, que mesmo sem a base da filosofia da libertação falam na relação entre
direito e libertação. Cito 3 exemplos: a) o livro de Aloysio Ferraz Pereira,
"Estado e direito na perspectiva da libertação: uma crítica segundo Martin
Heidegger", de 1980, que faz referência a Dussel; b) artigo "O
advogado e o compromisso político da libertação", lançado em 1985 pela
desembargadora Shelma Lombardi de Kato na Revista dos Tribunais (em 1989, o
artigo foi relançado no livro organizado por José Eduardo Faria, "Direito
e justiça: a função social do judiciário"); e c) e o artigo de Jaime
Yovanovic Prieto que se chamou "O direito alternativo para a
libertação" lançado na Revista de Direito Alternativo, em 1993.
Quanto à questão
do direito alternativo, há aí uma grande controvérsia sobre como ele teria surgido. De
fato, aparece no debate europeu (em especial, na Itália, na França, na Espanha e,
em alguma medida, em Portugal), estreitamente vinculado à perspectiva marxista.
Não saberia dizer onde exatamente se usa pela primeira vez a expressão, mas é
certo que ocorre na literatura jurídica da década de 1970. Segundo uma
interpretação (em clássico texto crítico de Miguel Pressbuger, chamado "Direito, a alternativa"),
o termo “uso alternativo do direito” (que é diferente de “direito alternativo”
e tem conseqüências igualmente diferentes quanto a sua aplicação) aparece pela
primeira vez na Itália, quando a magistratura italiana busca vincular suas
decisões às classes oprimidas, contra o legado fascista do direito por aquelas
bandas. E a partir dos movimentos jurídicos alternativos europeus é que se
espalharia a noção de direito alternativo para a América Latina, lugar onde é
feito um balanço crítico desta influência e se cria a sistematização (consolidada,
talvez, pelo mexicano Óscar Correas) que divide as correntes críticas do
direito em: a) uso alternativo do direito (pela magistratura);
positivismo/positividade/jusnaturalismo de combate (pelos advogados); e c)
direito alternativo/pluralismo jurídico/direito achado na rua/direito
insurgente – todos mais ou menos equivalentes (pelos movimentos sociais).
É importante
dizer que, no Brasil, o termo “direito alternativo” foi amplamente recepcionado
após o grupo de juízes gaúchos ganhar fama no artigo “Juízes gaúchos colocam
direito acima da lei” do Jornal da Tarde, em 1990, de Luiz Maklouf e, em 1991,
quando um grupo de juristas, provocados pelo texto “jornalístico”, resolvem
organizar o I Encontro Internacional de Direito Alternativo, em Florianópolis.
Como resultado, foi publicado o livro organizado por Edmundo Lima Arruda Jr,
“Lições de direito alternativo 1” ,
no mesmo ano de 1991. A
partir daí, está criado o Movimento de Direito Alternativo – MDA (ver
“Introdução ao direito alternativo brasileiro”, livro resultado da tese de
doutorado defendida na Espanha, de orientação alternativista, pelo
desembargador catarinense Lédio Rosa de Andrade, de 1995).
Antes, porém, já
havia aparecido no Brasil o livro “Direito alternativo do trabalho”, de Carlos
Artur Paulon, em 1984 (foi o mais antigo a que tive conhecimento).
Provavelmente, o título se deve pela influência das traduções dos livros dos
alternativistas e críticos do direito, como Michel Miaille, Bernard Edelman,
Boaventura de Sousa Santos, dentre outros, bem como pela divulgação de várias
obras em perspectiva crítica pelo grupo de Lyra Filho, de Brasília (a Nova
Escola Jurídica-NAIR, da qual fizeram parte já em fins da década de 1970, Tarso
Genro, Roberto Aguiar e José Geraldo de Souza Junior), assim como pela
pós-graduação em direito de Santa Catarina, com as figuras de Luis Alberto
Warat e Luiz Fernando Coelho, sendo que este último foi professor também em
Curitiba (na década de 1980, Brasília e Florianópolis foram os principais
centros difusores de teoria crítica do direito no Brasil).
Posteriormente a
1993, acumulamos vários estudos que se referenciam na proposta filosófica
latino-americana da libertação para empreender uma análise crítica do direito,
sendo que, hoje, seguindo a senda encampada por Enrique Dussel, o mais
propalado dos autores desta corrente teórica, é comum encontrarmos, junto à
filosofia da libertação, a fundamentação da crítica à colonialidade do poder e
do saber.
Apesar de toda
esta história, ainda é razoável questionarmo-nos sobre a possibilidade
estratégica da construção de um “direito de libertação”. Ainda que não devamos
afastar a sua possibilidade tática, quiçá seja do encontro entre a filosofia da
libertação e o materialismo histórico que possamos extrair uma resposta mais
concludente.