terça-feira, 10 de março de 2015

Mas a terra dada não se abre a boca?


Severino, retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, severina
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.

Fala do Mestre Carpina, em
João Cabral de Mello Neto,
Morte e Vida Severina.

A grandeza de João Cabral de Mello Neto talvez esteja em traduzir a angústia popular na mais rude e bela poesia nacional conhecida. Verte-se a vida em versos, em uma narrativa seca, que vai do sofrimento agreste aos dilemas existenciais humanos. Nesse sentido, uma das partes de sua obra mais célebres conta o enterro de um trabalhador de eito, no qual se ouve o que dele dizem os amigos presentes no cemitério. Essa história, que integra a obra Morte e Vida Severina, foi musicada por Chico Buarque em 1966, ganhando mais notoriedade ainda sob o título Funeral de um Lavrador.


A terra

Esse é um tema com o qual aprendemos a lidar nas atividades extensionistas de nossa Assessoria Jurídica Popular. A começar pelos primeiros contatos com a questão agrária brasileira, logo se apreende uma conjuntura formada pela perpetuação dos privilégios da elite latifundiária às custas da sobre-exploração dos trabalhadores rurais. Uma de nossas primeiras lições foi aprender a caminhar junto com os movimentos agrários pela melhor distribuição da terra.

 Edvard Munch, Entardecer
Mas eis que voltamos ao meio urbano. Aqui aprendemos nova lição: a história da terra, contada em Morte e Vida Severina, também se realiza nas cidades. Caminhamos pelas “invasões” urbanas. Logo passamos a chamá-las, junto com os moradores, de ocupações. E, assim como no meio rural, ao pisar nelas pisamos sobre um paradoxo. Da mesma terra que nos abriga e alimenta, nasce a mais dolorosa angústia humana: não existe lugar para todos, nem no campo, nem na cidade.

Ocupação 
Essa é uma ilusão que muitos se resignam a aceitar. Outros, porém, se obstinam em lutar pela verdade, pelo fim dos privilégios de alguns, pelo fim dessa covardia ou, simplesmente, por um lugar para viver. Lutam por algo que poderia se chamar direito à moradia (aquele mesmo, escondido no art. 6º da Constituição Federal, teimando em ineficácia?). Entre as opções por lutar ou não lutar, encrosta-se o sentimento de angústia em todos que conhecem esse desespero. Mesmo nós, estudantes extensionistas, perdemos noites rolando em nossas camas inconformados com a falta de moradia digna para todos. A realidade, entretanto, é muito mais dura do que nossa inquietude bem abrigada. A realidade é formada por casebres precários, construídos à base de lona e madeirite, por inundações, doenças, violência, mortes.


A realidade

A realidade. Na condição de estudantes de direito, não nos privamos de querer conhecê-la em seu mais doloroso íntimo real. E não é outra coisa que a participação do LUTAS vem nos proporcionando. O relato pessoal que trazemos neste texto, e que norteia toda a reflexão proposta, foi marcante nesse sentido. Decorre de uma das atividades extensionistas ocorridas em fevereiro deste ano.

Acompanhamos há cerca de sete meses uma ocupação urbana específica na cidade de Londrina/PR, colocada em risco pela existência de um processo judicial envolvendo a posse do imóvel ocupado. Trata-se de um grupo de cerca de trinta famílias residentes em terreno particular de dois mil metros quadrados; famílias essas que, apesar das singulares histórias de vida que possuem, são solidárias da mesma desventura: “ocupar, ocupar, ocupar, até finalmente ocupar um pedaço de terra debaixo do chão, que será meu”.

As aspas retomam a lembrança dessa frase, agora escrita, outrora, palavra dita.

Era uma pequena sala.  Estávamos nos momentos finais de uma oficina proposta pelo LUTAS aos moradores da ocupação, encontro cujo intuito era discutir os critérios de seleção para ingresso em projetos municipais de habitação popular. A reunião pautava-se, no fundo, pela possibilidade iminente de desocupação do terreno, o que desde logo nos colocava na condição de Mestre Carpina frente à angústia severina, pois também não sabíamos bem a resposta para a pergunta que se fazia.


Encerrando o círculo de conversa, sem saber bem onde havíamos chegado, os ocupantes presentes, já descontraídos, falavam com indecifráveis sorrisos sobre suas histórias particulares de luta por moradia. Nesse derradeiro diálogo, cada um deles nos contava onde poderia se abrigar caso houvesse futura ordem judicial de reintegração de posse. Eis que, finda uma longa narrativa emocionada, uma moradora respira fundo e, pausadamente, anuncia ela própria a sua cova medida: “Ocupar, ocupar, ocupar, até finalmente ocupar um pedaço de terra debaixo do chão, que será meu”. Como que se todos nos olhássemos através de um cômodo sem circunferência, cujo centro, porém, ocupasse todos os lugares, sentimos o calor de um longo momento de silêncio,  sinestésicos e herméticos em nós mesmos, lacrados nessa sombria Esfera de Pascal.

O funeral do trabalhador de eito, obra de João Cabral de Mello Neto, era então aquela própria sala. O defunto, que vivo queria ver a terra dividida, renascia para nos contar seu próprio fim. Levantado de uma cova grande para sua carne pouca, ora vivo, ainda severino, diria por fim antes de retornar ao seu pedaço de chão: “Mas a terra dada não se abre a boca”.




A ingenuidade

Há um grande abismo entre as diferentes realidades que se chocam a partir das vivências proporcionadas pela assessoria jurídica popular especialmente no âmbito daquelas que, tal qual o LUTAS, se vinculam a instituições universitárias. Na condição de estudantes, saímos às ruas pelas primeiras experiências extensionistas, inevitavelmente despreparados, com um involuntário e verdadeiro frio na barriga. Tiramos os pés dos corredores da faculdade e das classes e, quando pisamos na terra batida, temos já a suposta certeza de que alguém nos fará perguntas sobre alguma lei, sobre um possível processo judicial ou, ainda, sobre a legalidade de algum ato que sofreram de uma autoridade que acreditam ser, da mesma maneira, autoritário.

Eis que somos fulminados: E aí, “doutor/doutora”, o que podemos fazer?

A educação popular inerente à assessoria jurídica nos orienta, enquanto método, a identificar as falas significativas logo nos primeiros contatos com a comunidade. Tarefa ingrata! Como identificar, a partir de pequenas falas, toda a história de vida que cada pessoa carrega? E, além disso, a partir delas orientar nossa atuação? Ingênuos aqueles que, entre teoria e prática, pensaram que seria tão simples!

Aquele mesmo despreparo, que carregamos para fora da universidade conosco, nos leva a crer que as respostas para as perguntas da comunidade estariam nos manuais e cursos esquematizados que acostumamos a ler. Ingênuos, nós. Eis que o encontro com o outro nos revela que as perguntas possuem um tanto da mesma angústia severina, sem resposta, pois igualmente não há pergunta exata, senão que um grito insurgente e, sobretudo, verdadeiro.


A angústia

A experiência sumariamente narrada neste texto representou a nós, pessoalmente, não apenas momento de intensa emoção, mas também imensurável amadurecimento prático. Como um giro de percepção, a nossa situação no mundo passa a ser de um repetitivo e inesgotável Funeral do Lavrador: vivemos permeados pelas histórias de quem não tem um pedaço de terra para morar, senão defuntos parcos a ocupá-la a palmos medida. A angústia, como sentimento vivido, punge.

Diante da luta pela moradia sob a sociabilidade capitalista, essa angústia individual, reflexo da própria consciência de existir e de morrer, torna-se uma angústia compartilhada, igualmente pungente, mas então de forma coletiva.

Diria Sartre: “é na angústia que o homem toma consciência da liberdade, ou, se se prefere, a angústia é o modo de ser da liberdade como consciência de ser; é na angústia que a liberdade está em seu ser colocando-se a si mesma em questão” (O Ser e o Nada). Se, portanto, é do sentimento de angústia que podemos conhecer a nossa própria liberdade, eis que esse seria um passo dado em direção à conscientização coletiva da necessidade de lutar.

Apenas a começar pela luta por moradia que de maneira alguma se circunscreve à busca pela terra dada. Negando essa cova rasa, à qual não se abre a boca, novamente nos aparece a pergunta severina: como defender a vida? Feitos então Mestre Carpina, não sabendo as respostas às perguntas vividas, deixamos a ela novamente a resposta, à própria vida, “vê-la desfiar seu fio, que também se chama vida, ver a fábrica que ela mesma, teimosamente, se fabrica”.

Das primeiras pisadas em solo ocupado, da negação da vida à sua resposta viva, esse movimento reflexivo inevitavelmente acaba por ser vivenciado em uma assessoria jurídica popular engajada. A ingenuidade, que também faz parte do processo, amadurece-se em perguntas severinas. E essas, da realidade à angústia, realimentam-se em forma de lutas e gritos insurgentes, reivindicando a cada instante a sua mesma afirmação vivida, pois não há, de fato, melhor resposta que o espetáculo da vida.

De choque em choque, pisando na terra pela qual se luta, aos poucos compreendemos melhor do que se trata essa angústia coletiva. E vamos procurando transformá-la em querer-mais, em sonhos e em lutas sociais. Seja esse um desafio invencível, fazemos e faremos parte dessa luta, hoje como estudantes, amanhã de alguma forma que seja.

Por Guilherme Cavicchioli Uchimura e Rodolfo Carvalho Neves dos Santos

Assessores jurídicos da AJUP LUTAS Londrina.

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