No dia dos anos da Insurreição de São José do Queimado, no Espírito Santo, de 1849, divulgamos este texto de Carlos Eduardo Lemos Chaves, advogado da AATR-BA e da RENAP. Ele conclui que o trabalho do advogado no enfrentamento de instituições estatais autoritárias precisa orientar-se pelo apoio político às comunidades quilombolas. Aborda o caso do Quilombo Rio dos Macacos, em Simões Filho, no Estado da Bahia. Trata-se de texto da coluna AJP e Universidade, que reúne os resultados da turma de “Teorias Críticas do Direito e Assessoria Jurídica Popular”, da Especialização em Direitos Sociais do Campo da UFG, na Cidade de Goiás.
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Da resistência à força: a insurgência no conflito entre a Marinha
do Brasil e o Quilombo do Rio dos Macacos
Carlos Eduardo Lemos Chaves
Advogado popular na Bahia
estudante da Turma de Especialização em
Direitos Sociais do Campo - Residência Agrária (UFG)
“Da resistência à força” é o tema central do meu projeto de
pesquisa apresentado no Programa de Pós-Graduação em Direitos Sociais do Campo
– Residência Agrária, da Universidade Federal de Goiás. Merece destaque aqui
por trazer um duplo sentido: seja o da resistência à força bruta empregada pela
Marinha de Guerra do Brasil na gradativa tentativa de total
desterritorialização da Comunidade Quilombola do Rio dos Macacos; seja o da
trajetória da resistência, pura e simples,com o acúmulo de visibilidade e força
política que a comunidade vem adquirindo ao longo dos anos de conflito.
Hoje pode-se considerar, inclusive, as vitórias alcançadas
nesta trajetória de luta, se levarmos em conta os primeiros contatos dos
quilombolas com as entidades de assessoria popular. Isto ocorreu em meados de
2011, quando era iminente a expulsão do seu território tradicional por decisão
do juiz Evandro Reimão dos Reis, da 10ª Vara da Justiça Federal da Bahia.
A comunidade remanescente de quilombo já vinha resistindo às
investidas das forças estatais desde meados dos anos 1950. Neste período, fazendas
de antigas usinas de açúcar, que outrora se valiam da mão-de-obra escrava, em
tempos coloniais, começaram a ser desapropriadas pela União e incorporadas ao
patrimônio da Marinha. A Fazenda Macacos recebeu as paredes da barragem
construída no rio que dá nome à Comunidade, quando doada pela Prefeitura de
Salvador à Marinha pela Lei Municipal n. 492 de 5 de julho de 1954. Neste
período ainda não havia sido criado o município de Simões Filho, que hoje
abriga o quilombo.
Tal doação desconsiderou à época o registro da existência da
comunidade naquele território, contido na própria escritura que a consigna.
Teve início um processo violento de desterritorialização e exploração. No
princípio fora com a construção da barragem, nos anos 1970, com o
estabelecimento da Vila Naval construída para moradia de oficiais. Este
processo culminou na expulsão de diversas famílias, na destruição de áreas de
roças e terreiros de candomblé.
Estas práticas de desagregação socioeconômica e cultural perpetuam-se
até hoje. Com tentativas de destruição de casas, proibição de construções, reformas e do cultivo de
roças.Assim, impede-se o acesso a direitos básicos como água, saneamento,
saúde, luz e educação. Esta realidade remete ao contexto histórico de
“cercamento dos campos” descrito, por exemplo,pelos marxistas. Na medida em que
aparentam um retorno às formas primevas de acumulação do capital. As
estratégias de privação da comunidade dos meios de sobrevivência no território
tradicional, com o argumento de supostos danos ambientais causados pelos
quilombolas em áreas de uso para exercícios táticos pelos oficiais, ocorrem num
contexto tido como mais amplo - de defesa da soberania nacional -, que
culminaria inclusive com a proteção dos campos de petróleo do pré-sal contra
ameaças estrangeiras (!).
Esta semelhança faz-se atual no momento em que forças militares
buscam destruir a existência autônoma do quilombo. Trata-se de uma clara demonstração
do cunho militarista que o atual governo tem fomentado no enfrentamento de
conflitos socioambientais e manifestações políticas no país. Preferem atirar os
quilombolas à “vala comum” das massas exploradas pelo capital, desprovidos do
território que lhes garante seus caracteres tradicionais.
Fonte: Ascom, MPF-PR |
As recentes tentativas de intimidação das lideranças nos
alerta ainda para um poder remanescente das forças armadas no país.Com
instauração de inquéritos militares e prisões violentas e arbitrárias, com base no Código Penal Militar gerado no
período ditatorial. É necessário discutir a legitimidade destas normas e
conceitos face à sua incoerência perante a Constituição promulgada no contexto
de redemocratização do estado brasileiro. A exemplo do que fizeram os juristas
italianos precursores das teorias do direito alternativo nos anos 1960.
O Poder Judiciário vem, até então, incentivando essas
práticas. Opta por uma condução questionável dos processos judiciais movidos
pela Marinha contra os quilombolas. Com desrespeito aos princípios básicos do
processo civil (acesso à justiça, ampla defesa) e uma interpretação restritiva
e ideologicamente conservadora do direito. No sentido oposto da concepção marxista
do direito adotada pela assessoria jurídica popular. Esta contraria as teorias clássicas,
afasta-se da perspectiva lógico-racional que serve bem ao positivismo, para
situá-lo enquanto fenômeno intrínseco às relações sociais.
É necessário despontar a crítica ao direito posto, uma vez
em que se mostra permeado por uma ideologia dominante. Somente uma parcela
privilegiada da população é capacitada para fazer a tradução à sociedade, a
partir dos seus interesses próprios. Enquanto que para a camada não beneficiada
economicamente o direito aparece na sua face excludente e repressora. De forma
que é a força da insurgência desta comunidade negra rural que tem garantido a
permanência na terra. Contra a opressão de viés racista das Forças Armadas e do
Judiciário, fundada em resquícios coloniais. Como as sentenças proferidas desde
agosto de 2012, que ferem o Direito Constitucional, determinando a expulsão dos
quilombolas do seu território tradicional.
Isso leva a refletir sobre a atuação da assessoria popular,
sobretudo no âmbito judicial.Se a luta pela permanência e titulação do
território tem contribuído na esfera da formação e da articulação política. Mesmo
que, até então, não tenha havido êxito no campo judicial. Com as estratégias do
positivismo de combate (para fazer valer os direitos reconhecidos aos
quilombolas) ou do uso alternativo do direito (sobrepondo os princípios
inerentes à dignidade da pessoa humana aos argumentos que prezam pela soberania
nacional).
Portanto, a compreensão da comunidade sobre os limites do
direito posto tem permitido aos quilombolas traçar suas próprias estratégias de
luta pela permanência no território.A arena da luta política se sobrepôs à
disputa no campo do Judiciário.As ações concretas tem mais força que a atuação
judicial, embora esta ainda continue. Assim, no enfrentamento às violações e
negativa de direitos, as estratégias de insurgência extraídas da prática da assessoria/advocacia
popular têm conseguido somar forças com o poder de resistência da comunidade.Para
que a cada ato de repressão das forças institucionais a luta dos quilombolas
avance na conquista das suas pautas, até o definitivo reconhecimento do seu
direito ao território tradicional.
Fonte: Alan Tygel, Vírus Planetário |
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Leia também:
Os quilombos, o Judiciário e a política, 18 dez. 2013
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