AMOR, de grão a grão, de planeta a planeta,
a rede do vento com seus países sombrios,
a guerra com seus sapatos de sangue,
ou melhor o dia e a noite da espiga.
Por onde fomos, ilhas ou pontes ou bandeiras,
violinos do fugaz outono atormentado,
repetiu a alegria dos lábios do copo,
a dor nos deteve com sua lição de pranto.
Em todas as repúblicas desenvolvia o vento
seu pavilhão impune, sua glacial cabeleira,
e logo regressava a flor a seus trabalhos.
Mas em nós nunca se calcinou o outono.
E em nossa pátria imóvel germinava e crescia
o amor com os direitos do orvalho.
(Soneto XXVIII, de Pablo Neruda, em "Cem sonetos de amor")
a rede do vento com seus países sombrios,
a guerra com seus sapatos de sangue,
ou melhor o dia e a noite da espiga.
Por onde fomos, ilhas ou pontes ou bandeiras,
violinos do fugaz outono atormentado,
repetiu a alegria dos lábios do copo,
a dor nos deteve com sua lição de pranto.
Em todas as repúblicas desenvolvia o vento
seu pavilhão impune, sua glacial cabeleira,
e logo regressava a flor a seus trabalhos.
Mas em nós nunca se calcinou o outono.
E em nossa pátria imóvel germinava e crescia
o amor com os direitos do orvalho.
(Soneto XXVIII, de Pablo Neruda, em "Cem sonetos de amor")
No prefácio a um texto do subsecretário de justiça chileno ao tempo de Salvador Allende, nosso insurgente teórico do direito Miguel Pressburger questiona: “a burguesia suporta a ilegalidade?” Coincidentemente, ou não, no dia 26 de junho de 1974, Augusto Pinochet “assumiu” a presidência do Chile. Em verdade, assumiria “de direito”, porque “de fato” já o havia feito quase um ano antes, quando articulou as forças armadas para derrubarem e assassinarem o presidente constitucional.
O direito e sua legalidade sempre foram prenhes de uma ambigüidade natimorta. Na verdade, uma ambigüidade heráldica, atávica, legado dos rudimentos do “jurídico” encontrado nas priscas eras adâmicas. É certo que devemos encarar Lira Filho e, em nosso espelho, assegurarmos: o direito não se reduz à lei. Mas, sem dúvida, sua especificidade moderna (que é, a um só tempo, proprietária e colonial) deriva da normatividade legal. Nem normatividade ética nem normatividade política: o pós-bulionismo é marcado pela prevalência da norma legal. Qualquer aula de introdução ou teoria do direito o explica... ou deveria.
Doze dias após a queda do governo socialista no Chile, em 1973, Pablo Neruda deixava a vida. Toda sua obra é marcada por política e ternura, luta e sensibilidade, indignação e amor. Talvez uma interpretação de seu soneto XXVIII, do poemário “Cem sonetos de amor”, permita-nos uma nova viagem sobre este interessante terreno, a ambigüidade do direito, ainda que sem perder a ternura.
O conflito me parece seja um universal humano. É coerente pensar os homens, as culturas, os povos, a intersubjetividade sem a presença do conflito? Me parece pouco plausível. Mas até aí nada de novo. A questão se coloca relevante quando se consegue pensar em conflitos de modalidades distintas. Proponho aqui, então, a possibilidade de se ter no horizonte uma sociedade não organizada sob o conflito mas antes decorrente dele. Uma vez mais, a novidade não é meu alvo. Até aqui, pois bem, estamos conversando sobre utopia. O que de fato interessa é perceber a historicidade dos conflitos que se apresentam como os “cortes estruturais” de nossas realidades. A meu ver – e já refleti sobre isto aqui no blogue – classe, raça e gênero são conflitos que estruturam nossa sociedade “global”. É possível superá-los? Se os desistoricizarmos, não. E mais: se universalizarmos os cortes estruturais da realidade (ou seja, os conflitos históricos que organizam a vida social e que não se confundem com a interação conflitual prévia a que estamos expostos, ainda que estas sejam influenciadas por aqueles), perdemos de vista a possibilidade da própria construção ativa da história. Quer dizer, da grande história, a autoconscientemente visada, já que as histórias individuais são sempre por nós produzidas e, sim, muito ativamente. Aqui, um problema de mediações.
O soneto de Neruda é a síntese que permite mirar a existência de tais mediações. Mesmo que não as enuncie, as percebe. O micro e o macro estão presentes desde o início de seus versos, quando o amor é encontrado em todos os planetas e em todos os grãos. Infinitos-macro e infinitos-micro, portanto. E neste mirante, Neruda sugere, segundo minha “mediunidade” (interpretação cinqüentenária), o que vim dizendo anteriormente: há conflitos históricos e que estruturam, pela força, nossa realidade, e há conflitos formativos, como o amor, que possibilitam uma colheita, não mecânica, ao fim. Eis, assim, que o conflito sempre há e sempre houve, mas há conflitos históricos que desumanizam os contendores. Impossível não lembrar, agora, de Louverture lendo a “Fenomenologia do espírito” e se conscientizando com os seus de que se poderia ver e ter um Haiti livre...
Mais do que, porém, a dialética entre senhor e escravo, o poema de Neruda me faz refletir sobre os níveis de concreção desta dialética mesma. Prévia a ela, há a vida. Posteriormente, a sua organização, a organização da vida, necessariamente intersubjetiva (para usar um jargão da filosofia novecentista). Dentro desta organização, um grão chamado “legalidade”. Para alguns, um planeta; para mim, um grão, ainda assim.
O conflito desumanizador – impossível não lançar mão também de uma expressão que resultará na imputação, bem o sei, a mim: “humanista!” – se caracteriza, aqui, pela antropomorfização do “natural” – e nesse ponto não discutamos a superação epistêmica da dicotomia homem-natureza, um interessante debate. No soneto, há sapatos da guerra, países e cabelos do vento, enfim, tudo com o incômodo artigo definido que nos causa tanto estranhamento. Ocorre que o mais interessante na minha conversa com o além é o fato de que os conflitos aglutinados nas estrofes apontam para a desnecessidade histórica de muitos deles, ao menos no que tange a sua “capacidade” de organizar a realidade. O conflito desumanizador não precisa subsistir. Ainda que dor e alegria sejam a imagem e a semelhança de seus criadores, guerra e amor nem sempre podem carimbar uma história local. Caso contrário, o etnocentrismo seria um universal (e aqui fica a indagação de meus alunos a Lévi-Strauss...).
Tenho mais ou menos claro o obstáculo que se apresenta com o excessivo uso da dualidade universal-histórico. Mas creio que, munido de boas mediações, ela seja bem entendida e didaticamente útil. O difícil, também sei eu, é externar tais mediações...
Voltando ao poema: os homens amam, porém, organizados pela desumanização também desenvolvem atributos desumanizantes de seu “amor”, uma vez que a flor trabalha e o orvalho tem direitos. Aí está. Voltamos ao problema inicial desta tresloucada e alucinante exegese. O que os direitos do rocio (orvalho) podem nos indicar, nesse contexto? Penso ser mais prudente deixar de devaneios e relembrar Pressburger:
por mais que se argumente sobre as contradições inerentes ao sistema jurídico o direito burguês está, como sempre historicamente esteve, capacitado a superar ou a manter essas contradições contanto que mantida, ou quando muito, aperfeiçoada sua legalidade.
A legalidade da posse presidencial de Pinochet é uma excrescência jurídica? Ou qualquer outro ato de mesma índole, como o estado de exceção nazi alemão ou a emenda constitucional da ditadura militar brasileira? Quiçá, a resposta de Pressburger seja a definitiva, ainda que historicamente!
No entanto, é o amor que carrega consigo os “direitos do orvalho”, um “direito” de renascer e cair sobre si o novo de cada dia. E o amor, como marca do homem em seu trabalho vivo, funda a realidade e não é sua decorrência. Conseqüência são seus cortes estruturais. Enquanto não pudermos nos livrar de todos estes, que procuremos ao menos os não-desumanizantes. Daí que o diálogo acaba se tornando nossa obsessão. Nossa porque de nós, os inconformados com os direitos da tempestade; obsessão, já que o não-diálogo é desumanizador e desistoricizador, ainda que a presença do diálogo não implique rejeição ao conflito. Mais do que direito, a referência agora é à política: não há novo mundo possível sem a transição e esta não se faz senão pela tradução; só traduz quem procura obsessivamente pelo diálogo, para conscientizar-se coletivamente, como Louverture, Neruda ou Pressburger, sobre os direitos do orvalho que nos concernem.
No entanto, é o amor que carrega consigo os “direitos do orvalho”, um “direito” de renascer e cair sobre si o novo de cada dia. E o amor, como marca do homem em seu trabalho vivo, funda a realidade e não é sua decorrência. Conseqüência são seus cortes estruturais. Enquanto não pudermos nos livrar de todos estes, que procuremos ao menos os não-desumanizantes. Daí que o diálogo acaba se tornando nossa obsessão. Nossa porque de nós, os inconformados com os direitos da tempestade; obsessão, já que o não-diálogo é desumanizador e desistoricizador, ainda que a presença do diálogo não implique rejeição ao conflito. Mais do que direito, a referência agora é à política: não há novo mundo possível sem a transição e esta não se faz senão pela tradução; só traduz quem procura obsessivamente pelo diálogo, para conscientizar-se coletivamente, como Louverture, Neruda ou Pressburger, sobre os direitos do orvalho que nos concernem.
Pazello,
ResponderExcluirGostei demais de sua hermenêutica miscelânica a partir do poema do Neruda trazendo o universal e histórico, a vida e o direito e o desemboque na nossa feliz obsessão que é o diálogo.
A tensão entre essas dicotomias deve ser trazida a tona pela persistência na dialogicidade. Pelo menos é nisso que acredito e é esse o ponto de partida que também penso que deve sempre servir como "chão" (caminho).
Uma acusação de humanista parece um tanto quanto menor frente ao que se busca- sem ignorar, claro, os riscos de uma excessiva antropormofização do mundo- que é evitar caminhos da desumanização, conforme seu alerta. Um resgate do "humano" em sua acepção que perpassa o bom, o justo mas preenchendo tais categorias com o recheio histórico? (Lembrando que o justo não significa direito e muito menos a letra da lei).
Mas a questão é o esforço para que o diálogo exista não só com "os nossos", mas que também se realize com "os outros." E é este último que se revela desafiador: até que ponto os dois pontos de vista estariam dispostos a isto? Pazello lembra momentos históricos em que a intersubjetividade(a democracia em seus meios de escolhas representativas realmente cabem bem aí) simplesmente foi ignorada pelos interesses de um dos lados deste movimento conflitivo, o que se revela ponto do fim da possibilidade do diálogo ( o que é terrível!).
Enfim, a idéia da manutenção do diálogo de fato é algo que tenho como norte pessoal, por mais difícil que seja às vezes.Muitas vezes.
Obrigada pelo texto!
Abraços
Valeu, Grande Pequena Naiara!
ResponderExcluirAo lado do diálogo como projeto pessoal, penso que ele seja uma perspectiva epistêmcia ou gnosiológica. E, por isso mesmo, não é um "vale-tudo", tem limites, e estes são a libertação popular da classe-que-vive-do-trabalho!
Abraços