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domingo, 26 de junho de 2011

Os direitos do orvalho: ou Da nossa obsessão pelo diálogo


AMOR, de grão a grão, de planeta a planeta,
a rede do vento com seus países sombrios,
a guerra com seus sapatos de sangue,
ou melhor o dia e a noite da espiga.

Por onde fomos, ilhas ou pontes ou bandeiras,
violinos do fugaz outono atormentado,
repetiu a alegria dos lábios do copo,
a dor nos deteve com sua lição de pranto.

Em todas as repúblicas desenvolvia o vento
seu pavilhão impune, sua glacial cabeleira,
e logo regressava a flor a seus trabalhos.

Mas em nós nunca se calcinou o outono.
E em nossa pátria imóvel germinava e crescia
o amor com os direitos do orvalho.

(Soneto XXVIII, de Pablo Neruda, em
"Cem sonetos de amor")

No prefácio a um texto do subsecretário de justiça chileno ao tempo de Salvador Allende, nosso insurgente teórico do direito Miguel Pressburger questiona: “a burguesia suporta a ilegalidade?” Coincidentemente, ou não, no dia 26 de junho de 1974, Augusto Pinochet “assumiu” a presidência do Chile. Em verdade, assumiria “de direito”, porque “de fato” já o havia feito quase um ano antes, quando articulou as forças armadas para derrubarem e assassinarem o presidente constitucional.

O direito e sua legalidade sempre foram prenhes de uma ambigüidade natimorta. Na verdade, uma ambigüidade heráldica, atávica, legado dos rudimentos do “jurídico” encontrado nas priscas eras adâmicas. É certo que devemos encarar Lira Filho e, em nosso espelho, assegurarmos: o direito não se reduz à lei. Mas, sem dúvida, sua especificidade moderna (que é, a um só tempo, proprietária e colonial) deriva da normatividade legal. Nem normatividade ética nem normatividade política: o pós-bulionismo é marcado pela prevalência da norma legal. Qualquer aula de introdução ou teoria do direito o explica... ou deveria.

Doze dias após a queda do governo socialista no Chile, em 1973, Pablo Neruda deixava a vida. Toda sua obra é marcada por política e ternura, luta e sensibilidade, indignação e amor. Talvez uma interpretação de seu soneto XXVIII, do poemário “Cem sonetos de amor”, permita-nos uma nova viagem sobre este interessante terreno, a ambigüidade do direito, ainda que sem perder a ternura.

O conflito me parece seja um universal humano. É coerente pensar os homens, as culturas, os povos, a intersubjetividade sem a presença do conflito? Me parece pouco plausível. Mas até aí nada de novo. A questão se coloca relevante quando se consegue pensar em conflitos de modalidades distintas. Proponho aqui, então, a possibilidade de se ter no horizonte uma sociedade não organizada sob o conflito mas antes decorrente dele. Uma vez mais, a novidade não é meu alvo. Até aqui, pois bem, estamos conversando sobre utopia. O que de fato interessa é perceber a historicidade dos conflitos que se apresentam como os “cortes estruturais” de nossas realidades. A meu ver – e já refleti sobre isto aqui no blogue – classe, raça e gênero são conflitos que estruturam nossa sociedade “global”. É possível superá-los? Se os desistoricizarmos, não. E mais: se universalizarmos os cortes estruturais da realidade (ou seja, os conflitos históricos que organizam a vida social e que não se confundem com a interação conflitual prévia a que estamos expostos, ainda que estas sejam influenciadas por aqueles), perdemos de vista a possibilidade da própria construção ativa da história. Quer dizer, da grande história, a autoconscientemente visada, já que as histórias individuais são sempre por nós produzidas e, sim, muito ativamente. Aqui, um problema de mediações.

O soneto de Neruda é a síntese que permite mirar a existência de tais mediações. Mesmo que não as enuncie, as percebe. O micro e o macro estão presentes desde o início de seus versos, quando o amor é encontrado em todos os planetas e em todos os grãos. Infinitos-macro e infinitos-micro, portanto. E neste mirante, Neruda sugere, segundo minha “mediunidade” (interpretação cinqüentenária), o que vim dizendo anteriormente: há conflitos históricos e que estruturam, pela força, nossa realidade, e há conflitos formativos, como o amor, que possibilitam uma colheita, não mecânica, ao fim. Eis, assim, que o conflito sempre há e sempre houve, mas há conflitos históricos que desumanizam os contendores. Impossível não lembrar, agora, de Louverture lendo a “Fenomenologia do espírito” e se conscientizando com os seus de que se poderia ver e ter um Haiti livre...

Mais do que, porém, a dialética entre senhor e escravo, o poema de Neruda me faz refletir sobre os níveis de concreção desta dialética mesma. Prévia a ela, há a vida. Posteriormente, a sua organização, a organização da vida, necessariamente intersubjetiva (para usar um jargão da filosofia novecentista). Dentro desta organização, um grão chamado “legalidade”. Para alguns, um planeta; para mim, um grão, ainda assim.

O conflito desumanizador – impossível não lançar mão também de uma expressão que resultará na imputação, bem o sei, a mim: “humanista!” – se caracteriza, aqui, pela antropomorfização do “natural” – e nesse ponto não discutamos a superação epistêmica da dicotomia homem-natureza, um interessante debate. No soneto, há sapatos da guerra, países e cabelos do vento, enfim, tudo com o incômodo artigo definido que nos causa tanto estranhamento. Ocorre que o mais interessante na minha conversa com o além é o fato de que os conflitos aglutinados nas estrofes apontam para a desnecessidade histórica de muitos deles, ao menos no que tange a sua “capacidade” de organizar a realidade. O conflito desumanizador não precisa subsistir. Ainda que dor e alegria sejam a imagem e a semelhança de seus criadores, guerra e amor nem sempre podem carimbar uma história local. Caso contrário, o etnocentrismo seria um universal (e aqui fica a indagação de meus alunos a Lévi-Strauss...).

Tenho mais ou menos claro o obstáculo que se apresenta com o excessivo uso da dualidade universal-histórico. Mas creio que, munido de boas mediações, ela seja bem entendida e didaticamente útil. O difícil, também sei eu, é externar tais mediações...

Voltando ao poema: os homens amam, porém, organizados pela desumanização também desenvolvem atributos desumanizantes de seu “amor”, uma vez que a flor trabalha e o orvalho tem direitos. Aí está. Voltamos ao problema inicial desta tresloucada e alucinante exegese. O que os direitos do rocio (orvalho) podem nos indicar, nesse contexto? Penso ser mais prudente deixar de devaneios e relembrar Pressburger:
por mais que se argumente sobre as contradições inerentes ao sistema jurídico o direito burguês está, como sempre historicamente esteve, capacitado a superar ou a manter essas contradições contanto que mantida, ou quando muito, aperfeiçoada sua legalidade.
A legalidade da posse presidencial de Pinochet é uma excrescência jurídica? Ou qualquer outro ato de mesma índole, como o estado de exceção nazi alemão ou a emenda constitucional da ditadura militar brasileira? Quiçá, a resposta de Pressburger seja a definitiva, ainda que historicamente!

No entanto, é o amor que carrega consigo os “direitos do orvalho”, um “direito” de renascer e cair sobre si o novo de cada dia. E o amor, como marca do homem em seu trabalho vivo, funda a realidade e não é sua decorrência. Conseqüência são seus cortes estruturais. Enquanto não pudermos nos livrar de todos estes, que procuremos ao menos os não-desumanizantes. Daí que o diálogo acaba se tornando nossa obsessão. Nossa porque de nós, os inconformados com os direitos da tempestade; obsessão, já que o não-diálogo é desumanizador e desistoricizador, ainda que a presença do diálogo não implique rejeição ao conflito. Mais do que direito, a referência agora é à política: não há novo mundo possível sem a transição e esta não se faz senão pela tradução; só traduz quem procura obsessivamente pelo diálogo, para conscientizar-se coletivamente, como Louverture, Neruda ou Pressburger, sobre os direitos do orvalho que nos concernem.