Por Assis da Costa Oliveira
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Ilha do Arapujá, no início do desmatamento. |
No dia 30 de agosto de 2015 houve o velório de uma ilha em Altamira, no estado do Pará. Isto é, o Fórum de Defesa de Altamira reuniu uma parcela da população da cidade para promover o derradeiro abraço simbólico da ilha do Arapujá, referência maior da paisagem da orla da cidade, situada no meio do rio Xingu. O abraço simbólico tinha motivo: em poucos dias, uma ilha construída ao longo de milhares de anos seria (e foi) totalmente desmatada, seus animais retirados ou esquecidos a própria sorte, para, ao final, não restar nenhuma prova do que era essa ilha, para além daquela que continuará a existir nas memórias, imagens e corações dos moradores locais.
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As máquinas desmatando a ilha. |
Segundo o licenciamento
ambiental da obra da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, o termo técnico para
esse ato é “supressão da massa vegetal” do rio Xingu, procedimento “necessário”
para aumentar a velocidade de escoamento da água e reduzir sua acidificação
devido a decomposição da madeira, assim “beneficiando” a produção da futura
energia elétrica. Dito assim, parece até suavizar a atrocidade de tal operação.
Trata-se de uma “massa vegetal” que representa ilhas, florestas e animais que
serão suprimidos para os, agora, “entulhos” darem lugar aos intentos humanos de
produção da “energia limpa” de Belo Monte, além das famílias ribeirinhas e
indígenas que lá habitam serem indenizadas ou remanejadas para outros locais,
bem longe do rio.
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A manifestação do Fórum de Defesa de Altamira. |
Para grande parte da
população de Altamira, e da região do Xingu, a ilha do Arapujá não era uma
“massa vegetal” ou um empecilho aos objetivos do empreendimento de Belo Monte.
Muito pelo contrário. Arapujá era uma ilha que dava sentido as suas formas de
vivenciar o território local, de apreciar a paisagem da orla da cidade, de
reconhecer-se na floresta “na outra beira do rio”, para além do concreto urbano
do “lado de cá”. Como traduzir para a
lógica técnico-administrativa essa dimensão do afeto, da identidade e da
memória coletiva, se a dimensão afetivo-simbólica é desconsiderada nos estudos
prévios de impacto ambiental do licenciamento ambiental e do processo de
intervenção do empreendedor no território? Como dimensionar tais impactos e a
projeção (inter)subjetiva que eles acometem nas pessoas, suprimindo uma parte
considerável daquilo que entendiam por seus modos de vida, seus modos de vivenciar
o território local?
No ato ocorrido dia 30 de
agosto, Raimunda Gomes da Silva, moradora antiga de Altamira, sintetizou bem o
que é essa dimensão afetivo-simbólica de habitar o território, da “amizade com o
Arapujá”: “Eu vim hoje aqui dá esse abraço no Arapujá, porque daqui do Arapujá
eu só vou levar lembranças boas, já tirei o meu sustento daqui. Hoje pra mim
ver o Arapujá morrer, pra mim não é uma despedida, é uma lembrança que eu vou
guardar comigo, de uma ilha que já foi minha amiga de suprir minha necessidade
por conta do berço que ela guardava que era o peixe. Hoje, ela se encontra
nesse desespero da morte, mas eu queria dizer que ela vive para sempre no meu
coração”.
O significado e o
sentimento da amizade, do abraço, do berço e da memória, tal como relatados por
Raimunda, revelam o quanto para os moradores locais tal ilha não era (e é)
apenas um elemento físico-biológico do meio ambiente amazônico, mas parte
daquilo que compreendem como seu patrimônio cultural, um “outro sujeito”
portador de referência à identidade, à ação, à memória dos seus modos de criar,
fazer e viver, como reza o artigo 216 da Constituição Federal de 1988, de suas
práticas cotidianas e históricas de vivenciar o rio Xingu e a cidade de
Altamira.
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Cartazes e cânticos, no término do abraço simbólico. |
Como bem nos lembra Jean
Hébette, trata-se de uma forma de organização da vida social que é radicalmente
confrontada e desestruturada pela dinâmica organizacional dos grandes projetos,
mas cuja população dita “impactada” aprende, nesse processo, a resistir e a se
organizar, a criar estratégias de visibilizar a dimensão afetivo-simbólica do
território, de sua conversão em patrimônio cultural e em legado de seus
direitos humanos, de seus sentidos éticos de humanidade e de justiça.
Vai-se o Arapujá, mas ele
não morre, resiste na memória das pessoas e persiste no questionamento dos fins
do modelo de desenvolvimento que o matou: Valeu a pena? Para quem e com que
custos? É preciso lembrar de uma reflexão contida no filme Narradores de Javé,
cuja comunidade fictícia ironicamente encontrou o mesmo destino que o Arapujá,
e que num certo momento um morador do vilarejo de Javé vaticina: “uma terra
vale pelo que produz, mas pode valer mais ainda pelo que esconde”. Toda uma
dimensão afetivo-simbólica foi alojada num canto esquecido da política de
desenvolvimento que cristaliza o processo de implantação de Belo Monte. Os que
sabem olhar – e sentir – tal dimensão não tardam em anunciar seu valor e o
valor cultural do território; os que não sabem – ou não querem – ver tal
dimensão podem, enfim, continuar a dormir no “berço esplendido” da injustiça
socioambiental.