terça-feira, 17 de maio de 2016

Direito e conjuntura - O papel da AJP na luta contra o golpe

A coluna “Direito e conjuntura” apresenta neste momento pós-afastamento por 180 dias da Presidenta da República, a última parte do artigo de Diego Diehl intitulado “O Brasil à beira de um golpe de Estado de novo tipo”. Como é possível perceber, este artigo foi “fazendo-se” no desenrolar acelerado da conjuntura política, no “calor dos acontecimentos”. Só o tempo dirá sobre seus acertos e seus erros. Assim como só o tempo dirá se a nova geração que surge hoje na AJP estará à altura dos desafios que terá pela frente.

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5. E aí, AJP: vai ter golpe ou vai ter luta?
Diego Augusto Diehl

A Assessoria Jurídica Popular enquanto práxis de defesa da classe-que-vive-do-trabalho, dos movimentos sociais, das organizações populares, está longe de ser algo novo na História, como já lembravamos há bastante tempo atrás neste blogue, com o exemplo do advogado dos operários ingleses reverenciado pelo jovem Engels no livro “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”. Também esteve presente no Brasil nas lutas durante a ditadura empresarial-militar, na militância de Pressburguer, Baldez e de tantos e tantas companheiras que já faziam AJP antes que o próprio conceito tivesse sido formulado.

Aquilo que nossa jovem geração conhece hoje como “AJP” é um conceito que começa a ser formulado em meados dos anos 1990, e que chegará a uma conformação mais clara a partir dos anos 2000 com a consolidação da RENAJU (Rede Nacional de Assessoria Jurídica Universitária), com o fortalecimento da RENAP (Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares), e com o início da formação de uma reflexão teórica em torno desta práxis jurídica insurgente. É certo que muito há ainda por se fazer para avançar em suas concepções, práticas, métodos etc., mas também já é certo que muitas falsas dicotomias estão hoje superadas: assistência x assessoria; comunidade x movimento social; rede x coordenação; movimento estudantil tradicional x alternativo etc etc...

Por ser tão nova e por representar sobretudo uma jovem geração que começa hoje a trilhar os primeiros passos na vida profissional dentro do “campo jurídico”, a AJP ainda tem pouco “capital político” ou “capital jurídico” para assumir qualquer papel de destaque na luta contra o golpe de Estado que segue seu curso no Brasil (lembrando que ele só estará sacramentado com o afastamento definitivo da Presidenta da República). Não queremos portanto sobredimensionar o papel da AJP, mas queremos sim provocar a reflexão dxs estudantes e professorxs universitárixs, dxs jovens advogadxs, enfim, da militância do campo da AJP sobre alguns desafios que seremos convocadxs a enfrentar no novo período histórico que se abre neste momento no Brasil.

Como vimos no post anterior, o golpe midiático-jurídico-parlamentar tem um conjunto complexo de mecanismos, que ademais colocam o campo jurídico como arena decisiva de legitimação do novo regime jurídico-político que se pretende instaurar a partir da dissolução da “Nova República”. Seu objetivo é resgatar as taxas de lucro dos capitalistas por meio do ataque direto ou indireto às pequenas mas importantes conquistas econômicas e sociais da classe-que-vive-do-trabalho nos últimos anos no Brasil. E os modos de fazê-lo perpassarão pela mídia, pelo Congresso Nacional, pelo Poder Judiciário, pelo Ministério Público, e agora também pelo Poder Executivo federal. Como enfrentar um inimigo tão poderoso, que ainda tem por trás o (ainda) poderoso imperialismo estadunidense?

Em primeiro lugar, podemos recorrer às fontes do pensamento revolucionário do séc. XX para lembrar que todo imperialismo é um “tigre de papel” diante da potência de um povo unido e organizado. De fato não é papel da AJP enfrentar o golpe, pois esta tarefa cabe ao povo brasileiro. À AJP, como uma das ferramentas de luta jurídico-política que o povo tem à sua disposição, cabe em realidade atuar no sentido de empoderar as massas, de animá-las para a luta, de assessorá-las quanto aos aspectos jurídico-políticos da luta, de assisti-las em suas demandas jurídicas. As experiências mais recentes de trabalhos de AJP com movimentos sociais de forte caráter comunitário demonstram o papel empoderador e encorajador que essa práxis jurídica insurgente exerce.

Em segundo lugar, é preciso compreender quais são as ferramentas que a AJP oferece hoje e quais são seus limites mas também seus potenciais para o fortalecimento da luta popular. Hoje podemos dizer que a AJP tem diversas experiências exitosas nas áreas da advocacia popular, da educação popular, da assessoria jurídico-política, e também nas atividades de apoio jurídico-político a pautas e demandas de comunidades e de movimentos sociais perante o Poder Legislativo, o Ministério Público, as Universidades etc. O muito que já se fez e que se faz hoje não significa que se esteja fazendo o suficiente para evitar que nos últimos anos houvesse uma sistemática violação – ou mesmo a perda – de direitos historicamente conquistados. Também caberá à AJP fazer uma autocrítica (junto com a esquerda brasileira em geral) sobre seus descaminhos e suas debilidades nos últimos anos, mas isso não significa que se possa sobredimensionar o seu papel histórico, e muito menos que se tenha que simplesmente “jogar fora” toda essa experiência histórica acumulada para ingenuamente “começar tudo do zero”, agora de forma “pura e sem contradições” (como alguns setores da esquerda brasileira parecem querer propor ao menos no plano político neste momento de auge da ofensiva golpista no país; algo como “desistir sem lutar, já que 'eles' não valem a pena mesmo” - como se o golpe fosse contra o governo apenas e não contra o povo...).

Em terceiro lugar, a AJP tem uma série de “fontes teóricas” que precisam ser revisitadas, rediscutidas, ampliadas, e que também deverão passar por este exame crítico e autocrítico. Nossa geração foi formada em torno das diversas vertentes do pensamento jurídico crítico brasileiro dos anos 1970-1990, de inegável qualidade teórica, mas que foi perdendo seu potencial transformador e por vezes até sua coerência política em virtude de tudo aquilo que veio junto com a derrota ideológica das esquerdas que representou o fim do socialismo soviético e a ascensão do neoliberalismo e do pós-modernismo no campo cultural. A impressão que fica aos jovens juristas de hoje é que, de fato, a teoria crítica do Direito “morreu” no Brasil, e que o golpe de 2016 exige que ela renasça imediatamente.

Em quarto lugar, a compreensão da conjuntura (nacional e internacional) é a sabedoria fundamental para a “antecipação de situações”, para a previsão de cenários possíveis da luta política, e portanto da movimentação dessas complexas peças do xadrez político (e também jurídico) atual. A AJP figura hoje como uma pequena e singela peça, mas que pode “crescer no jogo” desde que passe a ocupar determinados espaços estratégicos. Uma ocupação inteligente de espaços (considerando nossas parcas forças neste momento) exige compreender e antecipar os próximos capítulos da conjuntura política internacional e nacional (nessa ordem), para então estabelecer o que de fato deve ser feito no atual momento histórico.

O povo brasileiro está neste momento confundido e iludido com a promessa de melhoria do cenário econômico pós-golpe. A mídia trata de dar ares de “normalidade democrática”, “respeito às instituições”, e propagação de um falso otimismo sobre o futuro do Brasil, sobretudo no plano da economia. Em breve toda essa “cortina de fumaça” desaparecerá, pois se é verdade que num primeiro momento os chamados “agentes econômicos” (leia-se: a burguesia financeira, industrial, comercial etc) deverão começar a sair da paralisia (o golpe atual tem também um componente econômico que foi a “greve de investimentos” de muitas empresas), o fato é que o Brasil trocará de forma “lenta, segura e gradual” aquilo que chamamos aqui de “nova dependência” (a parceria estratégica – ainda que dependente – com os BRICS, a porção mais saudável e promissora da economia mundial do séc. XXI) pela já conhecida “velha dependência” em relação a potências ocidentais em franco processo de decadência política e econômica (certamente a crise migratória europeia de um lado, e a figura nefasta de Donald Trump nos EUA de outro, são sintomas emblemáticos dessa decadência do “Ocidente”). Ademais, a imposição de uma agenda econômica recessiva, a redução do salário-mínimo e a redução de direitos sociais enfraquecerão o mercado consumidor interno, contribuindo para agravar ainda mais a recessão econômica.

Caídas todas as ilusões com o governo Temer-Cunha (que procurará evitar medidas impopulares enquanto o impeachment de Dilma não for sacramentado), o que restará ao povo brasileiro será lutar contra a perda de direitos, ao mesmo tempo em que formata uma frente política coesa (ainda que com muitos partidos e candidatos) e consistente para apresentar-se em 2018, não apenas para disputar a Presidência da República e demais cargos no Congresso Nacional e nos governos estaduais, mas sobretudo para disputar o projeto de nação que deverá orientar o Brasil neste início do séc. XXI, após o esgotamento histórico da chamada “Nova República”. Isso exigirá, da parte da esquerda brasileira (movimentos sociais, partidos políticos críticos, frentes políticas etc) apresentar um autêntico e renovado projeto popular para o Brasil, com começo, meio e fim, e que envolva a dissolução de todas as barreiras político-jurídicas instituídas no contexto da “Nova República” pela CF/1988 para a execução das chamadas “reformas estruturais”, pelas quais o país jamais passou. Nesse sentido, deverá readquirir força a luta por uma Assembleia Constituinte exclusiva e soberana sobre o sistema político, que terá agora como tarefa histórica não só promover a instituição de um novo modelo de democracia participativa e de controle sobre a influência eleitoral da mídia e das grandes empresas, mas também de reafirmar um conjunto de direitos fundamentais afirmados na Constituinte de 1986/87, mas que foram na prática neutralizados pelos diversos agentes e instituições comprometidos de algum modo com o golpe de Estado em curso.

Dispensar o aprendizado histórico de erros mas também de acertos de governos petistas; descartar o capital político que alguns de seus quadros históricos ainda possuem; ou promover uma espécie de “caça às bruxas” nas esquerdas são atitudes que levarão certamente à derrota nesta disputa de projetos na qual o Brasil já está profundamente mergulhado. A autocrítica é sem dúvidas fundamental, mas terá que ser promovida ao mesmo tempo em que a luta popular segue seu curso. E o papel da AJP é justamente o de assessorar os movimentos populares e as organizações comunitárias nestas lutas bastante duras que certamente virão pela frente.

Quando perguntamos à AJP se vai ter golpe ou vai ter luta, isso não significa dizer que, em havendo luta, o golpe não ocorrerá. Pelo contrário, é perfeitamente possível (e quiçá mesmo provável) que, mesmo participando da luta, o golpe venha a ser definitivamente sacramentado. No entanto, o simples ato de engajar-se na luta significará que a AJP participará do processo de formatação do novo, que virá necessariamente dos movimentos sociais, em especial daqueles com maior potencial de mobilização das massas populares. Nesse cenário, a AJP deixaria de ter o papel pouco relevante que jogara até agora no cenário político, para assumir posições estratégicas seja no monitoramento dos movimentos do campo adversário (afinal de contas os juristas são fundamentais no golpe atual), seja na conformação das forças populares e de suas bandeiras de luta para o próximo período.

Com esta nova coluna “Direito e conjuntura”, o blogue da AJP buscará trazer contribuições nestes 2 aspectos, porém com maior destaque ao monitoramento dos “inimigos do povo”, sobretudo no Congresso Nacional, no Poder Executivo federal (cuja composição deixaremos para analisar nas próximas semanas), e nas agendas institucionais do Poder Judiciário e do Ministério Público Federal. Esperamos poder assim contribuir para uma melhor coordenação das ações das forças populares, para a consolidação de lutas unificadas e para a produção de consciência crítica junto à militância da AJP e dos movimentos sociais, enfim, ao povo brasileiro.

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