quinta-feira, 30 de junho de 2011

Aborto: do "pluralismo jurídico" à efetivação do direito à autonomia

A compreensão de que a prática do aborto é situação típica no Brasil há tempos não é novidade. Mais do que dizer “a prática do aborto”, deve-se enfatizar que é o aborto clandestino, feito em precárias condições de higiene, de recursos materiais e de capacitação médica, o que detêm a hegemonia no cenário nacional, e a grande “invisibilidade”. De acordo com o Conselho Federal de Medicina do Brasil, "73% das mulheres pobres que habitam as áreas rurais e que se submetem ao aborto o fazem sem a menor condição técnica e de higiene. Das mulheres pobres das áreas urbanas, 57% das mulheres se submetem a abortos em melhores (?) condições, mas com total carência de higiene ou assepsia. Por outro lado, 70% das mulheres urbanas com rendas superiores que o praticam, contam com assistência médica.”

Primeira conclusão: qualquer dado ou quantificação referente ao assunto corre o sério risco de presumir por baixo uma proporção que pode ser muito maior, por melhor e mais qualificada que seja a forma de pesquisa, devido a dificuldade de computação estatística e de obtenção de fontes.

Segunda conclusão: o aborto ilegal é prática generalizada entre as camadas sociais, mas o aborto ilegal sem as mínimas condições técnicas e sanitárias predomina nas classes mais pobres, sendo, assim, fenômeno da desigualdade social, ou melhor, das hierarquias do capitalismo.

Terceira conclusão: há alta taxa de óbitos maternos em decorrência das precárias condições nas quais são realizadas a maioria dos procedimentos de aborto. Para Simoneti, “estima-se que 12% dos casos de mortalidade materna no Brasil sejam conseqüência do aborto clandestino” . Outro dado revela “que o aborto é responsável por aproximadamente 10% das mortes maternas de causa obstétrica direta” no Brasil.

De todo o exposto, parece-nos que o cerne da questão radica na percepção de que “a contribuição do aborto no obituário materno parece estar muito mais relacionada não à sua forma de início, se espontâneo ou provocado, mas às condições em que é atendido [pois] o risco de morte ou de lesões permanentes em conseqüência de um aborto clandestino praticado no Brasil depende, em última instância, não só da clandestinidade em si, mas do poder aquisitivo da mulher” .

Ou seja: a realidade brasileira deixa transparecer certa popularização da prática do aborto nas mais várias camadas sociais, no entanto, esta popularização é seguida de perto pela precariedade setorial da prática do aborto, no sentido de que é a grande parcela feminina pobre da periferia urbana e rural que arca com negação de atendimento público devido a criminalização do aborto.

Por essa ótica o aborto seria questão de saúde pública e o Estado tem o dever de repensar suas formas de lidar com o assunto porque o viés da repressão penal somente o desresponsabiliza (parcialmente) de arcar com as situações concretas. Mas o problema só ganha contornos de saúde pública porque se fundamenta no preceito do direito à autonomia de cada mulher em decidir se quer ou não gestar aquele ser, algo que está diretamente relacionado a garantia da liberdade do exercício do corpo pela mulher e da possibilidade de planejar suas relações e constituições familiares de modo a ter respeitada a decisão, não por dever de respeito, mas por questão de direito, o que leva pauta da luta pela legalização do aborto.

Em busca de legalização do aborto
A percepção da contradição entre lei e sociedade é tão gritante que podemos constatar a existência de um pluralismo jurídico do direito ao aborto que nasce da compreensão de que a ilegalidade perante os dispositivos oficiais de regulação/coerção não tolhe a prática do aborto, mas exerce uma forte influência na relação entre as condições em que o aborto é executado versus o status sócio-econômico da mulher.



Usamos aqui o conceito de legitimação formulado por Boaventura de Sousa Santos, ou seja, a legitimação como “aceitação consensual de sua existência”, para logo em seguida formular a proposição de pressuposto que alerta para o caráter contra-utilitário socialmente (leia-se: empiricamente) difundido da criminalização do aborto, visto que serve muito mais para definir as condições de como será feito, do que propriamente para coibi-lo, é dizer: sua função, na prática, atenta contra a autonomia e as condições da vida das mulheres (ou seja, das inúmeras gestantes que procuram diariamente as diversas “clinicas” clandestinas) ao invés de protegê-las.

A doutora Martha C. Ramirez-Galvez expõe importante dado que não pode passar despercebido: “sobre a aplicação das penas previstas pelo sistema judiciário, Ardaillon encontrou que em 87% dos processos penais revisitados por ela não foi possível a configuração do delito, sendo que 53% dos processos são inquéritos arquivados, o que indica que mais da metade das suspeitas de aborto não conseguem ser provadas. Ela considera que o aborto é ‘ ...um crime raramente punido quando as acusadas são gestantes, levemente penalizado no caso das ‘parteiras’, ‘enfermeiras’ e outros agentes e, surpreendentemente, [grifos nossos]” . Ora, se mesmo na esfera jurídico-policial que deveria "zelar" pelo cumprimento da tipificação criminal percebe-se imenso desuso da mesma, algo mesmo como desinteresse processualístico, há de se refletir, agora com imenso cabedal argumentativo, se ainda há razão sócio-jurídica para a manutenção da tipificação atual do aborto no Brasil?

Como resposta a tal pergunta, há pelo menos 16 anos alguns parlamentares vêm tentando introduzir o sistema de prazo na legislação sobre aborto – vide neste quesito a movimentação feita pelo Fórum dos Conselhos de Mulheres dos Estados que em 1990 pleiteou no Congresso Nacional pela punição de aborto consentido se praticado depois dos 90 dias, e pelo Projeto de Lei nº 3.609/93 apresentado pelo então deputado federal José Genoíno que propunha a liberdade de interrupção da gravidez até os 90 dias da gestação.

O que está por trás da adoção do sistema de prazo é a própria concepção do que seja e, principalmente, de quando começa a vida humana. Defini-se por ser a partir do 3º mês (noventa dias) de gravidez que se inicia a fase do desenvolvimento embrionário que assinala a origem e incremento da organogênese ou formação dos órgãos humanos, antes disso tudo é definido como grande amontoado de células em contínuo processo de multiplicação. Sendo baseado em estudos biológicos, sociológicos, sanitaristas e de política criminal, o sistema de prazo busca permitir a prática abortiva até o 3º mês ou 90 dias de gravidez.

Além disto, sua hibridação com o sistema de indicações significa autorizar que a gestante possa recorrer ao procedimento de abortagem para todos os casos (exceto ao expresso no art.125 do Código Penal Brasileiro, porque preza-se pela autonomia da gestante e não contra ela) e, após os 3 meses ou 90 dias, enquadrar-se as opções de aborto legal por indicação para os casos de risco de vida, estupro, e aborto eugênico – quando o feto carregar graves deformidades físicas ou psicológicas.

Evidentemente, a questão é carregada de concepções morais, religiosas, políticas e jurídicas que instituem verdadeiro campo minado, mas os argumentos colocados no textos se baseiam em concepções feministas e dos direitos humanos que traduzem o legado da laicidade do Estado e da autonomia das mulheres como questões que implicam no oferecimento de serviços de saúde pública adequados para todas as mulheres que queiram interromper a gravidez no prazo de 3 mês/90 dias, independente do motivo que tenham.

É, assim, a tentativa de sairmos do "pluralismo jurídico" do aborto clandestino, que agride e mata mulheres, para a concretização do direito à autonomia e à saúde pública, enquanto direitos humanos que responsabilizam o Estado e melhoram as condições de vida das mulheres.

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