terça-feira, 24 de março de 2015

O achaque da política burguesa

Ana Lia Almeida
Professora da UFPB




Do alto de sua erudição, Cid Gomes cometeu ontem a descortesia de chamar os deputados federais de “achacadores”. Aquilo só podia mesmo ser um xingamento muito sério, pois a reputação ilibada dos ilustres representantes do povo logo se estribuchou. Corri para o dicionário. Achacador: 1. que achaca. 2. Aquele que achaca outrem, extorquindo-lhe dinheiro. Achacar: 1.Maltratar, molestar. 2. Desgostar, desagradar, aborrecer. 3. Roubar a alguém, intimidando-o. Cid Gomes acusava os parlamentares de ladrões, em português mais simples.

A crise foi desencadeada em fevereiro, durante uma visita do então Ministro da Educação à Universidade Federal do Pará. Lá, Cid Gomes disse aos estudantes que “havia trezentos, quatrocentos achacadores” no Congresso Nacional. Sob pressão, o ministro compareceu ontem à Câmara de Deputados para explicar suas declarações, mas em vez de se desculpar, afirmou novamente o que havia dito. A ofensa dirigia-se à base aliada do Governo, que, segundo o julgamento do ministro, não estava cumprindo o seu papel de apoiar aquilo de que faziam parte. Eram oportunistas. Deveriam “largar o osso”. Os parlamentares se sentiram muito ofendidos; exigiram respeito e também a demissão do ministro. O presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB), chamou o feito à ordem e o ministro acabou indo embora daquele inquestionável recinto democrático.

Saída do Cid Gomes
O desfecho da crise foi a saída de Cid Gomes do Ministério da Educação - a propósito, lugar que ele jamais deveria ter ocupado. No seu histórico de declarações polêmicas, uma das mais lamentáveis foi exatamente contra professores da rede estadual de ensino do Ceará, em 2011. Os professores estavam em greve há quase um mês, reivindicando que o Governo lhes pagasse o piso salarial e respeitasse o Plano de Cargos e Carreira. Cid Gomes, então governador, declarou que “Quem quer dar aula faz isso por gosto, e não pelo salário. Se quer ganhar melhor, pede demissão e vai para o ensino privado" (Fonte: http://veja.abril.com.br/blog). Até a Revista Veja achou injusto, e concordaria com o presidente da Câmara, quando o chamou ontem de “mal-educado” – “o ministro da educação é mal educado!”, retrucou, reconhecendo a ironia, o próprio Cid Gomes.

Legítimo membro dos Ferreira Gomes, Cid nasceu para a política. Segue o mesmo caminho de boa parte da influente família cearense: filho de José Euclides Ferreira Gomes Jr (ex-prefeito de Sobral), irmão de Ivo Gomes (que já foi deputado Estadual e secretário da pasta das Cidades no Ceará) e também de Ciro Gomes (ex-prefeito de Fortaleza, que já foi também deputado estadual e federal, além de Governador do estado do Ceará, Ministro da Fazenda e da Integração Nacional e até candidato à presidência da república, além, é claro, de ex-marido de Patrícia Pillar). Cid Gomes, por sua vez, já foi presidente do diretório acadêmico do curso de engenharia da Universidade Federal do Ceará, deputado estadual por dois mandatos, prefeito de Sobral como seu pai, governador do estado do Ceará como seu irmão e até ontem, ministro da educação. A política é, assim, uma espécie de dom de família, mas não só na de Cid Gomes.

Constituinte exclusiva
Na verdade, a grande maioria dos políticos brasileiros se origina de antigas ou novas oligarquias políticas do país, com estreita ligação com grupos empresariais que lhes financiam as campanhas e depois cobram a parcela que lhes cabe no latifúndio do sistema político brasileiro. A democracia, exercida dessa forma, não passa de uma farsa: em nome do povo, o sistema político representa, de fato, os interesses de poucas famílias e os negócios de seus amigos. Por isso, Cid Gomes não estava de todo errado ontem, ao chamar os representantes democráticos de achacadores – de fato, da forma como a política burguesa funciona, é isso mesmo que eles fazem: um achaque aos direitos do povo brasileiro. O ridículo dos ataques do ex-ministro contra o parlamento é que a condição de achacador, evidentemente, não é própria apenas à bancada de oposição do governo e cabe também a ele mesmo. O achaque, a moléstia, a extorsão, são próprios da democracia burguesa e do sistema político que dela decorre. A solução para o problema é bem mais profunda que o “largar o osso” da oposição, ou a saída de Cid Gomes do governo federal, ou mesmo o impeachment de Dilma. Ela passa por uma profunda reforma no sistema político, feita verdadeiramente pelo povo, por fora dos atuais representantes das oligarquias políticas e do empresariado brasileiro.


Por isso, vários setores das classes populares, apoiados por centenas de organizações, exigem uma Constituinte Exclusiva e Soberana para fazer uma reforma política, e já fizeram até um plebiscito popular para convocá-la, em setembro de 2014, que contou com aproximadamente 8 milhões de votos. Exigimos a realização de um plebiscito oficial, agora, para poder convocar a Constituinte do Sistema Político, com representantes eleitos exclusivamente para isso, para tratar unicamente do tema da reforma política. Lá, discutirão coisas fundamentais como o fim do financiamento privado das campanhas, a maior participação popular nas instituições políticas, as regras das coligações partidárias, a garantia de mais espaço para as mulheres na política, etc. Esta, sim, é uma possibilidade real de superar os achaques da política burguesa.

***

Leia também:
Sobre as manifestações de hoje: a importância dos movimentos sociais enquanto construtores de vocabulário das demandas marginalizadas em meio a esse balaio de gato, de Nayara Barros, 15 mar 2015


Nenhum comentário:

Postar um comentário