“A advocacia popular é uma categoria muito especial da advocacia geral. É especial por duas razões. Primeiro, porque quem faz essa advocacia tem uma opção pelo não enriquecimento fácil. Uma opção muito difícil de ser feita, num mundo onde o dinheiro impera. Quem faz essa opção não faz opção por ganhar muito. Por outro lado, hoje, um advogado popular tem que ser tão ou mais preparado que um advogado das elites, porque o sistema é contra o povo. Algum advogado de elite que tenha algum verniz jurídico é capaz de, entendendo os meandros da justiça, defender os interesses de seus clientes. Ao contrário, ao advogado popular não basta conhecer os meandros da justiça, ele tem que criar direito, pôr em xeque o conhecimento jurídico dos juízes e dos advogados adversos. Ele tem que questionar muito profundamente as coisas. A categoria especial de advogado popular é aquele que é mais bem formado, mais ativo, mais cuidadoso e ganha menos. É uma das condições para ser advogado popular.” (em “Memória jurídica do Paraná”. Curitiba: Pós-Escrito, 2007).
Este é um trecho do depoimento do professor Carlos Frederico Marés para um grupo de professores e estudantes, em Curitiba, procurando conhecer sobre seu trajeto político e jurídico. Marés, em meio a tal trajetória, chega à advocacia popular e, em meu entender, toca questões centrais às assessoria jurídicas populares (e, portanto, não só às advocacias) como um todo.
Trata-se de uma opção, como ele bem o demonstra. E uma opção de classe. Significa que a escolha pela assessoria popular reflete a compreensão do mundo que se possa ter. Este mundo é, objetivamente, desigual e estruturado para assim ser. Decorre disso que, subjetivamente, o assessor popular não pode avizinhar-se das seduções do poder e das classes dominantes, sem gerar uma contradição com sua própria visão de mundo. Em outras palavras, quer dizer que não há dois deuses a se seguir: amealhar-se aos dois significa fazer o jogo de um deles. O “mundo do trabalho” (no sentido abstratamente oposto ao “Mundo do capital”), portanto, exige coerência de todos os que com ele se comprometem.
Mas o que me parece mais relevante de tal depoimento é a clareza quanto à necessidade de que o assessor jurídico popular “tem que criar direito”. Criar significa conhecer o que já está disponível e, sobre isto, construir coisas novas que atendam às necessidades daquela opção primeira, colocada acima. E se o que já existe não é suficiente para se satisfazer tais necessidades, trata-se de criticá-las, porque muitas das vezes estas insuficiências são propositais. Logo, criar é conhecer profundamente e criticar tão profundamente quanto. Mas criar também é inventar e reinventar. Neste sentido, criamos e reinventamos teses judiciárias, acadêmicas e políticas. Pouco serventia nos terão ou de validade muito restrita, se não as conseguirmos disseminar, divulgar, publicizar. Daí que se esboça, uma vez mais para mim, a necessidade de construirmos um projeto de comunicação coletivo, uma verdade teoria revolucionária da comunicação.
As últimas postagens deste blogue ressaltaram isto ("Praticar, refletir e registrar", de Assis Oliveira, e "Registro histórico e AJP: um vídeo de CORAJE", de Lucas Vieira Barros de Andrade); eu mesmo apontei para alguns desses problemas há algum tempo ("Considerações sobre o popular: direito e cultura"). Quero trazer, agora, uma nova discussão, que nem é tão nova assim.
Na história das lutas populares do século XX brasileiro (e quando falo “brasileiro” insiro tal adjetivação no contexto continental), foi uma constante a tentativa de acumular forças em prol dos projetos que estas lutas objetivavam. As reivindicações dos trabalhadores, dentre outras, sempre passaram pela certeza da necessidade de ampla divulgação de suas atuações. Saber do êxito disto, contudo, são outros quinhentos. Ocorre que sempre foi uma marca entre-nós a existência de jornais populares e de projetos editoriais comprometidos com as lutas populares. Particularmente, poderíamos lembrar um destes projetos amplamente documentado: a linha editorial dos isebianos e sua franca articulação com os meios de divulgação disponíveis (ver "ISEB: um recenseamento bibliográfico", de Edison Bariani Júnior).
Para o direito, não podemos deixar de resgatar dois belos projetos: um encabeçado por Lira Filho e a editora Obreira (que lançou algumas de suas obras, tais quais: “Problemas atuais do ensino jurídico” (1981) e “Razões de defesa do direito” (1981)); e outro, pela editora Acadêmica. Quanto a esta, apesar de eu não possuir maiores e mais formais informações sobre ela (o que, por si, já daria um belo trabalho de pesquisa), sei que editou livros durante o período que foi de, pelo menos, 1987 até 1997. Livros essenciais para a crítica jurídica nacional ali foram publicados. Cito alguns (ainda estou por construir uma lista mais completa):
ARGÜELLO, Katie Silene Cáceres. O Ícaro da modernidade: direito e política em Max Weber. São Paulo: Acadêmica, 1997, 215 p.
ARRUDA JÚNIOR, Edmundo Lima de. Introdução à sociologia jurídica alternativa (ensaios sobre o direito numa sociedade de classes). São Paulo: Acadêmica, 1993, 195 p.
ARRUDA JÚNIOR, Edmundo Lima de (org.). Lições de direito alternativo. São Paulo: Acadêmica, 1991, 171 p.
ARRUDA JÚNIOR, Edmundo Lima de (org.). Lições de direito alternativo. São Paulo: Acadêmica, vol. 2, 1992, 207 p.
ARRUDA JÚNIOR, Edmundo Lima de (org.). Lições de direito alternativo do trabalho. São Paulo: Acadêmica, 1993, 195 p.
ARRUDA JÚNIOR, Edmundo Lima de (org.). Razão e racionalidade jurídica. São Paulo: Acadêmica, 1994, 84 p.
BORGES FILHO, Nilson. Os militares no poder. São Paulo: Acadêmica, 1994, 176 p.
CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito alternativo na jurisprudência. São Paulo: Acadêmica, 1993, 216 p.
CARVALHO, Amilton Bueno de. Magistratura e direito alternativo. São Paulo: Acadêmica, 1992, 96 p.
CAUBET, Christian Guy. As verdades da guerra contra o Iraque. São Paulo: Acadêmica, 1991, 70 p.
CAUBET, Christian Guy (org.). O Brasil e a dependência externa. São Paulo: Acadêmica, 1989, 143 p.
CHAGAS, Sílvio Donizete (org.). Lições de direito civil alternativo. São paulo: Acadêmica, 1994, 164 p.
CLÈVE, Clèmerson Merlin. O direito e os direitos: elementos para uma crítica do direito contemporâneo. São Paulo: Acadêmica; Curitiba: Scientia et Labor, 1988, 159 p.
LÊNIN, V. I. Teses de abril: sobre as tarefas do proletariado na presente revolução. Tradução de J. A. Cardoso. São Paulo: Acadêmica, 1987, 84 p.
PACHUKANIS, Evgeny Bronislavovich. Teoria geral do direito e marxismo. Tradução de Sílvio Donizete Chagas. São Paulo: Acadêmica, 1988, 136 p.
PINTO, João Batista Moreira. Direito e novos movimentos sociais. São Paulo: Acadêmica, 1992, 94 p.
RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Ensino jurídico e direito alternativo. São Paulo: Acadêmica, 1993, 228 p.
RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Ensino jurídico: saber e poder. São Paulo: Acadêmica, 1988, 136 p.
STUCKA, Petr Ivanovich. Direito e luta de classes: teoria geral do direito. Tradução de Sílvio Donizete Chagas. São Paulo: Acadêmica, 1988, 176 p.
WARAT, Luis Alberto. Manifestos para uma ecologia do desejo. São Paulo: Acadêmica, 1990, 136 p.
WARAT, Luis Alberto. O amor tomado pelo amor: crônica de uma paixão desmedida. São Paulo: Acadêmica, 1990, 112 p.
WOLKMER, Antonio Carlos. Constitucionalismo e direitos sociais no Brasil. São Paulo: Acadêmica, 1989, 152 p.
WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. São Paulo: Acadêmica, 1991, 152 p.
Revista de direito alternativo. São Paulo: Acadêmica.
Sim, basta olhar para os autores e perceber que quase todos passaram por uma escola jurídica. Mas isto impende a que pensemos que não devemos ter medo de nossos grupos políticos e círculos intelectuais. Devemos, isto sim, verticalizar nossa autocrítica e alargar nossos horizontes coletivos. Por outro lado, também é verdade que existem projetos editoriais populares em marcha (o exemplo da editora Expressão Popular é bastante significativo, ainda mais que tem aberto espaço para a crítica jurídica, já tendo lançado quatro obras entre 2007 e 2010. No entanto, é preciso aperfeiçoar, em muito, sua organicidade política e a capacidade de diálogo.
É certo que editar livros é algo bastante limitado para quem pretende propor uma “teoria revolucionária da comunicação” ou, mais modestamente, um “projeto de comunicação da AJP”. Seu primeiro grande limite é estar envolto na intelectualidade jurídica. Mas, mais do que isso: livros não fazem transformações estruturais. Quem as fará serão as pessoas coletivamente engajadas. Mas, sem dúvida, nada farão sem a formação de uma rede de contatos, troca de experiências e articulação política; sem conhecimentos e práticas realizadas a partir dos meios de comunicação (culturais, como os áudio-visuais, ou de contatos, como os que derivam dos transportes); e sem um projeto de aprofundamento teórico e compreensão da realidade que possa ganhar vida com a “criação” e disseminação de práxis.
As reflexões de Marés e de Pazello são de quem vivencia a práxis e elabora o Direito a partir dela. Acho que a ideia de advogado popular passa pelas questões suscitadas, de comprometimento político e criatividade jurídica, mas é, sem dúvida, a estratégia de organização que impulsiona ambos, e torna possível vitórias num espaço de poder marcado pelo elitismo e a disputa de classe. Quando trabalho com povos e comunidades tradicionais sempre dizemos que os conceitos normativos (dignidade, família, trabalho, infância, etc.) estão em disputa, para dizê-los que eles próprios são produtores dos seus direitos, e uma das coisas que acho mais fascinante desse trabalho é quando o próprio povo diz o seu direito e o reivindica/cria. Logo, ser um advogado popular é tanto ter certa criatividade para criar o Direito quanto ter sensibilidade para escutar e aprender com os criados populares do Direito e, acima de tudo, saber dosar certo grau de "formalização do pleito" para que os doutos judiciais, políticos ou administrativos compreendam "o direito achado na rua."
ResponderExcluirA discussão sobre comunicação e ajp ganha mais um espaço de problematização: Através de proposta da ENECOS, CORAJE e CAJUINA se articulam na discussão de uma comunicação popular na construção de um projeto de extensão popular.
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