Ulysses Guimarães e a Constituição Cidadã |
Por Luiz Otávio Ribas
A visão que alguns intelectuais de outras disciplinas, como a História, tem em relação ao Direito é de desprezo. Uma vez que priorizam análises sobre o Estado, a organização política e o poder. Neste sentido, ao se constatar a marginalidade do discurso e cultura jurídicas percebe-se o quanto análises de totalidade precindem das reflexões próprias da "ciência" jurídica. Também podem demonstrar o quanto se supervaloriza o Direito em análises próprias dos "cientistas" do Direito.
Por outro lado, as pesquisas de teoria do direito não podem ser desprezadas, pela sua especificidade e contribuição original - principalmente em Hans Kelsen. A positivação, positividade e afirmação do Direito são passos decisivos na demarcação do conceito do que se pretende estado de Direito, ou Estado de Direito.
Um bom exemplo desta importância está no estudo da Assembléia Nacional Constituinte de 1987 e da política de reforma agrária. Em 1987, as classes-que-vivem-do-trabalho no campo, burgueses e latifundiários perderam a oportunidade de firmar por meio da lei um acordo político de convivência. Seria a positivação da propriedade como um direito e o seu efetivo cumprimento da função social. O que houve foi a previsão legal deste acordo, que não ocorreu de fato. Na realidade, a classe dos latifundiários interpôs sua força bruta e manipulação por lobbies (negociatas). Os anos seguintes foram de muita violência no campo, após a promulgação da Constituição Federal de 1988. A violência foi consequência das graves desigualdades sociais, péssima distribuição de terra, costume de arbitrariedade pelo Estado, força bruta dos latifundiários e o exercício da desobediência civil violenta fundada na política de ocupação de terra de movimentos sociais.
Grupos como o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST), fundado em 1984, foi precursor da contestação ao Estado brasileiro pela insuficiência da sua política de Reforma Agrária. Esta que fora enterrada na constituinte de 1987 pelos movimentos sociais de extrema-direita, como a União Democrática Ruralista (UDR), fundada em 1985, e a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), fundada em 1960.
Neste ponto é necessário reivindicar pela teoria do direito o limite da lei defendido pela burguesia. Justamente porque, naquela ocasião, este limite foi esgaçado por classes conservadoras que não correspondem ao mínimo de acordo necessário para serem aceitos na democracia. Esta pode oferecer uma organização política que exclua estes setores "feudais" e totalitários. A luta pelo que está garantido em lei significa manter o acordo político de participação no espaço democrático.
O discurso do direito é fugaz por não se garantir historicamente. Quando as circunstâncias políticas tornam insuportável o Estado de Direito este é o primeiro a cair: por ato brutal de acirrar as desigualdades, ou por ato revolucionário de libertar pela igualdade.
Ler ainda:
Artigo "UDR E TFP: A Força bruta que enterrou a reforma agrária na constituinte de 1987", publicado na Revista Digital " Em Debate", do Laboratório de Sociologia do Trabalho da UFSC, n. 5, 2011.
Ótimo post. Muito clara a leitura do direito em relação à sociedade civil.
ResponderExcluirCamarada Luiz,
ResponderExcluirSeu texto tem a marca da tradução: traduzir a crítica jurídica para estudantes, professores e outros trabalhadores do direito que não se sensibilizam com a desnecessidade histórico do direito.
Toda tradução é, como foi enfadonhamente - até - repetido por alguns, traição do sentido original. É um obstáculo que não se pode ultrapassar. E na exata medida desta não ultrapassagem, pode acentuar pontos marginais do que está sendo traduzido.
Me parece que alguns pontos de sua tradução levam a isso. Ao ler o texto, me questionei:
1. Por que enfatizar a criatividade de um Quélsen e não a de um Pachucânis?
2. Por que cargas d'água legitimar a assembléia constituinte burguesa como um acordo (habermasiano) de convivência, num país geopoliticamente alocado na mais-que-exceção?
3. Seria possível a constituição neutralizar os conflites no campo, por exemplo?
É claro que você, muito percucientemente aliás, acerta a mão na análise da positividade. É preciso reconhecer a especificidade histórica do direito ocidental colonial para se o negar. Mas como "afirmar" sua desnecessidade, assinalando a necessidade de "reivindicar pela teoria do direito o limite da lei defendido pela burguesia"?
Espero ter oportunidade de dialogar com suas colocações, Luiz, fazendo um paralelo com um texto fundamental de Michel LÖWY intitulado "As organizações de massa, o partido e o estado: a democracia na transição para o socialismo (Cuba e Nicarágua)". Comparando as experiências revolucionárias latino-americanas, ele nos indica: "sem revolução, isto é, sem destruição pela insurgência popular, do aparelho repressivo do Estado burguês, de suas estruturas repressivas e burocráticas, não é possível começar a transição para o socialismo. [...] A democracia socialista não é uma 'extensão' da democracia burguesa (na qual os instrumentos de opoder real ficam nas mãos da classe dominante)".
Em outro momento do mesmo texto, o auge da reflexão de 1987: "a passagem da lei do lucro e da concorrência capitalista a uma lógica capitalista, a adesão do povo a um projeto coletivo (e não de lucro individual), é impossível se cada trabalhador não se sentir um participante ativo das decisões coletivas, e co-responsável pela orientação adotada. O pluralismo político - quer dizer, a livre organização de todos os partidos políticos que respeitam a legalidade revolucionária - não é uma concessão à burguesia..."
Como re-traduzir sua proposta, tendo em vista o horizonte verdadeiramente insurgente?
Abraços revolucionários!
Muito bom o texto Ribas, eu também nutri um certo preconceito em relação ao direito, graças a tua influência, li sobre o pluralismo jurídico, o que serviu pra entender um pouco melhor a utilização do direito como tática. Caro Ricardo: concordo com você, além da destruição do aparelho repressivo do estado é necessário o desmonte total do estado, pois o mesmo é um aparelho que foi criado para servir á burguesia, e como tal, não serve à emancipação, onde se teimou em tomar o estado deu no que deu.
ResponderExcluirOlá
ResponderExcluirQue maravilha, esta nossa política de colunas quinzenais proporcionou para mim o retorno aos debates.
Quero dizer que este é mais um texto tático, colocado para a direita empresarial conservadora, inclusive em seus meios.
Como todo argumento de combate é repleto de afirmações do que é marginal, tático simplesmente.
O esforço é trazer aqueles que estão apostando na construção de um Estado Constitucional - pequena parte da juventude.
Acredito que diferenciar a burguesia da UDR e da TFP seja algo muito complexo, mas possível em teoria e na prática. Não podemos esquecer que o maior resquício de nossa política colonial escravista é o latifúndio, e que as classes que o defendem estão para além do capitalismo. Esta característica não pode ser subestimada. Claro que é mais um argumento panfletário, como o que lamenta a inexistência de uma Revolução burguesa no Brasil, ou alguma outra coisa cara aos etapistas (não é o nosso caso).
Aproveito para publicar os trechos que não foram incluídos pela autocensura (própria dos comunicadores que adotam táticas de 'entrismo' - o problema é que não entro em grandes veículos eheh):
"A luta pelo que está garantido em lei significa manter o acordo político de participação no espaço democrático. Senão restarão poucas alternativas à violência legítima da revolução.
A revolução não pode servir como ameaça, sob pena de repetirmos erros históricos de não estarmos preparados, apesar dos alardes histéricos de militares e americanos (como em 1964). Esta é necessária sempre que insuportável o viver neste espaço de hipocrisia e cinismo que é nossa Constituição.
Por isto, os exemplos de socialismo real precisam ser pensador pelo Direito. Principalmente com Pachukanis, e outros teóricos derrotados no embate político soviético. É possível que um ato que se pretende libertador reproduza um ato totalitário, como na experiência stalinista. Os acordos políticos precisam, transitoriamente, ser 'plastificados'pelo Direito, que é discurso comum e compreensível - o direito dos trabalhadores.
A abolição do Direito precisa também ser pensada com ele, pois sua desnecessidade depende do despertar da consciência. Este pode vir pela revolução.
Para aqueles com quem precisamos conviver, o direito. Para nós, a liberdade do seu vazio".
Ribas,
ResponderExcluirDestaco o trecho:
"A luta pelo que está garantido em lei significa manter o acordo político de participação no espaço democrático."
Acho que ele sintetiza de uma forma extremamente criativa e crítica parte do que algumas estratégias de povos e comunidades tradicionais objetivadas em movimentos sociais: lutar por direitos e pela gestão deles.
Evidentemente, seu texto vai mais além disso, ao propor o próprio questionamento do campo jurídico como espaço de poder burguês, tal como analisou no caso da assembléia constituinte.
A bem da verdade, considero o campo jurídico e os direitos positivados como em disputa - por significação e implementação - e tenho muito nítida a ideia de que lutar pela "desnecessidade" do Direito é lutar, ao mesmo tempo, pela necessidade dos "direitos", num jogo retórico que minimiza as ideologias hegemônicas que regem o campo para afirmar a importância de seu conteúdo normativo para o fortalecimento de lutas e sujeitos, apesar de isso não significar a desconsideração ao pluralismo jurídico.
Abraços.