domingo, 24 de abril de 2011

Lembrando quatro advogados populares assassinados: símbolos da resistência jurídica

Motivado pela batalha teórico-prática de vários companheiros deste blogue em destacar a importância da assessoria jurídica popular inclusive no campo da advocacia popular, vou relembrar aqui quatro importantes advogados populares brasileiros que acabaram pagando com suas vidas o preço da luta política a serviço das classes subalternas.

O último domingo marcou a data do massacre de Eldorado dos Carajás. Num 17 de abril do nem tão longínquo ano de 1996, Oziel Alves Pereira e mais 18 trabalhadores sem-terra tombavam numa ação da repressão estatal contra a reivindicação e contestação de um movimento popular com a força do MST.

Por coincidência, nesta semana, caiu em minhas mãos um livro sobre vários militantes e lideranças populares assassinadas nos últimos 35 anos. Trata-se do livro “Raízes: memorial dos mártires da terra”, de Jelson Oliveira, um conjunto de poemas em homenagem a cada uma das vidas ceifadas no calor das lutas populares. Cada poema se intitula com o nome de um lutador assassinado e dentre eles está Oziel:

Tua sandália, Oziel, imprecisa no tamanho de crescer,
Inconstante na cor de parecer, gelou-se na poça vermelha.
Poça da noite misturada em 19 tons.

Muito se lembrou nestes dias que passaram o massacre e Oziel. Relembrá-los é um dever. Mas nas idas e vindas dos poemas também outras importantes personagens históricas surgiram, com especial interesse para nós da assessoria jurídica popular.

São quatro advogados. O primeiro é Eugênio Lira (sobre quem já se falou aqui no blogue) que acabou por atuar muito de perto junto a camponeses de terras griladas, chegando a participar ativamente das denúncias que levariam à CPI da grilagem. Um dia antes de seu depoimento na CPI, em Salvador, leva um tiro na testa quando estava à porta de uma barbearia da cidade baiana de Santa Maria da Vitória e ao lado de sua esposa grávida.


Eugênio Lyra


(Advogado dos trabalhadores/as rurais de Santa Maria da Vitória e Ecoribe, Bahia. Assassinado no dia 22 de setembro de 1977).

(Pesado, o tempo vestiu a suficiência do carvão
Engomado pelo destino severo da morte e suas ferramentas...)

Preservaste a dureza exata das verdades
Como rubis perpetuados no celeiro escuro da terra
Como peixe embebido no rio e suas diferenças
Como nuvem decifrando o enigma cilíndrico do azul.

Antes que a terra ouvisse o rouco grito
- e a queda do corpo recolhido
retornasse ao orvalho e à cal -,
foste um silencia estendido e úmido,
soprando acima dos tribunais armados.

Foste a fertilidade dos protocolos
E suas vasilhas de invejas e tiranias.
Habitante das legislações do amor e seus ninhos,
procuraste os roteiros desusados da Justiça
para traçar o direito proibido dos pobres.

Apartado como um rio, carregado de verdade e som,
Defendeste a integridade do povo
Na casa onde desfalece o corpo dos relâmpagos.
Indomado, acendeste a luz para lumiar
O caminho aos que te seguem noite adentro...

***

O segundo advogado é Agenor Martins Carvalho. Advogado de 950 famílias de posseiros desabrigados por conta de despejo em favor de empresários e pecuaristas de Porto Velho, Agenor foi brutalmente assassinado em sua casa, depois de algumas ameaças de morte. Seria conhecido como o “advogado dos pobres” e acabaria sendo um sinal de problemas para as elites locais rondonienses. Seus algozes não seriam condenados penalmente, mas apenas civelmente, em 2007, devendo pagar indenização à família numa quantia superior a 1 milhão de reais.


Agenor Martins de Carvalho

(Advogado dos Trabalhadores Rurais assassinado em sua casa em Porto Velho, Rondônia, atingido por dois tiros de revólver diante de sua esposa e filhos, na madrugada do dia 9 de novembro de 1980).

Lá, nas distâncias de novembro
Elevado nas paisagens fugidias
A agonia de um homem
Estendia a chuva sobre as árvores.
Deus visitava as palavras turvas
Espalhando a sombra dobre o cansaço.
Deus pendia das alturas do crucifixo,
Tudo era exposto e ambulante.
Tudo era provisório, mais do que as estrelas.

O homem freqüentava seus salões.
O homem alternava o silêncio com verdades:
Os pêndulos parados, os juízes, as leis.
O vago mercado da palavra.
A narrativa, as provas,
as perícias bem montadas sobre o crime.
As heranças e as fugas. As mentiras.
As discórdias afeitas para o nada.
Os testemunho, o sangue amargando as vozes.
Datas, pessoas, cifras, cofres: teu conteúdo.

O mundo porém, para ti, era leve demais
Como a sombra do carvalho.
Foste encontrar a claridade dos rios
E advogar pelo povo junto aos altares divinos...

***

O terceiro advogado é Joaquim das Neves Norte que trabalhou junto a arrendatários de fazendas da cidade sul-mato-grossense de Naviraí. Os trabalhadores rurais pleitearam, no judiciário e com assessoria de Joaquim, a permanência nas terras e denunciaram as agressões e ameaças dos proprietários. Como obtiveram ganho de causa, acabaram sofrendo a ofensiva dos latifundiários que soltaram 5 mil cabeças de gado nas plantações dos camponeses sem-terra e como estes reivindicaram indenizações na justiça, terminaram por sofrer mais violências, a ponto de verem assassinado seu advogado, Joaquim.

Joaquim das Neves Norte

(Advogado, 40 anos, pai de 4 filhos, assessor do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Naviraí-MS, colaborador da CPT-MS, assassinado a mando do fazendeiro Adolfo Sanches Neto, no dia 12 de junho de 1981).

Cumpro o apanágio das ausências
E o teu nome, das neves do norte
Chega impossível, improvável, inflamado.

Algo como um relatório inteiro de mortes,
Um esbulho, uma condenação, uma ilegalidade.

Não por existir, te condenam, mas por não desapareceres,
Por não conseguirem derrotar
Os sangues que ao teu sangue se juntam.
Pelas águas mal-dormidas que fazes correr
Rente aos leitos encurvados das noites do medo.
Pelas palavras dos que acreditam nos sonhos
Que crescem no meio das sementes.
Esses que agora se juntam para dizer:
“Se vê, se sente, Joaquim está presente!”

***

Por fim, o quarto advogado, Paulo Fonteles de Lima. Paulo ficaria conhecido como o advogado-do-mato. Ligado a grupos políticos comunistas clandestinos, conhece os porões da ditadura e é torturado junto de sua esposa. Também vem a se tornar um pesquisador sobre as Ligas Camponeses. Torna-se advogado a serviço das massas camponesas e deputado estadual pautando o problema da terra. Sempre esteve nas listas de “marcados para morrer”, no Pará, e sob os auspícios da UDR tem seu assassinato efetivado na fazendo Bamerindus (hoje ocupada pelo MST) por pistoleiros treinados pela ditadura.


Paulo Fontelles de Lima

(Advogado assassinado por pistoleiros por seu apoio à luta dos pobres do campo no sul do Pará, no dia 11 de junho de 1987, em Belém do Pará).

Brancas de cal as linhas de teu nome
Nas distâncias plantadas além das lavouras.
O homem retornando da colheita
C’o sol encalhado na algibeira
Soube a notícia pelo sino
Que o silêncio fez soar sobre o vermelho.

Nas casas nasceram relevos de tumulto
- algo como gravuras de relâmpagos
Rebentando através das roseiras.

A vila pôs-se em peregrinação
Até o cerne do silêncio.
Vestiram teu corpo de barro, por adoração.
Um buquê de sabiás atraíram como manto teu
- cambraia cinza te abrindo em filigranas de prata.

Criaram uma música sem aflição
Para circular teu exílio de ternuras.
As senhoras do povo cantaram gravemente
Para alcançar o vácuo das alturas, em vigília.
Houve um juízo e um delírio, paralelos,
Levando teu corpo além
No itinerário pendente do fogo...

A atuação junto às massas espoliadas do campo, a aproximação às bases cristãs, a sensibilidade social e o tino político, além de muita coragem e técnica jurídica invejável; tudo isto marca a vida e a morte desses advogados que ainda hoje são um eloqüente testemunho da resistência jurídica. A comunidade, a organização política e o flanco jurídico se unem e dão uma lição histórica sobre o que devemos fazer. A memória de Oziel se congrega à de Eugênio, Agenor, Joaquim e Paulo e, dessa forma, seguimos adiante em nossa batalha.

Conferir na rede:

*sobre Eugênio Lira:

- Eugênio Lyra, por sua mãe Dona Maria Lyra;

*sobre Agenor Martins de Carvalho:


*sobre Joaquim das Neves Norte


*sobre Paulo Fonteles de Lima:

- Violência e impunidade, por José Fernandes.

7 comentários:

  1. "SEU PAI SEMPRE FOI UM HOMEM QUE ATUA COMO PENSA. COM CERTEZA, LEAL AS MINHAS CONVICÇÕES.....SOBRETUDO, SEJAM CAPAZES DE SENTIR NO MAIS PROFUNDO DE SEUS ÍNTIMOS, QQUER INJUSTIÇA COMETIDA CONTRA QQUER PESSOA, EM QQUER PARTE DO MUNDO".-
    (VIVA CHE GUEVARA hj e sempre).

    Nossas almas estão sedentas de vontade de JUSTIÇA.....


    Chris e camila- direito UFPR

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  3. Amigo Pazello, fico extremamente grato pela homenagem ao Paulo Fontelles. Ele foi um dos fundadores, em 1977, da Sociedade Paranese de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH/PA), a qual, pelo que sei, é a mais antiga AJP em atuação no país. Fiquei muito tocado pela poesia feita para o Eugênio Lyra, ela tem uma pulsão poética que cativa o coração justamente por opor a Justiça (instituição) da justiça (valor). Excelente texto.
    Pois bem, agora este sujeito que não tem a coragem de se identificar, realmente, só tenho a dizer o que você mesmo diz: DEIXE O ESPAÇO PARA QUEM TEM CONTEÚDO. O blog não é espaço de paquera ou menosprezo superficial de ideologias...

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  4. Chris, Camila e Assis,

    Que bom que fez sentido para vocês a lembrança dos quatro advogados, alguns dentre muitos que doaram suas vidas a uma causa maior, um mundo mais igualitário. Mundo este pelo qual lutou Che e que se encontra em sua carta para seus filhos, lembrada por Chris e Camila.

    E, sem dúvida, camarada Assis, a figura de Paulo Fonteles e sua luta no estado do Pará é essencial para a nossa simbologia da AJP. Inclusive, te convido, como estudante, habitante e professor universitário paraense a fazer um texto sobre ele, sua vida e seu legado a partir da SDDH. O que acha?

    Por fim, explico que excluímos o comentário anônimo aludido por conter comentários pessoais e constrangedores que não se referem aos objetivos deste meio de comunicação. Esperamos que, com isso, não se repita o fato.

    Abraços

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  5. Pazello,

    O convite-proposta foi aceito. Vou reunir material e pensar no texto. Mais adiante espero publicá-lo no blog.

    Abraços

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  6. Triste saber que pessoas de bem que lutavam pelos direitos de outras foram silenciadas por meios tão cruéis, esses que poucos conhecem mas que fez muita diferença. O meu respeito é para pessoas como Paulo Fontelles de Lima,Eugênio Lyra e Agenor Martins de Carvalho.

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  7. Olá querido Pazzello, me alegra ver alguém relembrar Joaquim das Neves Norte. Não tive nenhum contato direto com ele ou sua família, mas fiz parte da ocupação que levou seu nome nas margens do rio Tijuí no município de Navirai- MS em 1997. O resultado dessa (ocupação) luta pela terra se concretizou dentre outros caminhos, em sujeitos assentados nos Assentamentos Santo Antonio, Gláucia Pereira - no município de Itaquiraí e nos Assentamentos Dorcelina Folador e Itamarati I no município de Ponta Porã. O Assentamento Itamarati tem inclusive uma comunidade de remanescentes direto dessa ocupação que leva o nome Joaquim Das Neves Norte - comunidade da qual minha família (que esteve em todas as fazes, da ocupação ao assentamento) faz parte.

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