Artigo de Jacques Alfonsin publicado
no RS Urgente, em dezembro de 2013
Foto: Divulgação CDES/RS |
Entre os fatos destacados pelo Papa Francisco,
na exortação apostólica Evangelii Gaudium (a alegria do Evangelho), de 24 de
novembro passado, vale a pena prestar-se um pouco mais de atenção na lembrança
por ele valorizada de um documento da CNBB (Exigências evangélicas e éticas de
superação da miséria e da fome) publicado ainda em 2002:
“Animados pelos seus Pastores, os
cristãos são chamados em todo o lugar e circunstância, a ouvir o clamor dos
pobres, como bem se expressaram os Bispos do Brasil: “Desejamos assumir, a cada
dia, as alegrias e esperanças, as angústias e tristezas do povo brasileiro,
especialmente das populações das periferias urbanas e das zonas rurais -
sem terra, sem teto, sem pão, sem saúde - lesadas em seus direitos. Vendo
a sua miséria, ouvindo os seus clamores e conhecendo o seu sofrimento,
escandaliza-nos o fato de saber que existe alimento suficiente para todos e que
a fome se deve à má repartição dos bens e da renda. O problema se agrava com a
prática generalizada do desperdício.” (nº 191 da referida exortação).
“Ouvir o clamor dos pobres”,
“assumir alegrias e angústias” especialmente de quem sobrevive nas periferias
urbanas e rurais, como as/os sem terra e as/os sem teto, reconhecer todo esse
povo como “lesado em seus direitos”, escandalizar-se com a fome ao lado de alimento
desperdiçado, isso tudo parece não deixar dúvida de que esse Papa “tem um
lado”, fala claro sobre sua posição, não tergiversa, e quando endossa as
palavras dos bispos brasileiros, proclama firmemente que a pobreza e a miséria
são causadas por violações de direitos.
A exemplo de Jesus Cristo, não
hesita em denunciar os responsáveis por tais injustiças. Quando analisa a
“economia e distribuição das entradas”, proclama em linguagem imune a qualquer
manipulação:
“A necessidade de resolver as causas
estruturais da pobreza não pode esperar; e não apenas por uma exigência
pragmática de obter resultados e ordenar a sociedade, mas também para curá-la
de uma mazela que a torna frágil e indigna e que só poderá levá-la a novas
crises. Os planos de assistência, que acorrem a determinadas emergências,
deveriam considerar-se apenas como respostas provisórias. Enquanto não forem
radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia
absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas
estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e,
em definitivo, problema algum.” (nº 202 da exortação).
Como se tudo isso fosse pouco, o
mesmo Papa Francisco determina à Academia de Ciências do Vaticano, no início de
dezembro, realizar um seminário internacional para analisar a situação dos
trabalhadores excluídos do mundo , causas e alternativas para a solução dos
seus problemas. Essa convida João Pedro Stedile, liderança mais do que
conhecida do MST e da Via Campesina para contribuir com sua palavra e
testemunho no referido evento.
E agora? Quantos editoriais, quantas
críticas cheias de raiva contra as/os sem-terra, sem-teto,
quilombolas, índias/os, catadoras/es de material, gente faminta, mal tratada em
sua saúde, agredida até em suas próprias iniciativas educacionais de que deram
exemplo as escolas itinerantes, será que vão atacar o Papa também? E aqueles
pareceres doutos, aquelas decisões judiciais que sepultaram a
justiça “em nome da lei”, despejando preconceito ideológico no papel e gente na
rua, no descaminho e até no cemitério, sob aplauso da mídia, da CNA e da
bancada ruralista no Congresso, não têm nada a dizer sobre essa exortação do
papa? Os ardis montados por não pequena parte do Poder Público e do
econômico privado visando tornar invisível a miséria para que as
responsabilidades por ela jamais fossem ou sejam identificadas e punidas, vão
continuar mantendo escondidas as provas de que esse povo pobre não é o
que dizem dele e das suas organizações como, entre outras o MST, o MPA, o MAB,
o CIMI, a CPT ?
Uma coisa parece certa. Os
defensores do chamado “sistema” econômico-político do tipo que predomina no
nosso país, como normal, a injustiça social e as desigualdades que
nos oprimem, como superáveis pelas próprias iniciativas do mercado (!)
receberam uma advertência de renome insuspeito e internacional.
As/os pobres do mundo inteiro vão
entrar 2014 empoderadas/os por um testemunho forte de defesa inquestionável dos
seus direitos, das garantias que lhes são próprias e de censura não velada a
quem é causa das injustiças que sofrem.
Manda um mínimo de decoro, modéstia
intelectual, jurídica e sociológica, então, que os tais defensores daquelas
generalidades onde quase tudo cabe (até injustiças sociais), como “livre
mercado”, “globalização” “Estado mínimo”, “neoliberalismo” tenham cuidado
com a sua mente e a sua palavra, pois, de ética e moral, pelo menos, parece que
o Papa, tão aberto ao diálogo e à acolhida de todas/os, duvida bastante, com
sobradas razões, das deles.
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