– Severino, retirante,
deixe
agora que lhe diga:
eu não sei
bem a resposta
da
pergunta que fazia,
se não
vale mais saltar
fora da
ponte e da vida;
nem
conheço essa resposta,
se quer
mesmo que lhe diga
é difícil
defender,
só com
palavras, a vida,
ainda mais
quando ela é
esta que
vê, severina
mas se
responder não pude
à pergunta
que fazia,
com sua
presença viva.
E não há
melhor resposta
que o
espetáculo da vida:
vê-la
desfiar seu fio,
que também
se chama vida,
ver a
fábrica que ela mesma,
teimosamente,
se fabrica,
vê-la
brotar como há pouco
em nova
vida explodida;
mesmo
quando é assim pequena
a
explosão, como a ocorrida;
como a de
há pouco, franzina;
mesmo
quando é a explosão
de uma
vida severina.
Fala do Mestre
Carpina, em
João
Cabral de Mello Neto,
Morte e
Vida Severina.
A grandeza de João Cabral de
Mello Neto talvez esteja em traduzir a angústia popular na mais rude e bela
poesia nacional conhecida. Verte-se a vida em versos, em uma narrativa seca,
que vai do sofrimento agreste aos dilemas existenciais humanos. Nesse sentido,
uma das partes de sua obra mais célebres conta o enterro de um trabalhador
de eito, no qual se ouve o que dele dizem os amigos presentes no cemitério.
Essa história, que integra a obra Morte e Vida Severina, foi musicada
por Chico Buarque em 1966, ganhando mais notoriedade ainda sob o título Funeral
de um Lavrador.
A terra
Esse é um tema com o qual
aprendemos a lidar nas atividades extensionistas de nossa Assessoria Jurídica
Popular. A começar pelos primeiros contatos com a questão agrária brasileira,
logo se apreende uma conjuntura formada pela perpetuação dos privilégios da
elite latifundiária às custas da sobre-exploração dos trabalhadores rurais. Uma
de nossas primeiras lições foi aprender a caminhar junto com os movimentos
agrários pela melhor distribuição da terra.
Mas eis que voltamos ao meio
urbano. Aqui aprendemos nova lição: a história da terra, contada em Morte e
Vida Severina, também se realiza nas cidades. Caminhamos pelas “invasões”
urbanas. Logo passamos a chamá-las, junto com os moradores, de ocupações.
E, assim como no meio rural, ao pisar nelas pisamos sobre um paradoxo. Da mesma
terra que nos abriga e alimenta, nasce a mais dolorosa angústia humana: não
existe lugar para todos, nem no campo, nem na cidade.
Essa é uma ilusão que muitos se resignam a aceitar. Outros, porém, se obstinam em lutar pela verdade, pelo fim dos privilégios de alguns, pelo fim dessa covardia ou, simplesmente, por um lugar para viver. Lutam por algo que poderia se chamar direito à moradia (aquele mesmo, escondido no art. 6º da Constituição Federal, teimando em ineficácia?). Entre as opções por lutar ou não lutar, encrosta-se o sentimento de angústia em todos que conhecem esse desespero. Mesmo nós, estudantes extensionistas, perdemos noites rolando em nossas camas inconformados com a falta de moradia digna para todos. A realidade, entretanto, é muito mais dura do que nossa inquietude bem abrigada. A realidade é formada por casebres precários, construídos à base de lona e madeirite, por inundações, doenças, violência, mortes.
A realidade
A realidade. Na condição de
estudantes de direito, não nos privamos de querer conhecê-la em seu mais doloroso
íntimo real. E não é outra coisa que a participação do LUTAS vem nos
proporcionando. O relato pessoal que trazemos neste texto, e que norteia toda a
reflexão proposta, foi marcante nesse sentido. Decorre de uma das atividades
extensionistas ocorridas em fevereiro deste ano.
Acompanhamos há cerca de sete
meses uma ocupação urbana específica na cidade de Londrina/PR, colocada em
risco pela existência de um processo judicial envolvendo a posse do imóvel
ocupado. Trata-se de um grupo de cerca de trinta famílias residentes em terreno
particular de dois mil metros quadrados; famílias essas que, apesar das
singulares histórias de vida que possuem, são solidárias da mesma desventura: “ocupar,
ocupar, ocupar, até finalmente ocupar um pedaço de terra debaixo do chão, que
será meu”.
As aspas retomam a lembrança
dessa frase, agora escrita, outrora, palavra dita.
Era uma pequena sala.
Estávamos nos momentos finais de uma oficina proposta pelo LUTAS aos
moradores da ocupação, encontro cujo intuito era discutir os critérios de
seleção para ingresso em projetos municipais de habitação popular. A reunião
pautava-se, no fundo, pela possibilidade iminente de desocupação do terreno, o
que desde logo nos colocava na condição de Mestre Carpina frente à angústia
severina, pois também não sabíamos bem a resposta para a pergunta que se fazia.
Encerrando o círculo de conversa,
sem saber bem onde havíamos chegado, os ocupantes presentes, já descontraídos,
falavam com indecifráveis sorrisos sobre suas histórias particulares de luta
por moradia. Nesse derradeiro diálogo, cada um deles nos contava onde poderia
se abrigar caso houvesse futura ordem judicial de reintegração de posse. Eis
que, finda uma longa narrativa emocionada, uma moradora respira fundo e,
pausadamente, anuncia ela própria a sua cova medida: “Ocupar, ocupar,
ocupar, até finalmente ocupar um pedaço de terra debaixo do chão, que será
meu”. Como que se todos nos olhássemos através de um cômodo sem
circunferência, cujo centro, porém, ocupasse todos os lugares, sentimos o calor
de um longo momento de silêncio, sinestésicos e herméticos em nós mesmos,
lacrados nessa sombria Esfera de Pascal.
O funeral do trabalhador de eito,
obra de João Cabral de Mello Neto, era então aquela própria sala. O defunto,
que vivo queria ver a terra dividida, renascia para nos contar seu próprio fim.
Levantado de uma cova grande para sua carne pouca, ora vivo, ainda severino,
diria por fim antes de retornar ao seu pedaço de chão: “Mas a terra dada não
se abre a boca”.
A ingenuidade
Há um grande abismo entre as
diferentes realidades que se chocam a partir das vivências proporcionadas pela
assessoria jurídica popular – especialmente no âmbito daquelas
que, tal qual o LUTAS, se vinculam a instituições universitárias. Na condição
de estudantes, saímos às ruas pelas primeiras experiências extensionistas,
inevitavelmente despreparados, com um involuntário e verdadeiro frio na
barriga. Tiramos os pés dos corredores da faculdade e das classes e, quando
pisamos na terra batida, temos já a suposta certeza de que alguém nos fará
perguntas sobre alguma lei, sobre um possível processo judicial ou, ainda,
sobre a legalidade de algum ato que sofreram de uma autoridade que acreditam
ser, da mesma maneira, autoritário.
Eis que somos fulminados: – E aí, “doutor/doutora”, o que
podemos fazer?
A educação popular inerente à
assessoria jurídica nos orienta, enquanto método, a identificar as falas
significativas logo nos primeiros contatos com a comunidade. Tarefa ingrata!
Como identificar, a partir de pequenas falas, toda a história de vida que cada
pessoa carrega? E, além disso, a partir delas orientar nossa atuação? Ingênuos
aqueles que, entre teoria e prática, pensaram que seria tão simples!
Aquele mesmo despreparo, que
carregamos para fora da universidade conosco, nos leva a crer que as respostas
para as perguntas da comunidade estariam nos manuais e cursos esquematizados
que acostumamos a ler. Ingênuos, nós. Eis que o encontro com o outro nos revela
que as perguntas possuem um tanto da mesma angústia severina, sem resposta,
pois igualmente não há pergunta exata, senão que um grito insurgente e,
sobretudo, verdadeiro.
A angústia
Diante da luta pela moradia sob a
sociabilidade capitalista, essa angústia individual, reflexo da própria
consciência de existir e de morrer, torna-se uma angústia compartilhada,
igualmente pungente, mas então de forma coletiva.
Diria Sartre: “é na angústia que
o homem toma consciência da liberdade, ou, se se prefere, a angústia é o modo
de ser da liberdade como consciência de ser; é na angústia que a liberdade está
em seu ser colocando-se a si mesma em questão” (O Ser e o Nada). Se,
portanto, é do sentimento de angústia que podemos conhecer a nossa própria
liberdade, eis que esse seria um passo dado em direção à conscientização
coletiva da necessidade de lutar.
Apenas a começar pela luta por
moradia – que de maneira alguma se
circunscreve à busca pela terra dada. Negando essa cova rasa, à qual não se
abre a boca, novamente nos aparece a pergunta severina: como defender a vida?
Feitos então Mestre Carpina, não sabendo as respostas às perguntas vividas,
deixamos a ela novamente a resposta, à própria vida, “vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida, ver a fábrica que ela mesma, teimosamente, se
fabrica”.
Das primeiras pisadas em solo
ocupado, da negação da vida à sua resposta viva, esse movimento reflexivo
inevitavelmente acaba por ser vivenciado em uma assessoria jurídica popular
engajada. A ingenuidade, que também faz parte do processo, amadurece-se em
perguntas severinas. E essas, da realidade à angústia, realimentam-se em forma
de lutas e gritos insurgentes, reivindicando a cada instante a sua mesma
afirmação vivida, pois não há, de fato, melhor resposta que o espetáculo da
vida.
De choque em choque, pisando na
terra pela qual se luta, aos poucos compreendemos melhor do que se trata essa
angústia coletiva. E vamos procurando transformá-la em querer-mais, em sonhos e
em lutas sociais. Seja esse um desafio invencível, fazemos e faremos parte
dessa luta, hoje como estudantes, amanhã de alguma forma que seja.
Por Guilherme Cavicchioli Uchimura e Rodolfo Carvalho Neves dos Santos
Assessores jurídicos da AJUP LUTAS Londrina.
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