sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Advocacia delirante. Parte II - Preciso me encontrar.




"José Ricardo Ahumada Vásquez", 1973 (1)
Uma gravata que o enforcava. No caminho para o escritório, via um povo que se espremia, um povo que o ônibus enlatava. Rir pra não chorar. Queria assistir ao sol nascer. Cantarolava, silenciosamente, as músicas que subitamente lhe remetiam memórias de sábados passados. Mais ainda, por dentro do nó que lhe atava, ria para não chorar. Resistiria às vaidades que não lhe cabiam como forma? Ou, se já tinha o peso que lhe feria as costas, teria também atado, além do pescoço, as cínicas mãos? Ria para não chorar. Queria nascer, queria viver, ver as águas dos rios correr. Desataria, em um golpe presto, o nó que lhe enforcava, sairia por aí a procurar, desenlatar-se, transformar o velho no novo, assistir ao sol nascer e... Mas com qual distância entre intenção em gesto o faria? Levava as mãos distantes de seu peito. Ria. Ria para não chorar. Queria sair por aí a procurar. Queria sair, sem nenhuma regra ter, sem obedecer, sem reverenciar. Era a única forma que podia ser norma. Era sempre desobedecer. Era nunca reverenciar. Mas precisaria, antes, ir por aí, andar. Sem se encontrar, era um advogado, era uma gravata, era uma lata, era... era o riso para não chorar..




Perguntavam-lhe por que ria… Cantarolava em resposta. Rir para não chorar.  Era o que lhe sobrava, o que ninguém lhe tirava. Era sua identidade e não poderia ser negada, nem mesmo por seu traje de gente séria e comportada. Seriedade. Esse era seu adjetivo. Negação, sua subjetividade. Ainda lhe sobrava o pensamento, e esse o levava a pensar na própria vida, e na daqueles a quem via, através dos vidros embaçados, no ponto de ônibus, aguardando a próxima condução que os levariam aos seus postos de trabalhos.Trabalhadores e trabalhadoras. Adjetivados novamente. Objetivados em alguma forma, em alguma norma, ainda que não cumprida, ainda que afrouxada, ainda que promessa vazia. Percebeu que havia chegado ao escritório. Deixara o riso, apertou o nó da gravata e nele reteve sua utopia. Seria essa a única maneira de viver? Prazos. Como seria o mundo em seu reverso? Protocolo. Qual seria o avesso deste mundo ao revés?
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(1) Obra do pintor José Balmes, em memória do trabalhador José Ricardo Ahumada Vazquez. Outra homenagem lhe foi feita pelo cantor  chileno Victor Jara na canção "Cuando voy al trabajo".

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Direito, delírio, experiências e coisas reais
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