quinta-feira, 23 de abril de 2015

A luta e a resistência dos fundos de pasto baianos

Na semana em que lembramos a conquista portuguesa do território brasileiro, nada melhor que enfatizarmos as formas de uso da terra que não aquelas impostas pela colonização. A experiência dos fundos de pasto, com o uso comum de sua territorialidade, nos ressalta bem isso na coluna AJP na Universidade de hoje. Vale a pena ler o texto da advogada popular baiana Leila Santana da Silva, militante do MPA e que produziu sua reflexão no âmbito da disciplina de “Teorias Críticas do Direito e Assessoria Jurídica Popular”, da Especialização em Direitos Sociais do Campo da UFG, na Cidade de Goiás.

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FUNDO DE PASTO: LUTA E RESISTÊNCIA NO SERTÃO



Leila Santana da Silva
Advogada popular na Bahia, militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), estudante da Turma de Especialização em Direitos Sociais do Campo - Residência Agrária (UFG)

Desde que me conheço por gente, meu manejo é na Caatinga. Não existia nem o lago de Sobradinho [construído na década de 1970] quando minha família chegou aqui. (Seu Joaquim, conhecido por Quinquim, Comunidade de Fundo de Pasto de RiachoGrande, Casa Nova – BA).

A história dos fundos de pasto está ligada à história da ocupação das terras do Brasil. Esta ligação tem relação, mais precisamente no sertão, com as fazendas de criação extensiva de gado, isto é, na solta, onde foram surgindo a partir das subdivisões das sesmarias1 (extintas em 1822) os chamados currais, e constituíram a forma de ocupação das terras do sertão baiano. Estas fazendas entraram logo em decadência, por diversas razões, falindo assim o modelo agroindustrial da cana de açúcar no litoral, principal consumidor da carne e do couro do sertão.

As terras dos antigos donos pecuaristas decadentes passaram a ser partilhadas entre moradores e os trabalhadores das próprias fazendas. Ao longo do tempo o gado foi substituído por caprinos, mais resistentes e acessíveis para viver no sertão, criados da mesma forma extensiva, na solta. As terras de uso comum que resultaram deste processo são abertas, sem cercas que delimitem onde começa ou onde termina a posse dos seus moradores, como também seus limites gerais. Às vezes, de comum acordo, são usadas variantes para demarcação destes limites.

Esta forma de vida estabelecida a partir do modo de uso comum da terra para viver e criar animais vai além de ser somente um sistema produtivo, é na realidade uma formação social bem própria da cultura sertaneja. Hoje este modo de possuir e usar de forma coletiva a terra é conhecido como fundo ou fecho de pasto.2 Fundo de Pasto é um modo tradicional de acesso e uso dos recursos naturais de um território no semiárido brasileiro, ainda muito comum na Bahia, pelo qual a área ao fundo e no entorno das roças familiares cercadas é usada coletivamente para pastagem dos animais, em especial caprinos e ovinos, mais resistentes à seca.

Articulada com esta importância recente destes territórios controlados por comunidades tradicionais está uma das mais antigas formas de democratização do direito à propriedade da terra no Brasil e que até os dias de hoje resiste às investidas do capital/poder econômico dominante.

Reconhecidas como comunidades tradicionais pela legislação, as comunidades de fundo e fecho de pasto estão num processo de articulação que garanta a efetiva regularização das terras que historicamente ocupam, e, a partir daí - e da necessidade de proteger seus territórios de investidas externas - construíram uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que visa a alterar a Constituição do Estado da Bahia, em seu artigo 178, na intenção de ver garantida a titulação de suas terras ao mesmo tempo em que as protege da destruição sócio-ambiental imposta pelos interesses econômicos externos, constituídos pelos grandes empreendimentos que chegam a todo tempo no nordeste e das mãos “interessadas” do Estado.

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1 As sesmarias eram a subdivisão das Capitanias Hereditárias (1534 - 1549), ou seja, eram extensões de terras públicas dadas aos amigos (chamados sesmeiros) do Rei.

2 Lembrando que os fechos de pasto são mais comuns no oeste da Bahia, mais precisamente, no cerrado, enquanto os fundos de pasto estão mais presentes na caatinga localizados no norte da Bahia.

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Leia também:

Insurgência quilombola e assessoria jurídica popular, 19 mar. 2015
AJP e etnodesenvolvimento, 14 abr. 2011
Os sujeitos históricos da transformação: organização político-jurídica e antropologia, 24 out. 2010

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