domingo, 21 de novembro de 2010

Universidade popular na América Latina (1)

Uma reflexão sobre "universidade popular" na América Latina mereceria várias postagens. Um texto que contemple esta discussão poderia se tornar muito longo caso se quisesse ter qualquer pretensão de exaustão. Obviamente, não será esta minha postura aqui no blogue. Vou fazer alguns apontamentos, tentando encaminhar a problemática para um horizonte comum que nos deve unir a todos, assessores jurídicos populares, teóricos críticos do direito e militantes políticos de movimentos e organizações populares.

Para início de conversa, vale a pena resgatar um momento histórico marco para a libertação da América Latina: a revolução mexicana de 1910. Há exatos cem anos, completados ontem (20/11), o México passou por um momento de absoluta efervescência política, econômica e cultural, sendo palco de um experimento revolucionário, ainda que bastante complexo e cheio de contramarchas, que daria ensejo ao zapatismo, ao muralismo e à constituição social de 1917. A revolução mexicana é pedra angular para a discussão sobre a universidade popular na América Latina porque, em seu contexto, surgiu uma das primeiras tentativas de levá-la a cabo, a Universidade Popular Mexicana, realizada por uma aliança de intelectuais mexicanos.

Em verdade, o experimento mexicano, que durou de 1912 a 1920, tendo sido resgatado em vários outros momentos da revolução a partir de então, não foi o pioneiro absoluto na catalogação de tais experiências. No Brasil, mesmo, se pode encontrar um antecedente, na Universidade Popular de Ensino Livre, com participação de vários intelectuais anarquistas e socialistas - dentre eles Elísio de Carvalho e Manoel Bonfim - que tinha por objetivo desacademicizar e desbacharelizar o ensino superior do país, tornando possível a "instrução superior e a educação social do proletariado" (conforme diria Carvalho, em 1907). A experiência da UPEL durou poucos meses, entretanto. E isto devido a cisões internas do grupo que estava à frente do projeto. Nesse sentido, é importante lembrar que a universidade latino-americana foi cosntruída para a formação das elites locais desde os inícios da colonização hispânica, algo que no Brasil só se daria com a declaração de independência política. Ainda quanto ao caso brasileiro, as tardias idéias republicanas surgiriam com o ímpeto do discurso da universalização do ensino básico, mas sem que esta pretensão atingisse a "instrução superior". Tanto assim é que só o século XX assistiria ao surgimento da primeira universidade brasileira (na provinciana e ervateira capital paranaense, ainda que este título seja discutido pelos fluminenses).

Sem dúvida nenhuma, porém, a grande experiência que nos guia a todos, no entendimento e ato de fé de que a universidade popular é um caminho viável, é a da reforma universitária pretendida pelos estudantes argentinos, em Córdoba (1918), que daria ensejo a vários movimentos análogos e, de alguma forma, unificados, em toda a América Latina. O relato de José Carlos Mariátegui, em seus "Sete ensaios de interpretação da realidade peruana" (ensaio IV, sobre "O processo da instrução pública"), é eloqüente, mostrando a vivência de um mesmo processo para além de a Argentina, chegando ao Peru, Uruguai, Chile e Cuba, dentre outros países. Aliás, Mariátegui trabalharia na Universidade Popular González Prada, em Lima, e sua atuação estaria muito próxima à de outros pensadores críticos de então que realizariam a Universidade Popular José Marti, em Cuba, ou a Universidade Popular Lastarria, no Chile. Não é à-toa que os intérpretes latino-americanos do marxismo no continente imputam a este período histórico o momento revolucionário fundador da insurgência de nossa América. A América Central em ebulição, o México revolucionário, e as experiências indígenas e operárias da América do Sul perfazem o auge do primeiro meado do século XX.

Em termos de proposta de universidade popular, entrementes, dois elementos irão se destacar neste momento: o protagonismo estudantil e o objetivo de tornar acessível o conhecimento científico às classes populares latino-americanas, em especial os trabalhadores urbanos. Estes dois pontos são cruciais para a compreensão do fenômeno da universidade popular entre nós, algo que deve conduzir nossa análise nos momentos subseqüentes desta investida conscientizadora, a qual permanecerá viva como um legado para a atualidade, articulando-se em torno dos movimentos populares. E disto me ocuparei na próxima postagem, mas não encerro esta sem antes fazer menção a uma projeção que deve restar esclarecida para que melhor se compreenda meu comentário: precisamos estabelecer uma analogia entre a alternatividade jurídica e a da universidade popular. Assim, a partir do resgate histórico da construção de experiências de univeridade popular na América Latina, é possíval entender que há três grandes dimensões de sua fenomenologia: a da universidade de combate, acentuando os conteúdos populares ainda que dentro dos padrões hegemônicos de ensino; o uso alternativo da universidade, que radicaliza a prática extensionista e o papel social da pesquisa coletiva; e a universidade alternativa, proposta que não deve ser protagonizada por intelectuais livre-pensantes descolados dos sujeitos históricos que devem protagonizá-las, já que protagonistas da cultura popular, a classe-que-vive-do trabalho.

6 comentários:

  1. Mas que tal a analogia do direito alternativo?
    Muito boa.

    Lembremos ainda, já que agora temos a leitura assídua das amigas argentinas de La Plata e Tucumán, da Universidad Popular de la Plaza de Mayo, em Buenos Aires. Inclusive, depois de uma matéria da Caros Amigos da década passada, não vi mais nenhum material a respeito. Alguém poderia nos atualizar?

    Bem, seria muito bom também conhecer outras experiências universitárias populares do outro lado do oceano, seja na Europa, ou na África. Lembrei da Universidade da Ponte, em Portugal.

    Fiquemos, por ora, com a possibilidade de nos imaginarmos na universidade popular brasileira: aulas no meio da rua, trabalhadores professores, indígenas pesquisadores, o povo se comunicando e expressando livremente seu pensamento e sua arte.

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  2. Confesso que estava na maior expectativa sobre a abordagem desse assunto que tem muito o que ser discutido, dialogado- gostei da numeração ao lado do título.

    Vou começar a expor o que me encuca neste assunto: conscientização em que sentido? Partindo de quem? Unidirecionalmente? Acho que não, nunca foi esta a proposta. Mas como, então?

    O que abordar? Quais métodos? O que aproveitar das ciências acadêmicas? Aproveitar as ciências acadêmicas?

    Como fazer emergir e espraiar o conhecimento existente, mas quase sempre desprezado existente fora dos muros das nossas academias?

    Como fazer tudo isso respeitando as particularidades de quem participa do processo e suas vontades?

    Desses exemplos que Pazello falou,eu gostaria de saber se o conhecimento discutido/criado era baseado nas tradições dos participantes. Era? Porque eu penso que não deveria existir um modelo de universidade popular, mas vários, em um mesmo país,inclusive, buscando o respeito pelas manifestações características de cada localidade. Parece óbvio, mas os modelos de educação quase nunca têm essa preocupação, ou se têm, não faz muita diferença na prática... Eu não gostaria que a universidade popular seguisse o mesmo caminho ( uma mesma cartilha para Guaribas-PI e Imbituba-PR ?). Eu sei que estou me concentrando demais nas diferenças...Mas nesse caso acredito que pensar nelas é relevantes do ponto de vista de se tomar pé da imensidão do projeto e do cuidado que se deve ter para não torná-lo algo que reflete os anseios apenas de uma determinada região, ou de uma pequena porção dela...

    Xeru, galera!

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  3. Relembrar é viver:
    http://assessoriajuridicapopular.blogspot.com/2009/11/universidade-popular.html

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  4. Oi, Ribas!

    Boa lembrança! Eu havia lido sua postagem, apesar de não ter comentado na época( desculpe!).

    Sua descrição do germe potencial da universidade popular brasileira ( ou universidades populares) parece querer apontar para minha preocupação maior: respeito pela pluralidade.

    :)

    Abração!

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  5. Concordo com o Luiz de que seria legal os companheiros de outras localidades (como os argentinos) ou que conheçam experiências de outras localidades fazerem uma postagem sobre a universidade popular pelo mundo.

    Ah, outra coisa, Luiz: acho que você estava se referindo à Escola da Ponte (que não era uma universidade popular, propriamente dita, porque para ensino fundamental ou algo próximo disso). Mas acho esta experiência espetacular para pensarmos a metodologia da universidade popular.

    No entanto, eu lembro que em Portugal há a experiência da Universidade Popular Portuguesa (uma UPP bem melhor que as nossas) e confesso que não conheço bem o assunto. Encontrei esta página: http://www.upp.pt/

    À Naiara, devo dizer que as suas inquietações são bastante produtivas. Estou escrevendo as postagens meio que respondendo o que eu PARTICULARMENTE penseo sobre as suas indagações.

    Quanto às suas últimas provocações, sobre se as experiências citadas partiam das particularidades populares, devo dizer uma coisa: não concordo, na esteira do HORKHEIMER, que se deva anular a proposta crítica de quem pertence a outras classes sociais. A pedagogia liberal é que defende isso, não a freireana. Mas concordo que deva haver o diálogo, um conflito entre quem está no mesmo lado. Importa aqui não exercer um poder que oprima algum dos pólos dialógicos.

    Enfim, as experiências de Córdoba e a brasileira, em alguma medida, fizeram este percurso, ainda que enfatizando o protagonismo estudantil e das classes populares.

    Valeu, abraços

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  6. Oi, Pazello!

    Primeiramente eu gostaria de dizer que estou lisonjeada pela deferência. Eu ainda vou incomodar muito você e sua idéia de universidade popular, acredite. Estou só começando. srsrs!

    Se sua proposta leva em consideração as vontades de todos os participantes, então estamos falando a mesma língua, ainda que eu tenha algumas críticas ( ou muitas) ao seu pensamento.

    Aliás, este blogue é frequentado por vários professores e mais ainda estudantes. Não entendo porque só Pazello e o Ribas têm se concentrado nesta proposta ( nas postagens) da universidade popular. É um assunto tão próximo de todos nós... Claro que pode ser que ocorra com os outros colegas o que ocorre comigo: tenho pouco conhecimento do assunto e estou aprendendo por aqui ( e unindo a algumas experiências, observações,leituras e reflexões pessoais)... Mas eu sei que aqui no blogue tem muita gente boa para apresentar sua parcela de contribuição a esta idéia de universidade popular... E então?

    Abração!

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