domingo, 19 de dezembro de 2010

Considerações sobre o "popular": direito e cultura


Em seu comentário a minha coluna do último domingo (Ludovico Silva e a crítica à naturalização metódica), Luiz Otávio Ribas questionou-me: "há espaço para o direito na cultura popular?" Esta pergunta me inquieta há algum tempo e agora vou arriscar-me a fazer algumas considerações sobre ela.

O adjetivo "popular" nos acompanha há muito e Luiz Otávio e eu compartilhamos de que a luta social do agora se referencia em um projeto popular. Não à-toa, construímos uma reflexão baseada em quatro pilares (propostas de práticas políticas insurgentes), cada qual ancorado e alicerçado sobre bases populares: a resistência, o trabalho, a organização e a educação - daí a assessoria popular, a cooperação popular, os movimentos populares e a universidade popular.

No entanto, o que vem a ser este "popular"? O que significa falar nisto dentro de nossa tradição interpretativa da realidade, que vê Cristo, nas festas coloniais, descendo do altar e sambando com o povo? Ou quando se soltam fogos de artíficio, durante a realização de missas, reavivando os tempos das galilés, ainda que sublevadas?

Penso que uma boa via de acesso a esta discussão se dê pela problemática da cultura. De antemão, porém, devo indicar que a noção de "cultura" é muito mais complexa do que costuma ser empregada comumente e até apresenta-se como calcanhar-de-Aquiles de muitas das teorizações empreendidas no seio das teorias (mesmo as críticas) do direito. Nesse sentido, seria coerente um aprofundamento em bases antropológicas, algo, porém, a que não vou me dedicar aqui. Vou tomar outro rumo.

Quero atacar a questão do "popular" por meio da "cultura popular", no senso mais usual que a expressão pode aportar.

Muito em voga sempre esteve para as teorias críticas, em geral, o problema da cultura de massas. Em especial porque o século XX trouxe a tiracolo os grandes meios de comunicação. Dentro do imaginário da revolução socialista que nós, marxistas, temos como horizonte, é quase impossível não lembrar de Lênin discursando da sacada do Palácio Krzesinska, nas jornadas de julho de 1917 (conforme a clássica tela de Moravov, ao lado). Esta forma de comunicação social já não pode ser mais a paradigmática com a grande avalancha do rádio, da televisão, do cinema e da informática. Agora, as casas são o teatro que recebe mensagens e informações decodificadas pelas antenas e satélites que colonizam todo nosso âmbito cultural, sem sequer nos darmos conta disso. No entanto, esta crítica pujante levada a cabo pelos franquefurtianos, por exemplo, não pôde senão cair em uma aporia: a indústria cultural é o extremo oposto da cultura dos industriários ou são dois lados da mesma moeda?

Assim é que faz sentido toda a preocupação não franquefurtiana (de Grâmsci ou Altusser, por exemplo) em encontrar órgãos ou aparelhos de hegemonia nos mais diversos âmbitos da institucionalidade na sociedade capitalista. E mais do que isso: a possibilidade de subverter esses canais de comunicação.

Eis, portanto, que pode vir à tona a distinção - em um nível privilegiado de abstração - entre a cultura de massas e a cultura popular. Se a cultura erudita não nos serve (pois que a vilania da arte erudita cala e torna anônimos os artistas do povo), tampouco pode nos servir a cultura estratificada e vendida aos cântaros nas esquinas radiofônicas. Ocorre, porém, que também não nos adianta pura e simplesmente rejeitar a chamada cultura de massas, como alienação popular. É preciso compreendê-la.

Aqui, a meu ver, a grande mediação a se fazer é econtrar a categoria "cultura popular" como distinta daquela "cultura popularizada". Em termos de nomenclatura, bastante controversa é esta linguagem. Poderia precisar esta discussão como a do embate entre a cultura de massas versus a cultura massificadora ou a cultura popular em face da popularizada. No entanto, há uma redução dos termos a, por um lado, uma cultura popular (que não deixa de ser das massas, qualificadamete) e umoutra de massas (que não deixa de ser popularizante).

O grande intelectual brasileiro que foi Mílton Santos, em um de seus últimos textos (o famoso "Por uma outra globalização"), utilizou esta contraposição. A cultura de massas seria homogeneizadora e inserida na globalização avançada do capital transnacional da virada do milênio, caracterizado pela unicidade das técnicas, monotemporalidades, superexploração do capital global e ampla cognoscibilidade objetiva do mundo. Por outro lado, a cultura popular expressaria um momento de reascenso das classes trabalhadoras em oposição ao sistema do capital, produzindo resistência a partir de seus símbolos, cantos e solidariedades.

Daí fazer mais sentido a colocação do problema: o que é o popular? Com o velho Dússel responderíamos que é o que se refere ao povo como "bloco comunitário dos oprimidos de uma nação". Vários limites há nesta formulação como também em outras; e já dissemos, em outro momento, que seria importante juntar a este conceito as noções de classe operária, de Maríni, e de classe-que-vive-do-trabalho, de Antunes - algo ainda por se sintetizar. Mas esta forma de encarar o "popular" se põe na contramão da marcha liberal do conceito e ainda dialoga com a tradição latino-americana do termo. Portanto, nos vale por ora.

Com esse itinerário, cabe perquirir sobre os vários matizes - as "zonas de penumbra" - entre a cultura de massas e a cultura popular. Por exemplo, dentro do amplo espectro da música popular: conforme mais se massifica (ou seja, se torna objeto de consumo de acordo com uma técnica unificada) a produção musical, mais se tende a resgatar os velhos produtos da indústria cultural, ressignificando-os. Os sambas-canções abolerados de Altemar Dutra, Nélson Gonçalves, Francisco Petrônio ou Agnaldo Timóteo representaram um estágio dessa técnica e, inclusive, contra esta tradição se colocaria a bossa nova (bossa é jeito, e jeito novo de cantar e fazer música, com referência à velha canção pré-1958, a bossa velha). Mas a bossa nova também era música "comercial". Mesmo um politizadíssimo Carlinhos Lira concordaria. É por isso que os movimentos musicais da década de 1960 pós-golpe apareceram a partir de os desvãos da bossa nova, ainda que sendo seus fiéis tributários. Mesmo a jovem guarda tinha o que agradecer, pois não só Roberto Carlos era cantor que imitava João Gilberto como boa parte de seus cantores puderam sê-lo devido à descanonização das grandes vozes das décadas anteriores. De forma mais aprofundada, apresentam-se os cantores de protesto, como Chico Buarque, Sérgio Ricardo ou Geraldo Vandré, ou ainda o tropicalismo, de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé. Mas nenhum desses se livrou do fenômeno histórico da comercialização da música. A partir daí, verticaliza-se o processo, até que o final dos anos 1970 traz as grandes ondas rítmicas a começar, quiçá, pela discoteca. Logo viriam o roquenrol, a lambada, o pagode, o sertanejo, o axé, o fanque, o brega etcétera. Muito preconceito há com estes produtos culturais. São ditos e tidos como cultura de massas. E, de fato, o são, segundo creio queira dizer esta conceituação. No entanto, com o aprofundamento das técnicas mercadológicas, os antigos produtos vão ganhando nova aura (se pudéssemos profanar a concepção benjaminiana...) e, por conta de sua aderência no imaginário popular, tomam-se como antídoto aos novos passos da música massificada (assim, prefere-se o sertanejo romântico da década de 1990 ao sertanejo universitário da década de 2000; ou o pagode dos primeiros grupos ao pagode multifragmentado das bandas de agora...).

Refletir a partir desta realidade não pode querer significar aceitação passiva da indústria cultural como modelo sem mais de produção cultural. Não. Mas também não pode ser demonizada. A crítica à produção em série e à desertificação dos significados autênticos dos clamores populares nas rádios e tevês deve ser constante. Ocorre que o apelo idílico e excessivamente romantizado da cultura de "raiz" não pode nos imobilizar. É preciso que tenhamos alcance de massas, ainda que não massificado. Lênin esbravejando da sacada do palácio não faz mais revolução. É preciso pensar em uma teoria revolucionária da comunicação social e dos meios de comunicação em geral (das estradas aos satélites) no tempo presente.

E o que o direito tem a ver com isso? Nessa minha divagação, fica obscurecido o papel da discussão político-jurídica. Entretanto, se encararmos o direito como um instrumento construído pela civilização ocidental, veremos que se trata, também, de uma técnica; e se certo estiver Mílton Santos, há uma tendência (portanto, hegemônica) à unicidade da técnica. Um monolitismo jurídico-político se instaura filosoficamente, ainda que sociologicamente ele não consiga ser o absoluto da fenomenologia idealista. Daí que o paralelo com a arte popular pode ser feito, de modo a perceber o que é organização político-jurídica popular e o que é massificação da pluralidade normativa nos dias atuais. Há autores que proclamam a necessidade de retomada do poder normativo pelo povo (o "direito que nasce do povo"), no entanto é preciso especificar de que cultura se parte com relação a este mesmo bloco histórico-comunitário de oprimidos não-vitimizados. Isto porque no seio do popular aparece a cultura de massas (que é respaldada por uma objetividade popular mas seguida de uma subjetividade antipopular) e, ao mesmo tempo, a cultura popular (que aproxima, ainda que não perfeitamente, as condições objetiva e subjetiva das classes populares). O direito que nasce do povo não é monolítico, igualmente. E é preciso percebê-lo.

7 comentários:

  1. Oi,Pazello!

    Você pode tentar explicar melhor sua exposição? Está tentando descobrir como lidar com a cultura popular para o contexto das propostas que você e Ribas sugerem sobre práticas políticas insurgentes? É um filtro?

    Outra coisa: não entendi o descarte da arte erudita. O que você entende por arte erudita?

    Me veio esta duvida quando lembro da miscelânea de formas de expressão da arte que ocorrem aqui na região que vivo (NE), que sofrem influência inclusive do que talvez se enquadre no que você compreende por arte erudita. Não sou nenhuma especialista em qualquer tipo de arte, apesar de gostar de senti-la, então eu gostaria de entender melhor suas idéias sobre isso...

    Por ora, é só.

    Abraços!

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  2. Sim, Naiara, trata-se de uma reflexão (uma tentativa bastante rudimentar) para trabalhar com o horizonte da cultura popular, base para uma aposta em uma assessoria jurídica "popular". É preciso que conheçamos minimamente este "popular" que nos mobiliza. Em especial, isto vale para a educação popular e o papel da estudantada no quefazer de sua assessoria universitária.

    Quanto ao problema da tripartição da cultura contemporânea, eu diria o seguinte: a cultura erudita é a elitizada e profissionalizada, sobressalente nos discursos arrogantes de uma arte superior; a cultura de massas é a homogeneizadora e inserida no explícito movimento do capital; e a cultura popular é a síntese feita pelas classes populares para expressarem sua visão de mundo e para atuarem sobre este mesmo mundo. Mas acima de tudo a cultura popular é a fonte para todo o resto, pois em última análise é a ela que se referem as demais, mesmo que em projetos de cúpulas. Assim, não quero dizer que Betôven ou Carlos Gomes sejam, sem mais, expressões culturais a serem descartadas. Ao contrário, devem ser absorvidos. No entanto, sustentar o discuro de uma "teoria pura da música" é um equívoco histórico e daí a necessidade de não-rejeição da cultura de massas mesma; o mesmo vale para a erudição.

    Enfim, senti necessidade de uma postagem sobre o tema para não incorrermos também nós em sectarismos e em purismos em searas, a princípio, não jurídicas, justamente quando propomos uma política popular dentro do direito.

    Continuemos estes debate, que é difícil. Agradeço o interesse por esclarecer minha obtusa opinião!

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  3. Pois muito obrigada pelos esclarecimentos senhor Ricardo Prestes Pazello!

    E mportante lembrar de não se cair no mesmo erro de quem se critica. Senão, nem vale a pena prosseguir...

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  4. Interessante a idéia de "popular" como síntese feita pelas classes populares. Entendo que é isso mesmo.

    O problema mesmo é essa categoria cultura. Ela é muito vaga, é expressão de um todo amorfo, uma espécie de "patrimônio", um agregado de coisas com valores "culturais". Uma espécie de equivalente antropológico. Assim, os processos de subjetivação populares não podem ser explicados em termos de cultura.

    Pazello, tu destacou bastante a questão da cultura em termos mídia e de industria cultural.

    Primeiro, é interessante perceber , como tu colocou com exemplo de Lênin, que a mídia a industria cultural são criações recentes, históricas.
    Essas "máquinas" que são a mídia e a a chamada industria cultural, são produtos de uma sociedade industrial, individualista, que aceleram a transformação dos modos de vida de grupos e sociedade parcialmente industrializadas ou não industrializadas. Mas do que produtos, a mídia e a industria cultural produzem, indivíduos, proletários, consumidores, donas-de-casa, etc.

    Nesse sentido, não é estranho que a música seja uma mercadoria. A música surgiu, tal como conhecemos e consumimos, nessa sociedade mercantilizante. A música produzida, por exemplo, no reisado ou na cumbuca de criolo não é música, é uma outra coisa. A música onde existe um cantor (operário da música) e um ouvinte(consumidor, que não participa de sua construção a não ser como expectador) é algo que já possui essa essência mercantil, mesmo que não seja vendida.

    A quadrilha que dancei na minha rua durante minha infância não tem nada a ver com a quadrilha do festival de folguedos. Aliás, folguedos não é quadrilha, não no sentido que esta tinha, antes de virar mercadoria. Uma era "brinquedo", expressão usada pelo o camponês piauiense para falar de uma manifestação de "quadrilha" ou de "reisado". "Brinquedos" são produzidos por diversos instrumentos, nem todos musicais. Dança, fé, alegria, saudade, promessa, ancestrais, encantados, tudo isso junto, conceituado como "brinquedo". Na quadrilha mercadoria não há espaço pra isso: o que importa é ser bonita, ou a mais bonita. Todo o processo de construção se volta para apenas um aspecto do "brinquedo" que se torna algo "puro", desterritorializado e reterritorializado no espetáculo da lembrança do que deixou de ser.

    É bem a lógica do movimento centro-periferia que Dussel se refere em sua "Filosofia da Libertação". Só que estendendo isso não só para a filosofia, mas para diversos outros "brinquedos" que, reterritorializados no centro, são transformados, submetendo-se, assim, ao Sujeito, a realidade produzida pelo centro.

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  5. Continuando..

    Esse movimento centro periferia é ao que se refere conceitos como cultura popular, que é a cultura da exterioridade, não obstante gera também a idéia de cultura erudita, clássica, que é a síntese feita pelo centro do "acúmulo" de capital "cultural". O que se oculta nestes dois conceitos é a artificialidade de se enquadrar como cultura popular uma infinita diversidade de subjetividades, de modos de se produzir a vida, de saber, de pensar, e pior ainda, opor-la uma outra, e a esta cabe realmente se falar em cultura, por que se trata de um todo acumulado, amorfo, capital.

    Para mim, o que está colocado para a construção partir da exterioridade é está síntese alternativa. Tal síntese, no entanto, não significa a homogeneização. Está mais para sincretismo, para pluralidade viva. Está ligada a reconstrução. Sim, é preciso reconstruir. Não como espetáculo, nem como nostalgia. Neste ponto, a pesquisa popular torna-se deveras importante. Não podemos ser simplesmente signatários de subjetividades alheias.

    Precisamos negar a cultura erudita enquanto acumulo de valor, desmistificando o seu próprio universalismo para o que realmente é: um regionalismo universalizado, que, nesse sentido, não paira sobre nossas cabeças como verdades brilhantes e intocáveis, mas como produção histórica e geograficamente situada. Desmistificá-la não significa dizer que não é importante, só não será mais central, nem princípio de equivalência.

    Não é possível retornos a sociedade não-industrial. No entanto, podemos aprender muito com sociedades não-industriais, ainda mais na época é que é amplamente reconhecido os malefícios do nosso modo de vida. Precisamos disputar isso. O centro também está preocupado em aprender com elas, mais de forma instrumentalista, submetendo o conhecimento de outras tradições ao julgo de sua ciência, de sua indústria e de sua política.

    Sobre o Direito, talvez seja preciso problematizar mais essa tradição moderna, perceber como outras formas de “solidariedade”, de forma não problematizar a simplesmente o direito como direito, universalizando algo que não terá correspondentes assim tão “puros”. Talvez o direito seja um Pitbull das formas de se organizar coletivamente, e não convenha utilizar-lo como modelo de cachorro.

    Enfim, espero não ter sido enfadonho como o meu duplo post! Queria agradecer aos blogueiros, tenho acompanhado o blog nestes últimos meses e tem me instigado bastante.

    Abraços!

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  6. À primeira vista, parece o próprio movimento dialético estas nossas colocações. O Ciro, maravilhosamente, é a síntese!

    Muito do que você explanou é exatamente o que eu tinha em mente quando fiz aquela pergunta malvada ao Pazello (desculpe!). Me senti muito contemplada como quase sempre, Ciro, e vou destacar o trecho que mais me deixou satisfeita na sua exposição: sincretismo e pluralidade viva; bem como:

    "Precisamos negar a cultura erudita enquanto acumulo de valor, desmistificando o seu próprio universalismo para o que realmente é: um regionalismo universalizado, que, nesse sentido, não paira sobre nossas cabeças como verdades brilhantes e intocáveis, mas como produção histórica e geograficamente situada. Desmistificá-la não significa dizer que não é importante, só não será mais central, nem princípio de equivalência."

    Eu acho que você captou muito do que Pazello tinha em mente também...

    Grande abraço garoto da metáfora do caminhão!

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  7. E agora a metáfora do cachorro. E seu comentário duplo foi bem mais necessário que esse meu.

    ;)

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