domingo, 3 de outubro de 2010

O golpe no Equador e o terrível inverno político latino-americano que se avizinha


Na semana em que a secretária de estado ianque pediu desculpas públicas aos guatemaltecos pela realização, entre 1946 e 1948, de pesquisas médicas em encarcerados, mulheres e doentes mentais daquela nacionalidade com o intuito de testar a capacidade da penicilina na cura da sífilis (inclusive, notícia publicada pela grande mídia), o continente nuestro-americano assiste, apreensivo, a mais uma tentativa de golpe de estado em um país da aliança bolivariana.

O Equador, do presidente Rafael Correa, teve suas instituições atacadas por um setor da polícia que teria sofrido diminuições em sua renda por conta da nova Lei de Servidores Públicos (ver comentários técnico-jurídicos sobre a referida lei) que lhes retirou uma série de benefícios, os quais seriam compensados por incrementos salariais ou soldos, segundo o governo.
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Mais que, porém, defender a democracia equatoriana, ou a revolução cidadã de Correa (como fizeram várias organizações populares, tais quais a Via Campesina), na qual se inclui a inovadora constituição do Equador (certamente, símbolo máximo do novo constitucionalismo latino-americano, tendo por artífices juristas progressistas do continente como Roberto Gargarela e Caterine Walsh), cabe levantar alguns pontos importantes para se pensar o que ocorre em nosso continente. Vários e importantes teóricos latino-americanos, há algum tempo, anunciavam: “vivemos uma primavera política”. Mas será mesmo? Ainda que esta questão também seja relevante, não é a ela que quero me dedicar e sim ao conjunto de episódios que assolam, há uma década, a América Latina e o que se pode fazer a partir dessa análise mínima.

Desde a ascensão de Hugo Chávez ao poder na Venezuela, vimos vários acontecimentos que tiveram o condão de consolidar uma primavera continental, mas outros tantos que apontam para um rigoroso inverno. Talvez, dentre os principais destes últimos esteja o parco avanço da estratégia bolivariana (que, por si, já é passível de algum questionamento) e a incrível escalada cooptadora nos supostos governos progressistas, em especial, da América do Sul. Mas, sem dúvida alguma, o principal índice meteorológico do inverno rigoroso que se anuncia é a série de golpes de estados a que o continente assiste estarrecido. E pior: contra estes golpes, apenas um discurso e em uníssono – a defesa da legalidade e da constituição!

Não que a defesa da legalidade e do regime constitucional seja, universalmente, uma tática equivocada. No entanto, quando esta tática – parcial por natureza, justamente por ser tática – se torna o horizonte inultrapassável de nosso tempo, um verdadeiro “fim da política”, a estratégia última e utópica de um conjunto geracional, aí sim devemos todos permanecer alerta.

O golpe contra o presidente venezuelano Chávez (documentado de forma incrivelmente direta pela película “A revolução não será televisionada”); a sedição encampada na Bolívia do presidente Evo Morales; e agora a sublevação policialesca no terceiro tripé bolivariano da América do Sul, ou seja, no Equador; todos estes episódios de extremada relevância registram a sucessiva (poderia dizer, até, galopante) organização das forças regressistas no continente, sob a égide da aliança das elites nacionais com o poder imperial (ainda que, como sempre aliás, velada) de amplos setores das diplomacias e governos de países do capitalismo chamado tardio e das corporações transnacionais. Aliados a estas tentativas frustras de golpes, estão os acontecimentos de Honduras e a vergonhosa deposição do presidente Zelaia, assim como a postura política de colombianos e peruanos e a potentíssima ideologia de cooptação nacional popular dos governos do Brasil, Argentina, Paraguai, Chile e Uruguai (claro, há de se ressalvar que cada uma destas localidades tem inúmeras peculiaridades e que, por isso, sempre há algo de arbitrário em classificá-las todas de uma mesma forma). Somada a tudo isto, a situação espoliativa no Haiti e a marcha de contínuas repressões no resto do continente, mormente com relação aos movimentos e organizações sociais e populares.

Se, por um lado, o presidente equatoriano Correa pôde resistir heroicamente, bradando: “Si me quieren matar, mantenme”; por outro, parece evidente que não há resistência suficientemente construída para o continente agüentar esta contra-ofensiva. Basta lembrar da postura, ainda que simpática, mas um tanto vacilante, do presidente hondurenho, longe que esteve de honrar o discípulo de Martí que não titubeou ao vociferar: “pátria ou morte!” Sim, o povo sempre resiste. Mas a resistência, é urgente que percebamos!, precisa ser vivida como positividade e não apenas como defesa. Neste caso, a melhor defesa está longe de ser o melhor ataque. Aqui, só se pode defender a vida e nada mais. Sobrevida, portanto, sobredefesa.


E esta denúncia está clara para os principais dirigentes dos países da ALBA. Evo Morales é enfático: os EUAAS executam treinamentos militares em territórios peruano e colombiano e vêm orquestrando golpes de estado na região. Segundo ele (conforme relatado em notícia intitulada Morales acusa a EE.UU. de preparar golpistas en Perú y en Colombia”), os quatro grandes golpes efetivados na última década – a década da consolidação da democracia no continente! – foram levados a cabo por estas intenções imperialistas.

Daí voltar a fazer sentido o discurso de Golberi do Couto e Silva, para quem, astutamente, o ocidente precisava da América Latina, assim como esta necessitava daquele, e que, numa impressionante inversão do ideário latino-americanista, dizia: “para nós, povos desta outra América ainda embrionária e em luta com a miséria e a fome, o penhor supremo da redenção é o senso das responsabilidades próprias na defesa do Ocidente”. E o que significava esta defesa, a qual ganhou o nome pouco oportuno de defesa ou segurança nacional? Eis a resposta: “que estaremos prontos a defender, sem tegiversações covardes nem subterfúgios desonrosos, quando soar a hora extrema da prova”. E esta prova é a prova de fogo da guerra: “essa é a guerra – total, permanente, global, apocalíptica – que se desenha, desde já, no horizonte sombrio de nossa era conturbada. E só nos resta, nações de qualquer quadrante do mundo, prepararmo-nos para ela, com determinação, com clarividência e com fé”. São trechos, das conclusões e da introdução, do livro de Couto e Silva, chamado “Geopolítica do Brasil” e escrito em 1966.

É claro que se trata de texto inserido no temor contextual do anticomunismo, bem como na guerra fria, na qual o ocidente capitalista se contrapunha ao oriente, nem tão socialista assim. De qualquer forma, a clareza histórica das linhas, para quem as lê, é surpreendente, mesmo porque pede bênção (ou reconhecimento) aos países desenvolvidos e, em especial, aos Estados Unidos da América Anglo-Saxã. E tudo o que vivemos hoje parece, infelizmente, lembrar os tempos em que se preparavam paramilitares no Panamá. Agora, é na Colômbia e no Peru. Ontem, o padre Camilo Torres pagara com sua vida. Hoje, John Saxe-Fernández e Noam Chomsky esbravejam diuturnamente contra as bases militares que rodeiam a ALBA.

E o que fazemos nós? Não quero com isso recair em nenhum simplismo do tipo: “peguemos em armas!” Mas é necessário compreender que a geopolítica nunca se purificou e se há alguma grande lição a partir do pensamento de Golberi é isto: a geopolítica continua utilizando armas, ainda que dentre estas estejam também, e fortemente, os meios de comunicação e a indústria do entretenimento.

O estado de exceção instaurado, oficialmente, por Correa, no Equador, talvez deixe sem chão os teóricos da vida nua (a não ser que o conceito – estado de exceção – se molde apenas a situações particulares – e daí seria preciso limpar o terreno e voltarmos à noção de poder, já no velho Bênjamin). Daí que nem o constitucionalismo nem o novo constitucionalismo nem mesmo um futuro novíssimo constituciomalismo nos sejam suficientes. É a consciência do povo quem ditará os rumos destes processos, que continuam a ter nas armas combatentes ferozes – e, por ora, combatentes apenas inimigos. Talvez ainda Cuba e Nicarágua (países também membros da ALBA) possam complementar os ensinamentos de Venezuela, Bolívia e Equador. Não desperdicemos quaisquer experiências, pois que são preciosas todas elas e toda consciência tem de se fazer objetiva também.

4 comentários:

  1. Tampouco acredito que crer na eternidade da democracia institucional seja uma solução. É mais como o fugaz alívio da diarréia em um amplo espectro de anormalidades orgânicas. E, para não entrar em maiores detalhes fecais, este é o ponto: quais são nossas armas?

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  2. Eu responderia (mais uma contribuição para o debate que uma pretensa resposta) com Mariátegui, a partir de um muito elogioso, ainda que nem por isso menos crítico, artigo do Amauta sobre "Mahatma Gandhi":

    "Gandhi, dominado por su temperamento moralista, no ha sentido a veces la misma necesidad de libertad que sentía su pueblo. Su fuerza, en tanto, ha dependido, más que de su predicación religiosa, de que ésta ha ofrecido a los hindúes una solución para su esclavitud y para su hambre.

    La teoría de la no cooperación contenía muchas ilusiones. Una de ellas era la ilusión medioeval de revivir en la India una economía superada. La rueca es impotente para resolver la cuestión social de ningún pueblo. El argumento de Gandhi -"¿no ha vivido así antes la India?"- es un argumento demasiado antihistórico e ingenuo. Por escéptica y desconfiada que sea su actitud ante el Progreso, un hombre moderno rechaza instintivamente la idea de que se pueda volver` atrás. Una vez adquirida la máquina, es difícil que la humanidad renuncie a emplearla. Nada puede contener la filtración de la civilización occidental en la India. Tagore tiene plena razón en este incidente de su polémica con Gandhi. "El problema de hoy es mundial. Ningún pueblo puede buscar su salud separándose de los otros. O salvarse juntos o desaparecer juntos".

    Las requisitorias contra el materialismo occidental son exageradas. El hombre del Occidente no es tan prosaico y cerril como algunos espíritus contemplativos y extáticos suponen. El socialismo y el sindicalismo, a pesar de su concepción materialista de la historia, son menos materialistas de lo que parecen. Se apoyan sobre el interés de la mayoría, pero tienden a ennoblecer y dignificar la vida. Los occidentales son místicos y religiosos a su modo. ¿Acaso la emoción revolucionaria no es una emoción religiosa? Acontece en el Occidente que la religiosidad se ha desplazado del cielo a la tierra. Sus motivos son humanos, son sociales; no son divinos. Pertenecen a la vida terrena y no a la vida celeste.

    La ex-confesión de la violencia es más romántica que la violencia misma. Con armas solamente morales jamás constreñirá la India a la burguesía inglesa a devolverle su libertad. Los honestos jueces británicos reconocerán, cuantas veces sea necesario, la honradez de los apóstoles de la no cooperación y del satyagraha; pero seguirán condenándolos a seis años de cárcel. La revolución no se hace, desgraciadamente, con ayunos [JEJUNS]. Los revolucionarios de todas las latitudes tienen que elegir entre sufrir la violencia o usarla. Si no se quiere que el espíritu y la inteligencia estén a órdenes de la fuerza, hay que resolverse a poner la fuerza a órdenes de la inteligencia y del espíritu."

    [no livro "La escena contemporánea", disponível em: http://www.marxists.org/espanol/mariateg/1925/escena/06.htm ; em português, o texto encontra-se no livro "Do sonho às coisas: retratos subversivos"]

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  3. Também interessante nesse assunto é este artigo: http://observatorio.iesp.uerj.br/pdfs/129_artigos_2010_10_05_Pernasetti.pdf

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  4. Com bastante atraso, lá vou eu também comentar essa questão, pois ela é decisiva dentro de nosso contexto de potencialidade insurgente latino-americana (cuja grande parte ainda é inexplorada!)

    Não compartilho da visão pessimista de que "um inverno se avizinha" na América Latina. Creio sim que estamos chegando numa situação-limite, num futuro impasse: voltar para a condição de dependência e subordinação ao imperialismo do atual sistema-mundo; ou avançar num projeto de descolonização e independência dos povos latinoamericanos. O dilema é parecido com o famoso "socialismo ou barbárie" de Rosa Luxemburgo.

    Avançar na segunda linha é, a meu ver, necessariamente avançar para uma reorganização societal de caráter socialista e ao mesmo tempo pluralista (no sentido de interculturalidade, do pensamento descolonial), dado o caráter da composição de classes dos povos insurgentes nesses países: desde proletários urbanos, passando por camponeses e chegando a povos originários.

    O grande perigo nesse momento é esse projeto "apostar fichas demais" no apoio de parte de uma suposta "burguesia progressista", cujo compromisso com esse projeto é estritamente econômico, e sua posição historicamente servil em relação ao imperialismo não deixa dúvidas de que é o elo mais frágil de todo esse projeto. A unica solução, a meu ver, é fortalecer essa massa popular, inclusive em termos bélico-organizativos. Cuba resistiu até hoje a uma invasão estadunidense porque tem uma arma mais poderosa do que mil bombas nucleares: um povo resoluto em garantir a sua liberdade, preparado e organizado para resistir de armas na mão (já que flores não podem vencer o canhão!) a qualquer agressão do imperialismo.

    Para quem se perguntar o que teria o Direito e os juristas a ver com isso, a resposta é: tanto no âmbito internacional, como nacional e local, uma engenharia jurídica pode ser construída tanto para armar como para desarmar essa resistência-insurgência. O próprio discurso dos "direitos humanos" pode assumir qualquer dessas perspectivas! Nosso papel é desmascarar as ideologias imperialistas nesse âmbito, e contribuir nos aspectos jurídicos da reconstrução desde a perspectiva social e as epistemologias desses povos, que foram violentamente silenciadas pelo atual sistema mundo.

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