sábado, 27 de novembro de 2010

Poesia sobre absurdos "na forma da lei"

Um dia, li num jornal uma notícia absurda: um ribeirinho tinha pescado na época de defeso para alimentar sua esposa que estava grávida, os fiscais do IBAMA o pegaram "no flagra" e ele foi preso, sendo que a esposa, vendo toda a situação, sofreu aborto "espontâneo" do feto. Enfim, dado todo esse enredo de absurso camusiano (ou kafkaniano, como queiram), resolvi pincelar minha crítica na forma de uma poesia, que é a seguinte:

Sobre estados e Leis

Se josé não pescasse
Se maria não roncasse
Se o rio não paralisasse
Se maria não engravidasse
Se o peixe não procriasse
Se o estado não invalidasse
Se josé não se desesperasse
Se o estado os alimentasse
Se a Lei interpretasse
Se o fiscal pensasse
Se o peixe falasse
Se a prisão justificasse
Se josé não chorasse
Se maria não abortasse
E roncasse, e chorasse...
Se a fome não incriminasse
E a pobreza não os rotulasse...

Enfim, se tudo
Não Fosse
Assim.
Então haveria justiça,
Haveriam homens, mulheres
E bebê.

Se o estado fosse Estado
Se a Lei fosse apenas lei
Se o fiscal fosse antes humano
Se josé e maria pudessem ter sido,
Ter vivido, José e Maria,

Então não haveria fome, pobreza
E peixe...
E talvez até um bebê viesse a nascer
E viesse a chorar, roncar, pescar,
Pensar, interpretar, falar... viver
Mas não há...

Da biblioteca "Poesia crítica do direito"

7 comentários:

  1. Que triste, Assis...

    Mais um cruel exemplo de Lei aplicada sem reflexão. No caso do "defeso" há sempre a necessidade de extrema sensibilização dos fiscais para, ao aplicar a letra da Lei ( até onde eu sei, a pesca para alimentação própria e da família é permitida mesmo nesta época), lembrar do tipo de existência humana com que estão lidando( suas práticas tradicionais, sua cultura), o tipo de vida que aquela existência leva, o que ele entende por certo, por errado e por necessário.

    Mas até que isso ocorra, quantas tragédias como essa terão de acontecer?

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  2. Sim, Nayara e Assis, que triste.

    Como Nayara coloca, pesca para alimentação familiar - também até onde sei - é permitida. Mas até onde a prisão do ribeirinho seria apenas uma exceção, algo absurdo, apenas um episódio kafkaniano ou seria cotidiano?

    O ribeirinho, sua companheiro, seu filho são apenas 'peixes pequenos' nesse mar onde a injustiça é Lei.

    lembrei-me de uma música, que não me havia chamado tanta atenção até ler essa postagem. copio os versos que me levaram a fazer a associação:

    'Nós vivemos como peixes
    Com a voz que nós calamos
    Com essa paz que não achamos


    Nós morremos como peixes
    Com amor que não vivemos
    Satisfeitos? mais ou menos

    Todas as iscas que mordemos
    Os anzóis atravessados
    Nossos gritos abafados

    Peixes, pássaros, pessoas
    Nos aquários, nas gaiolas,
    Pelas salas e sacadas
    Afogados no destino
    De morrer como decoração das casas'

    "Peixes" interpretada pela cantora Mariana Aydar (http://www.myspace.com/marianaaydar).

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  3. Acabei lembrando também do poema do Bretch, 'Se os tubarões fossem homens', acho que vale a pena reproduzi-lo nesse espaço:
    ____________

    Se os tubarões fossem homens, eles seriam mais gentís com os peixes pequenos. Se os tubarões fossem homens, eles fariam construir resistentes caixas do mar, para os peixes pequenos com todos os tipos de alimentos dentro, tanto vegetais, quanto animais. Eles cuidariam para que as caixas tivessem água sempre renovada e adotariam todas as providências sanitárias cabíveis se por exemplo um peixinho ferisse a barbatana, imediatamente ele faria uma atadura a fim de que não moressem antes do tempo. Para que os peixinhos não ficassem tristonhos, eles dariam cá e lá uma festa aquática, pois os peixes alegres tem gosto melhor que os tristonhos.

    Naturalmente também haveria escolas nas grandes caixas, nessas aulas os peixinhos aprenderiam como nadar para a guela dos tubarões. Eles aprenderiam, por exemplo a usar a geografia, a fim de encontrar os grandes tubarões, deitados preguiçosamente por aí. Aula principal seria naturalmente a formação moral dos peixinhos. Eles seriam ensinados de que o ato mais grandioso e mais belo é o sacrifício alegre de um peixinho, e que todos eles deveriam acreditar nos tubarões, sobretudo quando esses dizem que velam pelo belo futuro dos peixinhos. Se encucaria nos peixinhos que esse futuro só estaria garantido se aprendessem a obediência. Antes de tudo os peixinhos deveriam guardar-se antes de qualquer inclinação baixa, materialista, egoísta e marxista. E denunciaria imediatamente os tubarões se qualquer deles manifestasse essas inclinações.

    Se os tubarões fossem homens, eles naturalmente fariam guerra entre si a fim de conquistar caixas de peixes e peixinhos estrangeiros.As guerras seriam conduzidas pelos seus próprios peixinhos. Eles ensinariam os peixinhos que, entre os peixinhos e outros tubarões existem gigantescas diferenças. Eles anunciariam que os peixinhos são reconhecidamente mudos e calam nas mais diferentes línguas, sendo assim impossível que entendam um ao outro. Cada peixinho que na guerra matasse alguns peixinhos inimigos da outra língua silenciosos, seria condecorado com uma pequena ordem das algas e receberia o título de herói.

    Se os tubarões fossem homens, haveria entre eles naturalmente também uma arte, haveria belos quadros, nos quais os dentes dos tubarões seriam pintados em vistosas cores e suas guelas seriam representadas como inocentes parques de recreio, nas quais se poderia brincar magnificamente. Os teatros do fundo do mar mostrariam como os valorosos peixinhos nadam entusiasmados para as guelas dos tubarões.A música seria tão bela, tão bela, que os peixinhos sob seus acordes e a orquestra na frente, entrariam em massa para as guelas dos tubarões sonhadores e possuídos pelos mais agradáveis pensamentos. Também haveria uma religião ali.

    Se os tubarões fossem homens, eles ensinariam essa religião. E só na barriga dos tubarões é que começaria verdadeiramente a vida. Ademais, se os tubarões fossem homens, também acabaria a igualdade que hoje existe entre os peixinhos, alguns deles obteriam cargos e seriam postos acima dos outros. Os que fossem um pouquinho maiores poderiam inclusive comer os menores, isso só seria agradável aos tubarões, pois eles mesmos obteriam assim mais constantemente maiores bocados para devorar. E os peixinhos maiores que deteriam os cargos valeriam pela ordem entre os peixinhos para que estes chegassem a ser, professores, oficiais, engenheiros da construção de caixas e assim por diante. Curto e grosso, só então haveria civilização no mar, se os tubarões fossem homens.

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Pois ainda bem que os tubarões não são homens. Já basta nossa "civilização."

    Gostei do texto,Lucas. Uma reflexão assustadora, aliás. Dois excelentes complementos ao poema do Assis ( a música cantada pela Aydar e o texto do b. brecht)...

    Fico pensando no caso que os meios de comunicação vêm anunciando com mais intensidade nos últimos dias...

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  6. Oi Lucas e Nayara,
    Beleza de bate-bola, entre peixes e tubarões, entre análise jurídica do caso e pensamentos poéticos insurgentes!
    Não sei a que fim chegou o caso. E sei que há muitas razões jurídicas para defender a pescar de subsistência.
    Mas o que mais marcou dessa reportagem para mim foi o extremo bom-senso e "senso de justiça" com que os fiscais justificavam suas ações, o que sempre me faz retornar a um aforisma do Prof. Agostinho Ramalho: "Quem nos salva da bondade dos bons?!"
    Abraços e continuemos a boniteza das reflexões...

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